Abdulrazak Gurnah foi anunciado hoje como Prémio Nobel da Literatura deste ano. A Academia Sueca prossegue, nestes últimos anos, a sua estratégia disruptiva em relação aos favoritos, laureando nomes totalmente inesperados. Sabia que hoje seria anunciado o vencedor deste ano e tinha a ideia de que o mesmo pudesse ser um autor oriundo de uma zona diversa daquela que acumula mais prémios: o Ocidente.
Eu diria que esse propósito não foi cabalmente cumprido. Gurnah nasceu, em 1948, no antigo Sultanato de Zanzibar e de lá saiu aos 20 anos, tendo feito a sua vida e a sua carreira no Reino Unido. É um escritor britânico. Parece-me um dislate quando se diz que se premiou um escritor tanzaniano. Quando ele nasceu, a ilha de Zanzibar nem sequer pertencia à Tanzania. Existia a Tanganyika e o Arquipélago de Zanzibar, que teve sempre um estatuto e jurisdição colonial independente. E mais: aqueles que abandonaram a ilha na sequência da revolução, quase todos, nunca se identificam como tanzanianos. Sobretudo os de origem indiana. Eram e são cidadãos britânicos.
Este autor parece-me ser um caso semelhante ao de V.S. Naipaul, que ganhou o Nobel há precisamente 20 anos, e que nascera em Trindade e Tobago e sempre se viu britânico. Também chegou jovem e fez toda a carreira no Reino Unido. Foi provavelmente o mais virtuoso cultor da língua inglesa entre o século passado e este. Aliás, o intrépido V.S. Naipaul chegou a cortar com uma editora (a Secker) por esta ter redigido na contra-capa de um livro (“Guerrillas”) que ele era um “romancista das Índias Ocidentais”.
Esta tarde ligou-me uma jornalista da RTP a pedir a minha opinião sobre Gurnah. Disse-lhe que falaria na contra-corrente, como anoto agora. Qual era importância do tema colonial, que estava no centro da obra deste escritor? – quis ela saber. Pessoalmente – disse-lhe - não sou um entusiasta das temáticas coloniais e/ou das perspectivas pós-coloniais em voga na Europa. Creio ser uma forma ocidental de ver a História. Nós subscrevemos a perspectiva da libertação: luta de libertação e não guerra colonial, independência versus descolonização, pós-independência e não pós-colonial. Os africanos veem a História numa óptica divergente ou até mesmo antagónica.
Para mim não é importante destacar a origem ou querer forçar uma certa nacionalidade, mas sim a sua obra. E mais: não vejo, por conseguinte, neste prémio, uma distinção a um escritor africano. Nem sequer falo do facto de ele ser mestiço e não ver nisso um impedimento para o considerarem britânico. Coibo-me até de interrogar: será por essa razão (o facto de ele ser mestiço) que o querem forçosamente tanzaniano? Ele é britânico. Escreveu sempre no Reino Unido, foi lá publicado e consagrado. Na Tanzania ninguém o conhece e nem sequer é lá editado.
Vi, aliás, algures referido que depois de Wole Soyinka (Nobel em 1986) ele era o segundo escritor africano negro a ganhar o prémio. Outro disparate. Abdulrazak Gurnah não é negro. Não me parece sequer que isso seja importante, no caso. Nem creio ter sido esse o critério. Premiou a obra. A Academia, caso quisesse outorgar a láurea a um escritor negro africano, cuja escrita fosse de raiz marcadamente africana, tinha, quanto a mim, duas possibilidades: ou dar o prémio ao queniano e veterano Ngugi wa Thiong´o (eterno candidato) ou premiar Chimamanda Adije Ngozi, autora nigeriana, das mais brilhantes da nova literatura africana.
Pergunto-me, agora e a terminar, sem sequer fazer chacota: passa mesmo pela cabeça de alguém considerar Freddie Mercury – que é, curiosamente, o meu mais favorito cantor -, nascido também em Zanzibar, justamente dois anos antes de Abdulrazak Gurnah, um cantor tanzaniano?
Maputo, 7 de Outubro de 2021
Falar da vida e obra de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos é, e será sempre um exercício que exige elevada capacidade de abstração para narrar todo um percurso e uma trajectória (caracterizados por suas incansáveis lutas, suas vitórias e porque não suas derrotas), e todos eventos que caracterizaram a odisseia religiosa, educacional e humanística desta que é uma figura incontornável na história do nosso vasto Moçambique. Para não pecar por soberba, e não perder de vista o objectivo deste texto de agradecimento, enaltecimento e despedida, focar-me-ei apenas no cerne - Um Homem ao serviço de muitas causas.
A Época Medieval é cronologicamente considerada o período mais longo da História da Humanidade (com mais de 1000 anos). Período este que viu florescer o surgimento das primeiras Universidades no mundo. Nesta época, a Filosofia e a Teologia viveram de forma única a rivalidade entre a fé religiosa e a razão científica; um conflito que opunha a religião à ciência e desafiava a cada instante a tentativas de conciliação e harmonização destes dois domínios do saber sem necessariamente anulá-los, numa fórmula traduzida na fé alicerçada na razão e, na razão que ajudaria a perceber a fé. (Intellectus quaerens fidem, et fides quarens intellectum.
Um dos mais brilhantes e notáveis pensadores da época em alusão foi São Tomás de Aquino - (figura que desempenhara tremenda influência na cosmovisão teológica e educação de Sua Eminência O Senhor Cardeal Dom Alexandre), que durante o seu percurso académico foi instruído por Alexandre Magno (Ou Alexandre o Grande). Curiosamente, o nome Alexandre, mestre de Tomás de Aquino é o nome de baptismo do Senhor Cardeal - Aproximações e coincidências que corroboram para ideia da grandeza do nome em referência.
De certo, nestas breves linhas será complicado trazer o espelho dos 103 anos em que o Cardeal viveu e fez viver, disseminando a fé, espalhando a esperança, semeando amor, educando o seu povo e proliferando ensinamentos. E nesses 103 anos teve o prazer de colher os primeiros frutos da sua incansável luta por uma sociedade mais capaz, mais justa e intelectualmente emancipada. E são esses frutos que devem se encarregar de assegurar e alargar o escopo do outrora iniciado.
Dom Alexandre foi muito mais do que uma figura religiosa e eclesiástica destacada, e comprometida na causa do bem estar social, do crescimento, da coesão no seio da Igreja Católica e do catolicismo em Moçambique, do Ecumenismo vibrante e da difusão da mensagem de Deus por todo o lado e em várias línguas. Para ele a fé tinha o poder de quebrar barreiras e unir povos (sejam eles considerados civilizados ou indígenas), e para isso as línguas nativas serviram de veículo e ferramenta estratégica de penetração e evangelização nas comunidades.
