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quarta-feira, 26 julho 2023 19:01

Desporto moçambicano em contra-mão com o mundo

Pois é! O retrato do putativo adversário de Shafee Sidat na noite das “facas longas” das eleições internas no partidão, marcadas para 15 de Julho - o camarada Francisco Mabjaia - empurra-o para aquele perfil de pessoas consideradas de “inúteis” na sociedade, “que não acrescentam nenhum valor”, que “estragam tudo quemexem”.

 

Esta última imagem recorda aquela célebre premonição de Carlos Cardoso, que escreveu, em 1997 que, se Guebuzachegasse a Presidente, acabaria estragando Moçambique. Cardoso acertou em cheio! Moçambique está estragado!

 

Muitos residentes de Marracuene estão aterrorizados com a eventualidade de Francisco Mabjaia poder ter a chance de, em vez de construir, destruir a nova autarquia local, levando para lá sua incompetência quanto baste. Estragar Marracuene!

 

Ele é capaz de se colocar na contramão dos trabalhos deShafee Sidat, que em tão pouco tempo dinamizou a localidade e mostrou que, com vontade e trabalho árduo, a região pode ser catapultada para uma centralidade urbana decente, com ordenamento correcto, saneamento, electricidade para todos, equipamentos desportivos e de lazer, turismo e investimento. 

 

Francisco Mabjaia é tudo o que Marracuene não quer, apesar de ele vir enfatizando que é um “nativo”. Mas e depois!?

 

Quem o conhece há mais tempo, lembra-se da sua passagem inglória e cinzenta pelo antigo Ministério para a Coordenação da Acção Ambiental (MICOA) e a sua rudeza no trato com jornalistas e com a opinião pública.

 

Lembra-se da sua inutilidade quando dirigiu a Federação Moçambicana de Basquetebol.

 

E dentro dos recantos da militância frelimista, Mabjaia abraçou um carreirismo centrado no escovismo e na bajulação, com traços vistosos de improbidade, como no caso da oferta de um tractor ao Presidente Nyusi. 

 

Mas a melhor caracterização do aspirante a edil de Marracuene foi feita pelo saudoso cronista Juma Aiuba, num artigo publicado na “Carta”, em 7 de Dezembro de 2018. Eis a prosa arrebatadora do finado cronista:

“A queda de Francisco Mabjaia (na verdade, os motivos da queda), como primeiro-secretário da FRELIMO da cidade de Maputo, coloca-nos diante de um mistério muito difícilde decifrar. Um caso capaz de embaraçar qualquer criminalista ou laboratório forense avançado. Um caso de Ci-Esse-Ai.

 

Tudo o que se sabe é que o ‘mista-tractor’ vinha sendo vítima das suas próprias decisões um tanto quanto acrobáticas. Mas aí está. O homem é um coleccionadornato de trafulhices. Qual foi então a trafulhice que precipitou a sua queda?

 

1. A compra de votos para a sua reeleição conseguida com 97 por cento dos votos?

 

2. A tentativa de oferta, numa reunião pública e em directonas tê-vês e rádios nacionais e internacionais, de um tractor agrícola completo, novinho em folha, ao presidente do seu partido, no décimo primeiro congresso?

 

3. A tentativa de concorrer, contra a vontade do Comité Central, a cabeça-de-lista do seu partido à presidência do Município de Maputo?”

 

Juma Aiuba traça de Mabjaia um perfil de ética duvidoso, que não encaixa na cabeça de muitos militantes e simpatizantes da Frelimo, que querem o bem e o melhor para Marracuene. 

 

O melhor que Mabjaia pode fazer é renunciar, como fez Calisto Cossa na Matola.

 

Acrescentar ao seu currículo mais uma nódoa de perdedor nato parece de autofagia sem paralelo. 

 

Marcelo Mosse

13 de Julho de 2023

Cartamz.com

Eu, o Povo

Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão

Fiz desta força um amigo fiel.

 

(Mutimati Barnabé João)

 

Quando, naquele remotíssimo sábado, de 2 de Julho de 1994, o Luís Carlos Patraquim me ligou a dar a notícia da morte de António Quadros, já se tinha balcanizado o mito do guerrilheiro morto na frente de combate que deixara “Eu, o Povo”, como legado ou testamento poético da revolução, que fora o breviário de jovens que o estudariam afanosamente anos a fio como uma espécie de cartilha. Reconheço-me nesses moçoilos e nesse livro e naqueles poemas inauditos. Não tenho dúvida de que fizeram de nós mais moçambicanos. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva.”