Foi um incansável peregrino da paz; astuto e apaixonado amante pela ideia de uma educação para todos e em todos níveis. Sua filosofia e ideia transformadora era clara – somente investindo mais e expandindo a educação se poderia criar bases sólidas para emancipar e desenvolver a nação, e consequentemente sonhar com um Moçambique mais inclusivo e mais próspero. Daí a sua luta assaz contra a pobreza absoluta e o seu compromisso vincado com a formação sistemática do Homem.
Sua grandeza transcende a imagem que muitos de nós temos – Patriarca da Igreja, primeiro Sacerdote e Bispo moçambicano. Na verdade Dom Alexandre foi um cultor, um educador visionário e um humanista douto com visão ampla da realidade do país e com cega convicção de que a educação do homem conduziria à libertação e à emancipação das mentes dos moçambicanos.
Dos vários momentos de partilha, fossem eles na Universidade, na Igreja e nos Seminários bem como em eventos vários públicos e privados, algo deliberadamente se repetia, entre a preocupação presente e os sonhos futuros: o paradoxo entre a riqueza do país e a incapacidade de transformar essa riqueza em algo útil para os moçambicanos. Segundo ele, Moçambique não é um país pobre; muito pelo contrário, é muito rico e mal explorado. O problema reside na falta de preparo e no défice enorme de conhecimento e precisa de mentes para transformar sua riqueza no bem-estar de todos.
As lentes visionárias do futuro, a crença na mudança de paradigma social, económico e educacional, e a transversalidade primeiro do seu pensamento, e depois da sua acção fizeram de Dom Alexandre José Maria dos Santos uma das figuras de Moçambique Contemporâneo de maior destaque, com projectos e obras transgeracionais que vão desde a formação de Padres dentro e fora do país, passando pela intermediação do conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), à formação de vários quadros superiores em várias áreas e domínios do saber.
Dom Alexandre, fora um dos mais sagazes impulsionadores das artes liberais e ciências do espírito no país, e desafiou centenas de jovens estudantes universitários e seminaristas (fazendo uso de ferramentas éticas, teológicas, filosóficas, e humanísticas) a pensarem com liberdade intelectual, e de forma crítica e analítica contribuírem para edificação de um Moçambique melhor. Fora um cultor do saber Ser, saber Estar e saber Fazer. Fora acima de tudo alguém muito preocupado com as questões éticas e com a dimensão da dignidade humana– ditames estes herdados da Filosofia Escolástico-Medieval de São Tomás de Aquino.
E é sobre estes e outros feitos de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre, que nós, a geração do hoje devemos assentar a nossa reflexão e acção. Replicar vivamente sobre as gerações vindouras e incutir a necessidade permanente de pensar no Outro; Uma reflexão centrada no homem concreto como um fim e não como um meio. Viver e ensinar a criação de modalidades e estratégias de desenvolvimento do que fora iniciado por Dom Alexandre.
A coragem para iniciar novos e ambiciosos projectos, a ideia viva e prática do altruísmo, o espírito de criar e buscar novas realidades, e o desejo de ver um país mais educado, desenvolvido e próspero são algumas das licções práticas que Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre nos deixa. Foi mais de um século de um Homem talhado para a vida do bem estar do próximo. Saibamos viver e honrar os seus feitos, os seus ensinamentos e imortalizar sua obra fazendo do nosso país uma referência no rendezvous civilizacional.
Obrigado e até sempre Cardeal Dom Alexandre
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)
Passam sensivelmente três meses depois que tivemos, na Manhiça, província de Maputo, segundo os escribas, o pior acidente de viação de sempre no nosso solo pátrio. Estávamos na primeira semana de Julho passado. Um autocarro da Transportes Nhancale tentou ultrapassar um camião numa curva e foi chocar com outro que vinha no sentido contrário e trinta e duas vidas foram ceifadas! Foi o alvoroço e pânico jamais vistos. Choque e tristeza absolutas. Foi muita morte de uma vez nas nossas estradas. Uma comissão de inquérito foi instituída e, em cerca de dez dias, trouxe o relatório: tratou-se de erro humano! O automobilista desrespeitou a fraca visibilidade, a curva e excedeu a velocidade! Esta foi a causa principal apontada pela comissão. A propósito, o que mais aconteceu aos sujeitos deste acidente: a transportadora, os perecidos, os feridos, as viaturas danificadas e as pessoas afectadas? Entre nós, o silêncio não significa que está tudo bem, não!
Confesso que não tive acesso ao relatório, portanto, não o li. Mas confesso também que concordo plenamente com a constatação da comissão de inquérito. Pretender uma ultrapassagem numa curva mais ou menos apertada; um autocarro de passageiros de grande calibre a andar a grande velocidade; um camião avariado mal sinalizado na berma da estrada; e passageiros viajando no autocarro a ser mal conduzido por um motorista mas mantendo-se silenciosos e até a encorajarem-no… tudo isto são, efectivamente, erros humanos! Ingredientes mais do que bastantes para termos um aparatoso acidente. E como são. E tivemos o acidente!
Semana passada tive de percorrer a estrada nacional número um (EN1) por imperativos de serviço. Foi uma viagem que me levou de Maputo a Temane (Inhassoro). Íamos três colegas na viatura, uma Ford Ranger dupla cabine novinha em folha. Na ida, conduzia o meu colega, até Maxixe, a partir de onde me sentei ao volante até Vilankulo, onde pernoitamos e depois fomos a Inhassoro. No regresso, aí sim, senti bem todas as peripécias, provei e bem o "pão da massa que o diabo amassou”!.
Depois desta longa viagem, cerca de 1600 quilómetros (800 na ida e outros tantos no regresso), estou em condições de dizer de viva voz que estamos diante de um corredor de morte. Esta via é um corredor de morte! Há mais causas dos acidentes de viação nas nossas estradas, sobretudo neste troço do que as apontadas. Incluindo o erro humano.
Conduzir na nossa EN1 é um calvário. Ê conduzir num precipício. Isso mesmo: conduzir num precipício. E nesse sofrimento todo acaba ocorrendo o erro humano. O piso da nossa estrada, sobretudo de Maluana até Incoluane, não está bom. NÃO ESTÁ BOM! Não dá estabilidade nem segurança à viatura seja ela de que natureza ou calibre for. É um piso instável, não liso, em que a viatura abana perigosamente. Este estado de piso, só ele, é ingrediente mais do que bastante, quando conjugado com uma velocidade acima de 100 quilómetros por hora, para a ocorrência de acidentes. Pior numa situação de fraca ou pouca visibilidade. E também quando conjugada com a estreiteza (pequenez) da faixa: quando é que teremos uma espécie de circular de Maputo até… Nampula/Pemba/Lichinga? Receio que seja no Dia de São Nunca!