 

Tinha visto, entretanto, o filme de John Ford, “O Homem que Matou Liberty Valance”, e continuava a sufragar a lenda mesmo diante da verdade. Aliás, anos mais tarde, ao antologiá-lo, em “Nunca Mais é Sábado”, no texto biográfico redigi: “a lenda por vezes torna-se verosímil com o tempo”. A colectânea, de 2004, também resgatava outro dos seus heterónimos, o mais facundo de todos: João Pedro Grabato Dias. Parece haver, em termos biográficos, um apelo recorrente nas datas: em 1964, António Quadros vai para Moçambique, em 1984 é o epílogo dessa experiência, o ocaso da sua vida dá-se em 1994.

 

À época, eu batucava a minha prosa no jornal “Público” e dei conhecimento ao meu editor, Torcato Sepúlveda, de gratíssima memória, deste infausto acontecimento. Quando me dirigia para a redação, aonde iria fazer o obituário que se impunha, recordei-me de um livro que me  assombrara nos meus tempos de debutante. Encontrara-o numa vetusta livraria do Alto-Maé, que hoje cedeu espaço e memória a uma dessas lojas que vendem quinquilharias. Era um livro de pequeno formato, tê-lo-ei perdido algures, na defluência dos anos. A despeito, o seu humor truculento e profundamente feroz ainda ecoam na memória: “Como o morto nunca nos diz nada / vem daí o extremo penoso da sua presença”. O título da obra – “O Morto – Ode Didáctica” (1971) -, assinado por João Pedro Grabato Dias, o seu heterónimo mais exabundante.

 

Fora o Luís Carlos Patraquim que me dera a ler “40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada” (obra inicial do poeta, editada em 1970). Quando isso sucedeu, eu já associava o nome de Grabato Dias ao de Rui Knopfli, o meu poeta electivo, por causa da revista “Caliban”, que ambos haviam editado nos anos 70. Disse-me o Knopfli em 1989: “Quem teve a ideia de se publicarem os cadernos “Caliban” foi o João Pedro Grabato Dias. O progenitor é ele”. Em 1996, Rui Knopfli assentiria que os publicasse, numa edição fac-símile, com a benesse do meu bom amigo José Soares Martins.

 

Foi através de um prémio, atribuído, em 1968, pela antiga Câmara Municipal de Lourenço Marques, hoje Maputo, que surgiu, para o espanto dos jurados, “40 e tal Sonetos de Amor e uma Canção Desesperada”. Quando foi da publicação da obra remunerada, dois anos depois, Eugénio Lisboa, que estivera no júri, redigiria numa das badanas: “Voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada”, tudo isto, segundo o ensaísta, “traduzido por uma extraordinária ´fauna lexical´ que a um tempo nos subjuga e desorienta”. Num dos volumes, da sua monumental obra memorialística, “Acta es Fabula. Memórias III – Lourenço Marques Revisited – 1955-1976” (2013), Lisboa dar-nos-á uma circunstanciada notícia desse acontecimento literário único e fará a cartografia desta personagem singularíssima: António Quadros.

 

Também devo ao Patraquim o conhecimento de “As Quybyrycas – poema étyco em ovtavas”, publicado em 1972, para celebrar os 400 anos de “Os Lusíadas”, ínclita obra de Luís de Camões. Assinada por Frey Ioannes Garabatus, tinha J. P. Grabato D. como seu Editor. Esta obra que mereceu um erudito prefácio de Jorge de Sena. “Cada um faz a homenagem que pode” – era a divisa do frontispício. O Editor, assim grafado, agradecia a M.L. Cortez, E. Lisboa, R. Knopfli e A. Quadros com um “embaraçado obrigado pelo estímulo permanente”. Já era óbvio o chiste literário. O autor era um heterónimo de António Quadros – o pintor.

 

António Quadros foi pintor e professor, artista gráfico e ilustrador, ceramista e escultor, fotógrafo e cenógrafo, pedagogo e apicultor. Interessou-se por arquitectura, comunicação, biologia ou ecologia. Era vário, múltiplo, complexo. Talvez daí, também se explique, a sua heteronímia, os vários poetas que encarnou: ele foi João Pedro Grabato, ele foi Frey Ioannes Garabatus, ele foi Mutimati Barnabé João, ele foi António Quadros. (“Pois que todo o proposto é uno e vário”, deixará escrito algures).