A outra causa de acidentes neste troço é a falta de marcação no pavimento, no chão; a falta de sinalização. Parece que as fábricas de cal fecharam entre nós. Daqui até Inhassoro, a nossa pobre “auto-estrada” ou näo está marcada simplesmente, ou a tinta branca está bastante gasta, invisível. Aquelas linhas brancas que orientam e facilitam ao motorista NÃO EXISTEM! E à noite a condução torna-se muitíssimo difícil, bastante propenso ao “erro humano”! Que tal se cada província pintasse o troço que atravessa o seu território, já que a ANE inexiste? Teríamos a nossa estrada… qual corredor de morte… em condições mínimas! Que tal?
Mas os nossos “erros humanos” não se esgotam com a falta de marcação/sinalização da estrada. Já agora, devíamos esmiuçar o que entendemos por erro humano, ou alargar um pouco o seu sentido. Tudo o que se enumerou até aqui são erros humanos: piso não em condições, excesso de velocidade, ultrapassagem em curvas, desrespeito à fraca visibilidade, não marcação do chão da estrada, etc., etc.!
A falta de informação, a ignorância no motorista em viagem é outra das causas de acidentes nas nossas estradas. Em viagem, o automobilista nunca tem informação de espécie alguma. Não há nenhum aviso sobre as condições do piso (por exemplo, na região entre Manhiça e 3 de Fevereiro), nem da estreiteza da faixa. Há chapas que nos avisam sobre a curva e velocidade a observar, embora escassas, pois há mais chapas a indicarem a velocidade limite do que a indicar o fim daquela limitação. Não são suficientes! Saindo de Maputo, são escassas, bastante escassas as chapas indicando distâncias; nunca sabes regularmente quantos quilômetros faltam para chegares a um ou outro sítio, ou mesmo ao seu destino. Só andar, andar, andar e mais andar! Entre Maputo e Xai-Xai, há-de encontrar uma ou duas; entre Xai-Xai e Maxixe… uma, ou não há nada!; entre Maxixe e Pambara, uma ou nada! Ora, isto não é bom para um motorista; cria ansiedade e nervosismo, o que traz instabilidade emocional, que um motorista não deve ter enquanto ao volante!
E colocar chapas de distância a cada 100 quilômetros não custa absolutamente nada! Mesmo custando, são imperiosas para a nossa segurança rodoviária. Será que só vamos ver chapas de distância somente na África do Sul e Suazilândia? Nós não conseguimos colocar nas nossas estradas?!...
Para mim, são mais estas as causas dos acidentes na nossa única estrada… corredor de morte! Assim, estamos à espera do próximo desastre!
ME Mabunda
Viver em Moçambique é maning nice. Você tem tudo que quiser, a qualquer hora e momento, desde que tenha condições para tal. Viver em Moçambique exige coragem e coração de ferro. As histórias de vida de cada moçambicano, se forem transmitidas como uma série televisiva diária, vencem qualquer concurso cinematográfico.
A juventude moçambicana vive nos extremos entre o bem e o mal. Entre o certo e o errado. Entre o real e o aparente. Alguns labutam por 12 horas para ter apenas 50 Meticais diários. As prostitutas de cá enfrentam um mandingo com a pila de cavalo em troca de um pão com badjia. As famílias mais necessitadas e residentes em comunidades recônditas oferecem as suas filhas donzelas e em idade escolar a idosos sedentos de sangue jovem para diferentes destinos. Geralmente, o que a família quer é apenas se livrar de um “fardo” ou em busca de um cabo de enxada para cultivar a terra. Enfim, a pobreza propicia fórmulas erradas na Pérola do Índico.
Para os mais informados e formados, na Pérola do Índico, existem diferentes fórmulas para vencer o problema. Para os políticos, a estratégia é prometer e não cumprir. Dirigir, no seu tempo, e roubar até o direito de o povo descansar em paz, quando morre. Falar que luta contra a corrupção, mas, na verdade, é o “CR7 da corrupção”. Nas telas televisivas, eles dizem que estão interessados na paz efectiva, porém, por detrás das cortinas, encomendam perseguições políticas e sociais aos críticos ou opositores – A questão é fazer de conta que estão comprometidos no desenvolvimento integral do País, enquanto, na verdade, é apenas uma fórmula – fazer de conta!
Durante muito tempo, o povo quis saber sobre os contornos do maior calote em Moçambique. Chegando ao julgamento, algumas figuras mais esperadas procuram outras fórmulas para zarpar da acusação, levando o assunto para a lama – Outros activam o neurônio da negação e, até, dizem que não se lembram das suas contas bancárias chorudas de notas de rand e dólar. A trama está montada. Os cálculos estão feitos – Levar o assunto para uma mata perigosa, onde só existem leões e leopardos – É uma fórmula que pode vir a resultar – A fim de fazer com que o caso perca o rumo e a culpa morra solteira.
É assim que se faz na Pérola do Índico, onde se saqueia mais de 170 milhões de meticais ao Estado, vai-se ao julgamento, é-se condenado, recorre-se da sentença e, no dia seguinte, torna-se palestrante sobre como ser um empresário de sucesso – Assim a vida anda na Pérola do Índico.
As fórmulas, aqui, são várias. Das boas às más. Alguns conseguem os seus primeiros milhões e andam pela cidade distribuindo notas pelas ruas ao estilo de Muammar Khadafi. Dias depois, percebesse que a ideia era ganhar mais seguidores nas redes sociais, vendendo uma falsa imagem de boa vida e de homem de negócios com sucesso. Tudo é uma fórmula de exaltação e reconhecimento social baseado na falsa aparência e de venda de identidades robóticas a custo da fama.
Nas redes sociais, em particular o Facebook, os sabichões são vários. Existem aqueles que tudo sabem e sempre têm a razão. Experimenta desmentir-lhe algo, será bloqueado ou banalizado. A ideia é fazer de conta que sabe tudo mesmo. O engraçado é que parte deles perde oportunidades de emprego porque só tem um nome sonante devido a certos trabalhos realizados em tempos secos, mesmo nesta época que em cada área existem mais quadros formados e especializados, tudo fica claro.
Na Pérola do Índico, você encontra pesquisadores que se apoderam de pesquisas dos outros sem remorso. Que coragem é esta de levar um trabalho feito com sacrifício e publicar taxativamente como seu e, ainda, ir à Televisão vender a ideia naturalmente – Quanta sacanagem, nem!?
Ontem, todos criticavam os que mamaram a massa das dívidas ocultas. Entretanto, o engraçado é que alguns estão lá do lado daqueles que combateram e lideraram marchas contra eles, exigindo “Direito à esperança”. E o que a esperança fez!? – Colocou-os nas folhas de pagamento dos destratados de ontem – Aqui a vida é assim, não há vergonha. Outros dirão que é tudo em nome da profissão! Será?