 

Para além dos livros acima aludidos, publicou: “A Arca – Ode Didáctica na Primeira Pessoa” (1971), “Uma Meditação. 21 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados” (1971), “Pressaga – Ode Didáctica” (1974), “Facto-Fado – Piqueno Tratado de Morfologia Parte VII” (de 1986), “O Povo é Nós” (1991) e “Sagapress” (1992). Todos eles assinados por João Pedro Grabato Dias. A sua poesia é exuberante, os seus versos são avassaladores, o seu tom desmedido, muitas vezes burlesco, faustoso, quase sempre, poesia que denuncia uma afortunada versatilidade imagética e um dos estros mais prósperos da poesia que se produziu em Moçambique.

 

António Quadros era uma personagem: complexa, heterogénea, vasta, abundante, profusa. Expendeu 20 anos da sua prodigiosa vida em Moçambique, entre 1964 e 1984, e aí produziu grande parte, ou a totalidade, da sua obra (“Produzo mas não crio, quando interpreto”.) Isto muito longe de “Mil novecentos e quarenta em lisboa. Lisboa após Expo” quando se entrevista com “o meu amigo da guiné / o ansiado irmão que vivia mais perto do sol” que “estava ali, tinha chegado no anoitecer de inverno / sem ser prevenido da névoa de lisboa, sem camisola de lã / sem calças à golfe, sem luvas de malha”.

 

A cidade, a “baixa laurentina”, o Djambu, o Continental, a “polana das coutadas”, Maxaquene, mais tarde, a Machava, fazem parte da sua geografia poética, numa vida em que, diz o poeta, “em palavras gastei tudo”. Muitos anos depois, do epílogo dessa experiência africana, não deixará de se referir aos seus “áfricos remorsos”, uma indisfarçável melancolia e, provavelmente, imprescindível desencanto. Quem o lê, atentamente, escrutina na sua poesia o estertor de um tempo – isso é comum a Rui Knopfli – e o entusiasmo pelo tempo ulterior que que lhe provocará um inevitável desengano. A revolução teve as suas contradições e, de permeio, acotovelou quem não devia.

 

Não o conhecera pessoalmente, mas sabia-o figura lendária em Moçambique. Tenho uma vaga memória de o ter visto, de relance, algures em Maputo. Mas pode ser uma paródia da minha própria memória. O José Capela (nome de historiador de José Soares Martins) falava-me amiúde dele, com saudade, das vezes que este o visitava e ficava, à varanda, a escrever ou a pintar. Tinha, aliás, obras de Quadros nas paredes. O José Craveirinha (“sinto que fiz um verso à Zé Cravé, alô Mafalala!”) também me falava dele. O Rui Knopfli falou-me dele. O Luís Carlos Patraquim, idem. A Amélia Muge, outrossim. A minha amiga Lisdália, de saudosa memória - (“Feitiços? Vivi deles, vivo, como de factos em bruto”, entre outros, “no rir da Lisdália”) – rememorava, liricamente, João Pedro Grabato Dias. Quem não me falou de António Quadros?

 

António Augusto Lucena Quadros nasceu em Santiago de Besteiros, em Viseu, a 9 de Julho 1933, onde iria falecer a 2 de Julho de 1994, a dias de fazer 61 anos, depois de muitos exílios. (“Nunca me libertei da infância.”)  Estudou Pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto e Gravura e Pintura a fresco em Paris. Parte da sua obra plástica está antologiada em “O Sinaleiro de Pombas” (2001).

 

Numa entrevista à revista “Tempo”, quando deu à estampa a sua glosa camoniana – Camões e Fernando Pessoa eram seus deuses tutelares – afirmaria: “Se eu soubesse o que é ser europeu, saberia talvez o que é ser moçambicano. Tirando o anedotário da coca-cola, falta a soma das criações de mais de duas gerações, para se definir o que é ser moçambicano, para o bem e para o mal. Daí a tremenda responsabilidade de um criador, hoje e aqui, onde o pouco que há feito muito pouco denuncia o muito que há por fazer (...) No fim de contas, haverá dois mundos, não sei. A “tese” que o meu trabalho defende é que existe só um universo e nós com ele. Se à poesia de minha lavra se pode censurar a falta de tambores, luares africanos e queimadas, note que a que produzi de 50 a 64 pelos sucessivos exílios em que andei, e onde o mental não foi o menor, é impublicável por isso mesmo”.