Na Pérola do Índico, a corrida para a riqueza fácil trouxe fórmulas hediondas de enriquecimento. Hoje, policiais e oficiais do SERNIC lideram gangues do crime organizado que sequestram, matam e até violam mulheres. Militares desertam para as fileiras do terrorismo que está a destruir a esperança do povo e criou traumas insuportáveis para alguns dos sobreviventes (...).
No julgamento televisionado, a ideia que já se vendeu é que todos que estão a ser julgados são culpados, o que pode ser e não ser verdade. O julgamento do momento não é a solução das nossas desgraças (...), pelo menos, enquanto forem os “consultores/ intermediários” que estão a ser julgados – O engraçado é que só se fala dos 50 milhões de dólares do success fee e o verdadeiro dinheiro mamado parece já ter sido recuperado e os envolvidos, condenados, o que não é verdade.
Seria bom que todos os que diabolizaram está Pátria estivessem, hoje, vestidos da laranja mecânica, naquele pátio, onde se encontram presos os maiores bandidos do País. Seria interessante que todos aqueles que constam na “Tabela de Nhangumele”, conforme nos elucidou Juma Aiuba, estivessem naquela tenda, contando-nos quantos iates e resorts construíram com a mola das dívidas ocultas.
Mas o cálculo já foi feito, com fórmulas devidamente criadas. Leva estes tipos para o julgamento, condena-os e, depois, cada um irá se virar no Tribunal Superior de Recursos. Outros integrantes da quadrilha continuam a fazer das suas e a criar novas dívidas naturalmente – ninguém vai piar.
Na Pérola do Índico, experimente seguir viagem ao longo da EN1 ou em qualquer estrada dita nacional. Meu caro, se o bolso não está preparado, você será exemplo de combate à corrupção para alguém. Contudo, se alimentar a fila no troço como Nampula–Mocuba, pode até passar com drogas pesadas na bagageira e ninguém o irá incomodar.
Ademais, ainda prevalece a famosa sopa, que circula em tudo que é sector de actividade do Estado e dos privados. Nos hospitais públicos e privados, se você não molha a mão do Médico ou da Enfermeira, o anjo da morte virá levá-lo. É preciso ter uma mente de psicopata para se viver nesta terra, meu caro, onde os narcotraficantes, actualmente, já enterram drogas nos quintais das casas onde arrendam e vendem a droga a preço de amendoim, de tanto armazenarem.
As nossas fórmulas de vida são várias, aqui, na Pérola do Índico, onde um Inspector da Acção Social consegue viajar 500km para ir doar 800 Meticais a uma família e a sua ajuda de custo seja de 30 mil Meticais. Onde o Secretário do Bairro, em conluio com funcionários da Acção Social, apoderam-se dos subsídios da Covid-19. Onde as raparigas e mulheres, nas zonas de conflitos, recebem comidas em troca de magostoso (relações sexuais). Onde, no período eleitoral, a CNE e o STAE levam meses, supostamente, a contar votos, enquanto, na verdade, o processo deveria ser de uma semana. Onde a EDM e a PRM entram em acção, em cada pleito eleitoral, para mostrar as suas habilidades – É assim na Pérola do Índico – Pergunte aos Madjermanes, os trabalhadores da secreta, alguns da CFM e as famílias das pessoas que morreram no campo 25 de Setembro, em Nampula, durante um showmício de campanha eleitoral, o que é feito dele(as) – Assim a vida anda na Pérola do Índico!
Egídio Guambe[1]
O início da agressão militar no extremo norte de Moçambique, em 2017, multiplicou pesquisas e opiniões sobre as variáveis explicativas das acções contra o Estado e suas populações[1]. Num momento em que o país esperava colher resultados significativos do sector extractivo, encorajados pela descoberta de grandes quantidades de jazigos de gás natural na província de Cabo Delgado, todos sectores foram surpreendidos com a eclosão de um conflito feroz e impiedoso.
Neste período, alguns estudiosos sobre conflitos militares moçambicanos, estavam empenhados em trazer para o debate, uma nova perspectiva sobre a guerra dos 16 anos e que tinha oposto a guerrilha de Renamo contra o Estado Moçambicano. De facto, desde 2015, um projecto de estudo sobre a guerra civil sob a direcção de Eric Morier-Genoud, Michel Cahen e Domingos M. do Rosário estava em curso e que viria a resultar, mais tarde, na publicação de um livro, em 2018[2]. Quando era esperado se abrir um outro ângulo de debate e entendimento das motivações da guerra civil[3], o espaço público começou a ser ocupado por relatos de ataques perpetrados por actores pouco conhecidos, posteriormente denominados “insurgentes” ou ainda “MaShaababes”[4].
Na verdade, o conflito entre a guerrilha da Renamo e Governo da Frelimo tinha ressurgido em 2012, com intensidade variada[5] e contornos internos dentro da Renamo, que tinham originado o surgimento da Junta Militar da Renamo[6], depois da morte de Afonso Dhlakama, em 2018. As dinâmicas militares e políticas deste conflito, porém, ficaram relativamente pouco mediatizadas em resultado do desenvolvimento dos ataques extremistas, dos ditos insurgentes, no extremo norte.
O conflito no extremo norte não suscitou logo grande interesse de pesquisas por parte de estudiosos para testar as diferentes perspectivas até então defendidas para entender as guerras em Moçambique. Aliás, as autoridades públicas não assumiram de imediato a seriedade deste conflito, tendo-se refugiado na produção de narrativas de minimização da violência provocada pelos insurgentes. Algumas perspectivas, que exploram a dimensão religiosa dos conflitos, tentaram, de forma tímida, analisar a situação, sem nunca associar o conflito com uma organização bem estruturada[7]. Em parte, a ausência de um interlocutor e de uma comunicação clara dos atacantes pode ter contribuído para que não fosse possível construir um discurso bem estruturado sobre o conflito. Ademais, as autoridades públicas recusam-se declarar a situação como “Estado de guerra”.
Os primeiros estudos[8] a assumirem uma certa postura vigorosa sobre o processo usaram, até certo ponto, a abordagem antropológica que tinha sido inaugurada nos anos 1980 para entender as razões da afirmação da rebelião da Renamo, sobretudo na província de Nampula[9]. Grosso modo, a variável social-económica (incluindo religiosa) encontrou espaço para explicar a adesão ao extremismo contra o Estado e suas populações. Aliás, de acordo com esta perspectiva, a tendência seria de alastramento por toda região norte, sobretudo entre as províncias de Niassa e Nampula, muitas vezes apresentadas como zonas de recrutamento. Paulatinamente, registou-se a multiplicação de estudos que seguiam a explicação social, nomeadamente: questões de integração, inclusão económica, acesso ao emprego, desigualdades de acesso aos recursos da indústria extractiva, o capital internacional, dentre outros[10].
Estas pesquisas, esforçando-se em ler uma realidade emergente, parecem terem marginalizado o ângulo referente à capacidade do Estado de se impor, como actor legítimo na gestão da sociedade[11] naquela região. Se é verdade que a variável social-económica foi sempre apresentada como resultado da fragilidade do Estado, este nunca foi estudado pelo ângulo da sua afirmação como força coercitiva e de produção de “dispositivos de dominação”[12]. O Estado, com efeito, se define também pela sua capacidade de produzir ferramentas de dominação de modo a maximizar a sua “chance de encontrar indivíduos (sociedade) predispostos a o obedecer”[13]. Dito de outra forma, a preparação do espaço de exercício de poder de Estado significa combinar o binómio dominação/submissão, assim como a ordem/obediência. No entanto, os estudos acima citados centraram-se apenas na dimensão de submissão e obediência, deixando de parte a natureza, a dimensão ordem/obediência que confere a afirmação coercitiva do Estado na região. E, finalmente, não se sabe como é que historicamente se construiu uma representação de Estado na região, ou seja, o que as populações entendem/percebem sobre o Estado e o que os motiva a se rebelar ou a apoiar a rebelião contra Ele[14].
Ler o conflito no norte, através deste ângulo, parece estimulante para entender as transformações dos modos e das modalidades de governar/governance, as construções recíprocas entre o Estado e a sociedade, os divórcios e as fragilidades da sua relação. Esta perspectiva parece a mais fecunda para reflectir sobre reorganização do Estado na região, numa altura em que os avanços militares estão a restabelecer a ordem, pelo menos, do ponto de vista de afastamento dos ditos insurgentes.
Resumidamente, explorou-se o seguinte: (i) uma perspectiva histórica da sociologia política de afirmação da autoridade do Estado na região norte, que inclui, Niassa e Cabo Delgado. Isso fez-se através de um recuo desde o período da instauração do aparelho administrativo colonial para mostrar as deficiências da trajectória de imposição da força do Estado (ou dos seus dispositivos de dominação) e que podem ter contribuído para facilitar a estruturação e a aceitação de uma rebelião (social) contra Ele. (ii) Em seguida, propõem-se algumas pistas de reflexão em termos de políticas (ferramentas) de organização do Estado para a reafirmação de seu aparelho administrativo, de negociação de força de dominação da sociedade, ou seja, de construção social da chance de aceitação como entidade social de gestão comum - única capaz de exercer a violência legítima.
Para apreender as dinâmicas de relações entre o Estado e a sociedade na região extremo norte de Moçambique é necessário fazer um recuo para a época da tentativa de afirmação do aparelho administrativo colonial. Existem variáveis, no “tempo longo”[15], que participam na estruturação desta relação e podem ser fundamentais para explicar a (in)capacidade do Estado de se impor, como actor legítimo de gestão da sociedade. A cultura administrativa, isto é atitudes, crenças e representações por parte da sociedade tanto em relação a administração, assim como sobre o Estado, é uma construção social no tempo. Há, na história de Moçambique, três momentos importantes que permitem perceber as tentativas de territorialização do Estado no norte de Moçambique, nomeadamente: (i) a administração da companhia do Niassa; (ii) a instauração do aparelho administrativo colonial; e (iii) instauração do Estado pós-colonial, incluindo as suas tentativas de reformas.
As primeiras tentativas de montagem de um aparelho administrativo em Moçambique foram resultado de uma obrigação de materializar uma colonização efectiva por parte de Portugal na sequência da Conferência de Berlim (1884-1885)[16]. A fraca capacidade capitalista e administrativa de Portugal na altura ditou que houvesse uma cartografia diferenciada na dominação do território. O norte foi confiado a uma companhia majestática (de capitais não português), a Companhia de Niassa (as actuais províncias de Niassa e Cabo Delgado). Na verdade, não existiu uma Companhia de Niassa única, ela conheceu configurações variadas (Ibo Syndicate, Ibo Investiment Trust, Nyassa Consolidate) de acordo com os capitais estrangeiros investidos. Numa região que conheceu uma presença portuguesa tardia[17], se comparada com a região de Sofala; (seculo XVI) ou ainda o sul, com o fim de império de Gaza 1895/97, o exercício da companhia foi reduzido a uma tentativa de instaurar uma ordem colonial. As dificuldades de implantação associadas às fragilidades financeiras inviabilizaram a possibilidade de a companhia instaurar uma máquina administrativa na região. O compromisso principal de construção do caminho-de-ferro de Porto Amélia (Pemba) para Niassa, por exemplo, nunca foi concretizado[18]. As actividades da companhia concentraram-se finalmente na cobrança dos impostos, designadamente, o imposto de palhota, a ponto de fazer disso uma obsessão[19]. O imposto de palhota foi mais agressivo no norte de Moçambique do que noutras regiões do país. Havia aqui um paradoxo. A companhia do Niassa não desenvolvia actividades remuneráveis que servissem de base de rendimento, que permitissem as pessoas terem dinheiro para pagar impostos. A obsessão pelo imposto participou, contrariamente ao esperado, na aceleração dos níveis de migração das populações para os países vizinhos, em particular para a Tanzânia e Quénia. Estima-se entre 3.000 a 5.000 pessoas emigravam anualmente para a Tanganyika[20]. Se a Companhia do Niassa logrou preservar a soberania portuguesa e permitiu que o território sob sua gestão fosse reconhecido internacionalmente[21], ela não foi capaz de instaurar o reconhecimento administrativo. Ou seja, não construiu dispositivos administrativos de aceitação do Estado colonial[22].
Quando em 1929, os direitos de exploração pela Companhia de Niassa expiraram, o Estado Português (na época de Salazarismo) recusou renovar. Nesta altura, o norte de Moçambique ainda não estava totalmente pacificado e algumas partes da região não tinham conhecido nenhuma administração colonial. A administração colonial portuguesa herdou uma estrutura precária de relação com as populações e sem um mínimo de aceitação do Estado. Apesar de algumas tentativas de reforma e cooptação/criação de autoridade gentílicas[23], rapidamente a administração local portuguesa se mostrou incapaz de fazer uma gestão relativamente legítima naquela parte do país. As migrações continuaram e se tornaram o principal imaginário das populações, dado que eram sobretudo os migrantes que desenvolviam actividades de algum rendimento, tal foi o caso de Lázaro Nkavandame[24]. Nem o sistema administrativo da Companhia do Niassa nem o do Estado Português permitiram a construção da legitimidade das autoridades portuguesas na região. Aliás, progressivamente, algumas figuras coloniais instauradas foram perdendo importância aos olhos da população indígena e formando uma escola de contestação do sistema colonial, sobretudo a partir da dinâmica migratória como resultado directo da dificuldade e violência aplicada. Quando ocorreu, por exemplo a banja de Mueda, em 1960, que resultou num massacre, o sistema colonial Português na região não tinha capacidade de controlar a rebelião. Esta situação, obviamente funcionou como estrutura de oportunidade para acomodação do início da contestação colonial e desenvolvimento dos movimentos de libertação.