 

Não me parece que haja dúvidas que este homem singular sabia exercer a arte de pitonisa e haveria de se antecipar à discussão da moçambicanidade na sua extensa e complexa obra. Mais do que isso: quis zombar da História e inventara a mítica obra que faz a sagração de Moçambique livre: “Eu, o Povo”. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva” – assim se escrevia no frontispício: “É agora pertença de Moçambique. O Povo Moçambicano é o seu Autor”.

 

Sabe-se: António Quadros não conseguiria descartar-se da suspeita de ser o autor daquele hino da revolução e da nação emergente. Aliás, rezam os velhos mitos que Samora Machel terá feito, mais tarde, um repto irrecusável que irá resultar em “O Povo É Nós” (1991), uma glosa – ou uma sequela? -, de “Eu, o Povo”, assinada por João Pedro Grabato Dias.   

 

António Quadros foi um permanente exilado (“estaremos sempre votados a este exílio”), nos vários solos que lhe pertenceram. “Com três estações intermédias, djambu, casa e colmeia / ou do rovuma ao maputo como diriam nas rolhas diversas” – escreve Grabato Dias, sempre com o seu humor finíssimo e assertivo. Foi cantado por José Afonso ou Amélia Muge, pouco lido e ainda menos discutido ou estudado, como mereceria.

 

Em 2021, em Portugal, foi editada uma antologia – “Odes Didácticas”, numa coleção de poesia coordenada por Pedro Mexia, na Tinta da China, com um extenso e importante posfácio de António Cabrita, que intenta interpretar a vasta e complexa obra de João Pedro Grabato Dias. O arquitecto José Forjaz fizera um texto imprescindível para a reedição de “Eu, o Povo” da Cotovia (2008). Releio o poeta. Volto aos versos que me perturbaram na juventude: “Devo velar os meus mortos. / Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los. / Estar atento nas franjas do silêncio. / Alguma coisa deve acontecer / na espera.” “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso”. A paródia, a sátira, a critica acerba, sempre. “É preciso ter muita coragem para assumir o medo”.  

 

Provavelmente, esquecido hoje em Moçambique. Luís Carlos Patraquim evoca-o num belo poema: “Frei Mutimáti Barnabé João”: “P´la estrada da Machava, à esquina da Meseta / como Rolando sob a última frechada / ou como quem tropeça piqueno / em um Morto muito / lhe devo versos – o cono! - / mai-lo zarolho que lhe deu / claramente visto o Povo, / lá vai Frei João, o Mutimáti, / ao grabato da Alma. // Psiu, D. Antónia; João dos barcos / desencorados da infância: Amélia, / múgica guitarra onde sob os cabelos / a voz e tu, menino, / que arado adunco nos mostrasse em obra, / visto que o autor é o seu próprio processo, / e dele nem Virgílio o nomeia / em verde prado onde os deuses apascentou; / Psiu, que pelo céu de Inhaminga, / p´lo caminho de Santiago com a Rosa na Arca/ e a sapata grossa ecoando, cavernosa, / uas quybyrycas de Barcelos, / lá Mutimáti mai-lo cachimbo / de chicaocao e canho adornando ogres, / floresta obscura, parva savana nívita.” E o poema lá vai e não termina sem evocar, outros deuses tutelares da poesia moçambicana: “o Cravé ainda salga os velhos espíritos/ e o Rui sangra a sombra ardida e verde”.

 

Ironicamente, quando morreu, estava  para sair, naquele mês, o disco da Amélia Muge (“Todos os Dias”), que tinha uma canção com versos de João Pedro Grabato Dias, intitulada “Estar vivo”. Começava e terminava assim: “Estar vivo é estar à morte”. Foi o título óbvio para noticiar a passagem de António Quadros - “percebi logo a morte”, dirá ele num dos seus versos onde, como sempre, zomba da morte (ou tenta exorcizá-la?) -, que nascera a 9 de Julho de 1933, faz hoje, precisamente, 90 anos.

 

Cidade do Cabo, 9 de Julho de 2023

governador zanda banco

sábado, 24 junho 2023 08:11

As pontas do iceberg

Ainda na ressaca da celebração dos 60 anos do ensino superior em Moçambique – que foi uma soberba oportunidade para radiografarmos os descaminhos e os caminhos, sobre os quais assentaram as trajectórias do nosso, ainda, incipiente e descaracterizado ensino superior – revisitamos, igualmente, o ethos universitário, os caminhos do seu futuro e o papel do Estado, pedra angular do sistema de educação em Moçambique, considerando a força e tendências neoliberais (de privatização, mercantilização, cortes orçamentais e redução do financiamento público, dentre outras) que tentam, amiúde, aproveitar as crises institucionais e de identidade, do nosso ensino, para o tornar irrelevante e desnecessário.

 

A nova visão do ensino superior para 2030, advogada pela UNESCO e, por arrasto, por todas as instituições de Bretton Woods, do qual somos signatários cegos, e seguimos, de forma tão obediente, todas as cartilhas, defende que, neste mundo em profundas transformações e transição digital, no que Yuval Noah Harari (2023) designa por “mundo dos algoritmos”, as instituições de ensino superior apenas sobreviverão para as pesquisas em inteligência artificial, big data, robótica, e a internet das coisas.

 

Ainda condoídos pela lastimável partida de Pierre Bourdieu, já na eternidade, mas sem nunca abandonar o mundo, fica a recusa tácita de que o ensino superior deixará de ser relevante, pois, qualquer que seja a transição tecnológica, terá que assentar em princípios humanistas e sociais.

 

O mundo não é feito de robôs, mas de emoções, sentimentos, sonhos e ambições. Em suma, seres humanos. Portanto, não são os jovens que se distanciam do ensino, e do ensino superior em particular, mas, são os próprios Estados que cedem terreno às pressões do FMI e do Banco Mundial e às teorias draconianas de desinvestimento nos sectores da educação, saúde pública, cultura e demais áreas sociais. Não nos esquecemos da célebre nota oferecida pelo Banco Mundial, numa reunião com dirigentes do ensino superior, em Harare, no ano de 1986, onde afirmara que o ensino superior em África era um luxo, sugerindo que as instituições do ensino superior em África deviam ser fechadas e os seus estudantes enviados à Europa para formação!

 

Desde o advento da independência, em Moçambique, em 1975, e considerando até todas as aporias e vicissitudes que tipificaram este período, Moçambique dedicou o melhor do talento e esforço económico aos diferentes subsectores da educação. As políticas da época, sobretudo, convergiam na diversificação de oportunidades com o apoio do mundo ocidental, oriental e dos países não-alinhados.

 

Não foi por mero acidente de percurso que os moçambicanos beberam das experiências dos Estados Unidos, das academias da França, Alemanha e Suíça, das escolas superiores de Moscovo, Hungria, Cuba e Bulgária, das conceituadas universidades da Suécia, Reino Unido, Portugal, e até das universidades solidárias do Brasil, da Argentina, da Austrália e, mais recentemente, do Japão, da China e da Coreia do Sul.

 

Este conhecimento permitiu que o ensino superior público estruturante tivesse corporizado as principais necessidades económicas do país e do seu desenvolvimento, minimizado os desequilíbrios regionais e, sobretudo, criado um modelo de ensino. Um ensino que busca identidade, relevância e ethos.

 

Ainda temos presente como, nos últimos 30 anos, o desinvestimento feito nas escolas primárias públicas conduziu à mercantilização do próprio ensino primário, ditando a subsequente morte da qualidade desse ensino público. As escolas privadas cresceram à custa dos professores das escolas públicas, que abocanharam os gestores e, até, alguns espaços físicos que anteriormente serviram ao Estado.

 

Há cerca de 20 anos, assistimos, impávidos e serenos, à criação de escolas secundárias privadas, por vezes, até associadas ao ensino superior, que causaram a mesma erosão junto das escolas do Estado. O fenómeno se repetiu com o aliciamento aos principais gestores e docentes, e, em muitos casos, ao material pedagógico, como livros e outros, que outrora pertenceram ao sector público.

 

Se tivéssemos que elaborar um ranking das principais escolas no país, notaríamos que as escolas primárias e secundárias privadas se encontram há anos-luz das escolas públicas. Esta, infelizmente, tem sido a tendência que se verifica em outros Estados de natureza neoliberal ou que aspiram a esse estatuto. Todavia, em qualquer um desses países, o que sucede é que os estudantes vão para as escolas privadas almejando um lugar nas universidades públicas. Têm a consciência de que os melhores professores, os melhores laboratórios e as melhores pesquisas continuam sob a responsabilidade do Estado.