A gestão directa portuguesa da região durou apenas três décadas desde o fim da Companhia do Niassa (1929) ao início oficial da luta armada de emancipação colonial (1964). A entrada da Frelimo na região foi colhida com algum sucesso. À medida que os colonos abandonavam o território, a Frelimo organizou a população nos espaços vazios do poder colonial, “zonas libertadas”. A articulação entre a população e a Frelimo nessas “zonas libertadas” constitui o embrião da imaginação política pós-colonial[25]. No conceito, o Estado pós-colonial surgiria do alargamento da confluência entre os diversos actores à imagem da experiência das zonas libertadas[26]. Com efeito, o contexto de auto-defesa necessária contra os bombardeamentos e operações militares portugueses, assim como a vontade de emancipação da exploração colonial produziu uma adesão às propostas de administração da Frelimo, o que dissimulou uma certa legitimidade dos dispositivos do Estado em construção. Na verdade, houve uma aceitação em função do desenvolvimento da própria guerra. Os dirigentes da Frelimo em aliança com certas elites locais, “aliança de conveniência”, ficaram confortados com o sentimento de que a simpatia da população reflectia a sua adesão ao seu projecto político, o que veio a não se concretizar completamente[27]. Houve, na verdade, o que alguns autores chamaram de “mal-entendido”[28]. A confluência conjuntural de interesses não continuou depois da guerra de libertação. Assim, depois da transformação das zonas libertadas em “aldeias comunais”, os camponeses desconfiavam do projecto de organização proposto pela Frelimo[29]. Com efeito, os centros de decisão depois das zonas libertadas tinham-se afastado dos lugares de execução, as decisões já não eram mais fruto de discussões locais, mas provinham de orientações irreversíveis[30]. As dinâmicas de instauração da administração no norte, se basearam nas alianças clientelistas com uma certa elite que tinha acomodado o desenvolvimento da guerra de libertação na região[31] em detrimento de outras cujo modelo de organização social não se conformava com as ideias das elites políticas centrais.
A gravitação da formação do Estado pós-colonial no extremo norte do país, sobretudo para a província de Cabo Delgado, foi imaginada em termos de recompensas clientelistas. A narrativa popular para aquela província, com efeito, não deixa de estar associada, até nos dias de hoje, ao envolvimento de uma parte da elite (relativamente formada nas missões católicas do período colonial) na guerra da luta de libertação, com o controlo político da província. A cartografia eleitoral não cessa de mostrar o quanto os resultados eleitorais do partido no poder naquela região são associados a forte presença de uma elite local no topo do partido governamental[32]. Com efeito, o projecto político pós-colonial para a região desenvolveu-se numa perspectiva paternalista, até certo ponto, asfixiante, na medida em que se baseou numa tendência de redistribuição clientelista do poder entre o Estado e elite da região, em particular aquela que tinha participado na luta anti-colonial. Este mecanismo configurou-se sobretudo em dois mecanismos: o primeiro na base de alianças facilitadas pelas ajudas ao desenvolvimento (com um boom de ajuda internacional, que inclui a instalação de ONGs e actores internacionais)[33]. Uma segunda, na base de uma incorporação das elites locais na estrutura administrativa do Estado[34] sobretudo ao nível local. Foi sobretudo a partir desta última abordagem que se pretendia mobilizar a elite local, como factor estruturante da relação na região, sobretudo Niassa e Cabo Delgado, com as dinâmicas da formação do Estado. Elites políticas originárias da região foram identificadas como “corretores” da integração da região no projecto do Estado. E, por via disso, a estrutura administrativa embrionária seria pilotada a distância por esta elite intermediária já instalada no centro do poder. No entanto, esta via, muito rapidamente, foi perdendo relevância. Aos poucos, registou-se uma ruptura entre as elites originária da região no topo da Estrutura do Estado e as locais. As reformas neoliberais e as “privatizações silenciosas”[35] viriam agravar a situação, originando o que Harry West denominou de “carnificina social” para se referir, grosso modo, ao entendimento popular de que a elite tinha se transformado em exploradora e os tinha abandono[36]. As dinâmicas de democratização, sobretudo a descentralização, associadas com o exacerbar do clientelismo, corrupção e enriquecimento substancial e rápido das elites originárias da região e suas famílias foram interpretadas pelas populações locais como um abandono do Estado[37]. Finalmente, o projecto de instauração do Estado ou, pelo menos, a preparação de instrumento de dominação na região não logrou instaurar a sua legitimidade mantendo a região propensa a contestação da autoridade do Estado. O contexto actual de conflito no extremo norte parece ser fecundo para um novo questionamento sobre os dispositivos de negociação da autoridade legítima do Estado na região de Niassa e Cabo Delgado.
Desde o ano de 2017, o extremo norte do país é vítima de ataques que causaram mortes e destruição de infraestruturas administrativa do Estado e de bens privados. Por algum período, partes do território ficaram “sem Estado”. A polícia e a Administração dos distritos de Mocimboa da Praia, Macomia e Muidumbe se refugiou para a cidade de Pemba. A reorganização das forças armadas de Moçambique e o apoio recebido de diversos quadrantes para debelar o inimigo trouxeram a esperança do regresso a paz e a normalidade para as populações, que se viram forçadas a abandonar os seus habitats naturais. Se o retorno da normalidade pela força militar parece estar a ganhar espaço, é preciso que este se associe com uma restauração da administração pública, que combine a sua dimensão assistencialista através de provisão de serviços públicos, sobretudo de reconstrução, mas também uma afirmação de dispositivos de dominação definitiva do Estado nesta região (não só a região que esteve sob domínio dos insurgentes, mas também em outras partes do país se bem mapeadas). Para esta reflexão tem-se duas perspectiva, que parecem estimulantes, sobretudo tendo em conta a histórica deficiente de afirmação legítima da autoridade de Estado na região.
Como argumentado acima, a política pós-colonial de construção de Estado na região baseou-se muito nas alianças dos tempos de luta de libertação anticolonial. Com efeito, para um período embrionário, logo a seguir a descolonização, os antigos combatentes, que tinham permitido avanços da luta, eram actores legítimos e importantes para a implantação do Estado. Com o tempo, as dinâmicas locais conheceram mutações consideráveis, que não mais se encaixavam nas intermediações destes. As próprias elites foram se apropriando das linguagens da acumulação de capital económico e, muitas vezes, se aproximando mais ao capital transnacional, como têm sublinhado os estudos do sector extractivo[38], do que com a realidade social local. Na verdade, estes actores serviram como pontos de encontro e de negociação do Estado, mas converteram-se também em proprietários de exploração de recursos locais[39]. A sua legitimidade vis-à-vis a uma nova realidade local foi se deturpando e se divorciando com novas dinâmicas. Por exemplo, se estas elites de intermediação eram legítimas para uma população que tinha vivido o sofrimento colonial e eram vistas como tendo desempenhado um papel importante na sua emancipação, os tempos mudaram. A população com menos de 40 anos, que não viveu a experiência colonial, e mesmo a de menos de 25 anos, que não conheceu a intensidade do conflito da Renamo e Frelimo, representa a maioria. Esta faixa etária é menos receptiva à ordem definida por meio de intermediação de uma pequena elite com ligações ao Estado ao nível central e seus aliados ao nível local.
Num contexto de desemprego e de dificuldades de inserção económica, os problemas de mudança das abordagens e das relações com as autoridades públicas estão cada vez menos relacionados com a história política da participação da região nos diferentes conflitos. Numa região em que a autoridade do Estado sempre foi precária, o estabelecimento da estabilidade da afirmação do poder de gestão da sociedade pelo Estado depende muito da capacidade deste se emancipar dos actores de intermediação que se apresentam com baixos níveis de legitimidade perante uma população que sente as dificuldades diárias de sobrevivência. Tal depende de uma reflexão profunda de imaginação dos modos de negociação da centralidade do Estado imiscuído nas bibliotecas locais do imaginário colectivo.
O regime da descentralização em Moçambique ainda é incipiente. Grande parte da sua empregabilidade é apenas de ordem partidária, e está virado para o controlo e distribuição do poder, sobretudo entre a Frelimo e a Renamo. No entanto, ao rigor da aplicação do significado da descentralização, ela não se limita a transferência marginal de competências centrais para o nível local. A descentralização é, no sentido que aqui se atribui, uma política de formação do Estado[40]. Ou seja, a descentralização é um dispositivo através do qual o Estado incorpora as dinâmicas locais para flexibilizar a sua afirmação como empresa de gestão da sociedade. Nestes termos, ela é, por excelência, o instrumento através do qual o Estado pode se tornar vernacular[41], ou seja, tomar a linguagem local e se configurar como o ente superior de gestão das expectativas locais, portanto, governar. Com efeito, contrariamente ao que tem sido a implementação universalizada e uniformizada da descentralização, ela deve permitir a diferenciação de acordo com as dinâmicas de cada contexto. O Estado, não se afirma em todo território de forma igual e nem tem que aplicar os mesmos dispositivos para todos lugares, ele deve se diferenciar de acordo com as dinâmicas do contexto[42].
A cartografia da histórica do Estado em Moçambique permite sugerir uma territorialização diferenciada. Do exposto acima, é evidente que a região do extremo norte do país precisa de um Estado vigoroso que se faça apropriar pelas práticas autóctones, no sentido de local. O Estado forte deve ser entendido como aquele que incorpora as aspirações locais e as converte em potencial da sua própria afirmação. O “leviatã”[43] só se constrói assim que as próprias populações o reproduzem como tal. Assim, a restauração administrativa na região do extremo norte do país deve não apenas se informar pelas dinâmicas históricas da tentativa de afirmação da autoridade do Estado na região, como deve igualmente estudar pequenas práticas banais que estruturam os compromissos colectivos. O que seria um Estado em Palma? O que imagina a população que seja um ente de sua protecção onde existe uma multinacional? Em breve, o Estado deve construir a sua musculatura combinando uma docilidade e uma força coercitiva, que configure a sua legitimidade.
Os ângulos de estudo do conflito militar no extremo norte de Moçambique vêm-se multiplicando. A complexidade do objecto parece suscitar que existam diferentes leituras para o seu entendimento. Este ensaio centrou-se nas dinâmicas de construção da autoridade do Estado na região. Sustentou que este enfrenta naquela região uma dificuldade histórica da sua afirmação. Desde o período das primeiras tentativas de instauração do aparelho administrativo pelo Estado colonial português, através da delegação ao direito da Companhia do Niassa, a região nunca logrou a estruturar uma relação estável com as autoridades públicas estatais. O Estado colonial, naquela parte do país, não conseguiu instaurar um dispositivo que o legitimasse.
O Estado pós-colonial foi enganado por uma intermediação clientelista e paternalista, o que não lhe permitiu elaborar ao longo do tempo um projecto sustentável para a sua afirmação. Na dificuldade de estabelecer instrumentos de dominação associado às práticas de sobrevivência quotidiana, esta região, assim como outras do país, se desenvolvem como uma estrutura de contestação da autoridade do Estado. Assumindo esta postura, o texto termina a propor duas vias de restauração administrativa e de procura incessante da legitimidade do Estado na região. De um lado, estabelecer um projecto de emancipação do Estado de sua instrumentalização por uma elite local clientelista e acomodada na estrutura do Estado e que o explora como plataforma de realização dos seus interesses e, por outro lado, aproveitar o debate de descentralização para estruturar uma política de afirmação diferenciada do Estado de acordo com as demandas de cada espaço. Assim, um local como o norte necessita mais da implantação de instrumentos de dominação, do que de políticas sociais redistributivas e clientelistas.
[1] Professor de Ciência Política e Administração Pública, Faculdade de Letras e Ciências Sociais (FLCS), Universidade Eduardo Mondlane (UEM).A primeira versão deste texto foi publicado no Newsletter Diálogos de Governação, n. 3, 2020, pp. 1-4.
[1] S. Habibe, S. Forquilha e J. Pereira, Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique. O Caso de Mocímboa da Praia. Caderno do IESE n°. 17. Maputo: IESE, 2019; E. Morier-Genoud "The jihadi insurgency in Mozambique: origins, nature and beginning". Journal of Eastern African Studies, vol.14 no 3. 2020, pp. 396‑412. W. Benhard, “Vampiros, Jihadistas e Violência Estrutural em Moçambique: Reflexões sobre Manifestações Violentas de Descontentamento Local e as suas Implicações para a Construção da Paz”, Cadernos IESE n° 19P, Maputo: IESE, 2020.
[2] E. Morier-Genoud, M. Cahen & D. M Rosario, The War Within: New Perspectives on the Civil War in Mozambique, 1976-1992. Londres: James Currey 2018.
[3] B. Machava, “ The War Within: New Perspectives on the Civil War in Mozambique, 1976–1992". Canadian Journal of African Studies, vol.55 no 2. 2021, pp. 428‑430.
[4] S. Chichava, “Did Frelimo create “Al Shabaab”? An analysis of the 15 October 2019 elections from Cabo Delgado”, Cadernos IESE nº 18E, IESE: Maputo, 2020.