 

Ao revisitarmos a lei no.8/2021 – a Lei do Sistema de Segurança Social Obrigatória dos Funcionários e Agentes do Estado, que estabelece uma reforma compulsiva para os funcionários públicos com mais de 60 anos – assistimos, de alguma forma, o mesmo filme bem conhecido que se repetiu com o ensino primário e secundário. Com efeito, esta saída de professores, programada, porém, compulsiva, englobando, grosso modo, 450 docentes e investigadores de todas as instituições públicas de ensino superior, sugere um desinvestimento intelectual, financeiro e moral cujas consequências serão imprevisíveis.

 

De algo podemos ter a certeza. As instituições privadas, que até representam já quase o dobro das instituições públicas, são as grandes beneficiárias de todo o investimento feito na formação de capital humano pelo Estado, à custa de muitos sacrifícios e de uma visão de futuro por parte de todos os sucessivos governos deste país.

 

Nem a indicação de que estes docentes e intelectuais, ora em desligamento, podem ser substituídos, servirá de solução perante a derrocada eminente do ensino superior, pois, não se substitui a experiência e, muito menos, a maturidade. Para se atingirem os níveis mais altos da carreira docente são necessários alguns decénios. Os processos de substituição vão exigir alguma serenidade, acompanhamento, rigor e um sistema de promoções mais célere. Mesmo assim, o argumento de racionalidade financeira, de modo a promover eficiência na contenção da despesa pública é questionável, uma vez que, indirectamente, os reformados continuarão a receber as suas pensões (de fundo diferente, mas ainda assim!) e os seus “substitutos”, os vigorosos graduados da geração da viragem, tornarão ainda mais pesada a despesa pública.

 

As apostas do Estado moçambicano, ao longo dos seus 48 anos de independência, podem até não ter surtido os melhores efeitos para todo o sector da educação, mas garantiram a funcionalidade do sector público, do empresariado nacional e, sobretudo, da estabilidade das instituições.

 

Não questionamos o mérito ou o demérito das dezenas das instituições de ensino superior que foram criadas, e o local onde elas funcionam ou foram instaladas. Uma forma de conferir robustez a estas instituições foi a criação do Conselho Nacional de Avaliação de Qualidade (CNAQ), celebrando agora 15 anos, que estabeleceu os princípios e normas que regem as instituições de ensino superior. Paradoxalmente, o CNAQ tem princípios que podem até comprometer as instituições do próprio Estado, uma vez que com a aposentação destes professores, elas deixarão de ter as exigências mínimas para suportar os seus cursos de pós-graduação.

 

Existe uma expectativa de que as duas mais antigas instituições de ensino superior de Moçambique – a UEM e a UPM – se transformem em instituições de pesquisa e de pós-graduação. Esta é a recomendação dos seus planos estratégicos para os próximos anos. A erosão de capital humano de que deverão sofrer voltará a transformar essas instituições em apenas locais de ensino, e nunca de pesquisa ou de extensão universitária. Este poderá ser o desmoronamento de um sonho de colocar o ensino moçambicano com a relevância que o mundo globalizado exige. Temos já muitos exemplos de estudantes do sector público que brilham em diferentes academias do mundo. Deveríamos ter o dobro ou o triplo destes talentos. Porém, estes desideratos poderão sofrer um sério abalo e poderemos inclusivamente não colocar à disposição do Estado as ferramentas teóricas e conceptuais sobre as quais deveria assentar o nosso desenvolvimento social, cultural, tecnológico e industrial.

 

Estejamos claros sobre o que significará, nos actuais moldes, a reforma obrigatória de docentes universitários. Por um lado, perder-se-á imenso em capital humano, experiência e conhecimento epistemológico, uma vez que os professores visados possuem ímpares qualificações e competências em áreas de especialização, e a sua saída afectará, irreversivelmente, a qualidade do ensino universitário. A sua saída repentina poderá, igualmente, ameaçar a continuidade dos cursos e programas académicos de pós-graduação sob sua responsabilidade ou monitoria. Adicionalmente, as universidades ficarão, repentinamente, com escassez de especialistas em determinadas áreas, muitas delas sensíveis aos desafios de desenvolvimento nacional.

 

Mais grave ainda, a saída compulsiva de docentes poderá impactar, grandemente, a produção científica nas universidades onde vinham prestando serviço, afectando seriamente a sua reputação e relevância. Aliás, um efeito imediato desta medida vai ser exactamente esta: a perda imediata dos lugares nos rankings africanos e globais do ensino superior. Contudo, como dito antes, o ensino privado continuará a ser o maior beneficiário desta medida, pois estes quadros, no auge da sua produção científica, juntar-se-ão à projectos já estabelecidos ou criando novos, formando assim verdadeiros conglomerados que tenderão a monopolizar o acesso ao ensino superior, tornando-o elitista, tal como aconteceu com outros subsistemas de educação.

 

O mercado de emprego mais exigente, sobretudo, as multinacionais e não só, poderão passar a contractar exclusivamente graduados destas instituições privadas, se não quiserem correr o risco de contractar graduados do público, de qualidade questionável nessa altura ou ainda reduzir os seus planos de expansão por falta de capital humano, como já tem estado a acontecer.

 

Por outro lado, o argumento do ajustamento financeiro que justifica a reforma compulsiva parece ser, por sua via, fundamentalmente contraditório. Com efeito, ter na porta de saída um número significativo de docentes implica um igual ou maior esforço de investimento com novos contratos e em capacitações. Isso exigirá excepcionais recursos financeiros e programas de formação.

 

Outro assunto, ainda não devidamente lançado a debate, é o do impacto da reforma nas relações profissionais e interpessoais dentro da comunidade académica – a implementação de uma reforma obrigatória pode gerar insatisfação e ressentimento entre os docentes afectados, com implicações imprevisíveis no ecossistema universitário e tornando pernicioso tanto o engajamento como a colaboração intergeracional, entre os docentes mais novos e os mais experientes.

 

Estes exemplos com o ensino superior podem ser apenas uma ponta de um iceberg que atingirá a saúde, a segurança e áreas sociais afins, sob a capa de se fazerem ajustamentos financeiros e devidos balanços nas folhas salariais, nesta tentativa de redução da massa salarial do sector público que é pesada por outros motivos, mas que não tem, a rigor, nada a ver com os investimentos que ainda precisam de ser feitos em áreas sociais como as da educação e da saúde que, pelo seu estatuto soberano, deviam ser preservadas.

 

A educação é um produto de construção contínua, colectiva e, embora sujeita à reformas, é o garante da identidade de um povo. África e Moçambique perderam muito com a colonização, onde sua identidade intelectual foi brutalmente assassinada e substituída. Com as independências, tentou-se resgatar algo, em especial, o orgulho de se ter um espaço de produção científica nativa, com os seus respectivos desafios. Temos a responsabilidade de garantir este sonho de Mondlane.

 

Por fim, uma verdadeira e sistemática renovação do corpo docente se faz por via de reinstituição de entradas por via de monitores porque estes vêm do acompanhamento dos professores com experiência acumulada. Por outro lado, a saída honrosa mas, também, proveitosa para a universidade que despede, se faz por via da figura de professor emérito, uma figura que continua a servir e a honrar a universidade, para além da reforma.

terça-feira, 20 junho 2023 07:05

Sobre a reforma compulsiva

MoisesMabundaNova3333

Depois de um prolongado sono, este ano, ou mais precisamente, de há uns três, quatro meses, acordamos e logo queremos mandar à reforma obrigatoriamente cerca de 19 mil funcionários e agentes do nosso aparelho do Estado! O que consta, bem, bem, nem, é que no processo de migração dos 400 mil funcionários e agentes do Estado para a nova plataforma electrónica de gestão de recursos humanos, descobriu-se que esses cerca de 19 mil têm 60 ou mais anos de idade e por lei devem ir à aposentação! A notícia não especifica quantos  funcionários exactamente irão à aposentação compulsiva por sector. Aqui e ali, vamos ouvindo que, entre os tais, há duzentos professores doutores da UEM, “muitos” médicos especialistas, quase todos os diplomatas (sobretudo embaixadores) nos Negócios Estrangeiros e… uns tantos magistrados!

 

Quando é que, como país, vamos ter um sistema nacional de estatística profissional, sério, moderno e à altura da “Sociedade de Informação” que vivemos. Não consigo perceber como é que é difícil termos estes dados - ou está

 

-se a ocultar deliberadamente -, quando estamos a falar que 400 mil funcionários foram integrados na nova plataforma electrónica de gestão dos recursos humanos, na sequência da nova tabela salarial única. A estatística é o método científico fundamental para a compreensão racional de qualquer empreitada, assunto ou situação. Sem ela, dificilmente se percebe o que se pretende.

 

De toda a forma, é com estes dados pobres com que temos de viver e formarmos as nossas percepções. O primeiro sapo que não aceita ser engolido é: porque será que só no processo de migração para a nova plataforma electrónica de gestão dos recursos humanos é que se descobriu que há 19 mil funcionários em idade de reforma? Antes disso não se sabia? Como? Não deveria ser o processo de o funcionário ir à reforma um processo normal em que, anualmente, ou de tempo a tempo, alguém aqui e ali vai à reforma ou porque atingiu a idade limite, ou o tempo de serviço? Tenho a impressão que se tivéssemos feito isso, não estaríamos a ser acordados com 19 mil que têm que ser aposentados obrigatoriamente dentro de 15 dias; ou serem barrados dos serviços! Quem não cumpriu a sua parte e porquê? Não cumpriu a sua parte e hoje empurrou o país para uma situação desastrosa destas! Em regiões sérias, haveria responsabilização!

 

Não estou a imaginar o que é mandar para casa de uma só vez 19 mil funcionários e agentes de Estado, entre os quais professores doutores, médicos especialistas, diplomatas, magistrados, docentes, enfermeiros e muito mais! Ao fazer isso, o nosso Estado estará a autofragilizar-se, a autocondenar-se a um paupérrimo desempenho no ranking das nações. Não tenhamos dúvidas. Estamos a dizer que o rácio médico-população é dos mais baixos do mundo… a estatística de 2021 dizia que temos 2500 médicos para 30 milhões de habitantes, o que perfaz o rácio um médico para 12 mil pessoas! E nós estamos a mandar médicos para casa! Há ainda muita falta de enfermeiros e outro pessoal hospitalar nas unidades sanitárias… e nós queremos mandar justamente aquelas pessoas para casa! Anualmente, há défice de professores em todas as províncias e em todos os níveis do nosso ensino, primário, secundário, médio, incluindo nas universidades! E nós vamos mandar docentes para casa! O que pretendemos mesmo?

 

A outra questão: afinal formamos para quê? Para mandar à reforma? É que para termos um especialista, seja médico ou não, um cientista de verdade, um magistrado de categoria suprema, um diplomata de categoria, precisamos de bom tempo; só se chega à tal posição já numa idade adulta. E nós já estamos a mandar reformar todas essas pessoas. Não engulo o rato ou ratinho de que há “professores doutores cujo desempenho é muito baixo e é desses que o sistema pretende livrar-se”! Se os há, os culpados são os gestores/o sistema no seu todo que não estabelecem indicadores de desempenho razoáveis para essa categoria, exigir o seu rigoroso cumprimento e sancionar no caso de inalcançabilidade! Assim, poderia separar-se o trigo do joio.

 

O outro rato que não entra é a ideia de que mandando para casa 19 mil funcionários, vai viabilizar-se a TSU. Vai-se sim sobrecarregar o sistema de pagamento de pensões e condená-lo à falência técnica… já não bastam os falaciosos milhares guerrilheiros da Renamo? O que vai viabilizar a tabela salarial única é a produtividade do país no seu todo, um sistema de cobrança de impostos eficaz e incorrupto, uma gestão incorrupta da coisa pública, uma governação racional, não esbanjadora, nem esbulhadora e um combate sério à corrupção. Enquanto a cobrança de taxas e impostos tiver dois pesos, duas medidas, tipo aquele empresário que importa carrões sem pagar um centavo; duplicação de instituições, tipo dois governadores e governos provinciais, ministérios a mais, esbanjamento e roubalheira do erário público, governação erante danosa e corrupção na sua melhor, tipo 500 milhões para em quatro meses se estabelecer um novo sistema de gestão municipal… não sairemos nunca da situação de solavancos no pagamento das remunerações aos funcionários e agentes do Estado.

 

Dá a ideia de que alguém nos está a sabotar. Não conhecendo esse alguém, registo aqui que estamos-nos a sabotar a nós mesmo!

 

ME Mabunda

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