[5]C. Darch The Mozambican conflict and the peace process in historical perspective: a success story gone wrong? Maputo: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2018.
[6] A. Vines, As perspectivas de um acordo sustentável entre as elites em Moçambique: à terceira é de vez ? London: Chatham House, 2019.
[7] L. Bonate, Islamic Insurgency in Cabo Delgado: Extractive Industry, Youth Revolt and Global Terrorism in Northern Mozambique: a hypothesis, (s.d), University of the West Indies, 2018. L. Bonate, “Comments: the islamic side of the Cabo Delgado crisis”, Zitamar, 19 de junho 2018; F. A. Santos, “War in resource-rich northern Mozambique – Six scenarios”, CMI Insight, 2020.
[8] S. Habibe, S. Forquilha e J. Pereira, Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique. O caso de…op. Cit.;
[9] Ch. Geffray, La cause des armes au Mozambique: anthropologie d’une guerre civile. Paris : Karthala, 1990.
[10] M. Correia, “Capitalismo e Terrorismo em Cabo Delgado: violência como linguagem”. Revista Síntese, vol. 9, n°. 18, pp. 60-76.
[11] M. Weber, Économie et Société/1. Les catégories de la sociologie. Paris : Pocket, 2008.
[12] M. Foucault, Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 2008; P. Lascoumes & P. Le Gales, Gouverner par les instruments. Paris: Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 2004.
[13] M. Weber, Économie et Société/1. Les catégories de la sociologie. Op. cit.
[14] Mesmo que a pobreza seja uma estrutura de oportunidade para desenvolver vingança contra a autoridade pública, ela o é se não for tratada como uma política pública, ou seja, como instrumento através do qual o governo produzi a sua dominação, incluindo, portando planos de sua gestão. A pobreza é também um potencial instrumento de governação.
[15] F. Braudel « Histoire et Sciences sociales : La longue durée », Annales. Economies, Sociétés, Civilisations. 1958, 13e année no 4. pp. 725‑753; .
[16] M. Newitt, História de Moçambique. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997.
[17] Até 1890, a presença portuguesa na região estava reduzida a quatro pequenos postos militares e alguns soldados. Contavam-se 37 soldados no Ibo, um pequeno número em Palma, Mocímboa da Praia e Quissanga. Vide Y. Adam "Mueda, 1917-1990 : Resistência, colonialismo, libertação e desenvolvimento". Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique. 1993 no 14. p. 3‑102.
[18]B. Neil-Tomlinson, “The Nyassa chartered company : 1891-1929". The Journal of African History. vol.18 no 1., 1977, pp. 109‑128.
[19] M. M Santos, “An “obsessive idea” - Native Taxation in Northern Mozambique (1926-1945) », CEAUP - Working Papers. 2007.
[20]E. Alpers “ “To Seek a Better Life:” The Implications of Migration from Mozambique to Tanganyika for Class Formation and Political Behavior". Canadian Journal of African Studies / Revue Canadienne des Études Africaines, vol.18 no 2. 1984, pp. 367‑388.
[21] B. Neil-Tomlinson, “The Nyassa chartered company : 1891-1929". Op. cit.
[22] E. Guambe, Renegociar a centralidade do Estado em Moçambique. Municipalização na Beira, em Mueda e em Quissico. Coimbra: MincervaCoimbra. 2019.
[23] F. Rosas, O Estado Novo (1926-1974). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994; "Traditional Power and its Absence in Mecúfi, Mozambique". Journal of Contemporary African Studies, vol.20 no 1. 2002 pp. 107‑130.
[24] A. Yussuf A. M. Gentille, "O movimento dos Liguilanilu no planalto de Mueda 1957-1962". Estudo Moçambicano, no 4. 1983, pp. 41‑75. L. A. Chavana Jr. Alguns impactos políticos da emigração das populações da circunscrição dos Macondes para Tanganhyka: Lazaro Nkavandame, um estudo de caso, 1955-1960, mémoire de licence en histoire. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 2006.
[25] A. Bragança, A situação nas antigas zonas libertadas de Cabo Delgado. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane [Oficina de História], 1983.; A. Bragança, "O marxismo de Samora". Cadernos de História: Boletim do departamento de história de UEM, no 5.1987, pp. 4‑12.
[26] E. Macamo, A Transição Política em Moçambique. Maputo: Centro de Estudos Africanos, 2004.
[27]J. Cabrita, Mozambique: the tortuous road to democracy. New York: Palgrave, 2002.
[28] L. de Brito Le Frelimo et la construction de l’État National au Mozambique. Le sens de la référence au Marxisme (1962-1983), Thèse doctorat. Paris: Université de Paris VIII, 1991.
[29] M. Bowen The state against the peasantry: rural struggles in colonial and postcolonial Mozambique. Charlottesville : University Press of Virginia, 2000.; A. de Bragança, A situação nas antigas zonas libertadas de Cabo Delgado. Op. cit.
[30] M. Bowen The state against the peasantry. Op. cit.
[31] E. Guambe, Renegociar a centralidade do Estado em Moçambique... Op. cit.
[32] B. Mazula, Moçambique eleições democracia e desenvolvimento. Maputo : Inter-Africa Group, 1995.
[33] B. Lachartre, « Qui a peur des ONG au Mozambique? La relance d’une controverse », Lusotopie. 2002 no 1. p. 161‑169.
[34] West, Harry G. Kupilikula: governance and the invisible realm in Mozambique. Chicago: University of Chicago Press, 2005.
[35] G. Harrison, “Corruption as “Boundary Politics”: The State, Democratisation, and Mozambique’s Unstable Liberalisation". Third World Quarterly, vol.20 no 3, 1999, pp. 537‑550.
[36] A narrativa local sobre a descentralização, de acordo com Harry West, foi entendida como o abandono da população por parte do Estado. A população passava a eleger os seus governantes e iria se gerir sem mais contar com alguma interação com o Estado. H. West “Governem-se vocês mesmos!» democracia e carnificina no norte de Moçambique ". Análise Social. no 187, 2008, pp. 347‑368.
[37] Ibid.
[38] C-N, Castel-Branco. « Growth, capital accumulation and economic porosity in Mozambique: social losses, private gains », Review of African Political Economy. 2014, vol.41 no 1. p. 26‑48.
[39] J. Macuane, L. Buur, & C. Monjane. « Power, conflict and natural resources: The Mozambican crisis revisited », African Affairs. 31 juillet 2017. p. 1‑24.
[40] E. Guambe, Renegociar a centralidade do Estado em Moçambique. Municipalização na Beira, em Mueda e em Quissico. Op. cit.
[41] B. Malinowski, Les Argonautes du Pacifique occidental. Paris : Gallimard, 1989.
[42] C. Boone, Political topographies of the African state: territorial authority and institutional choice. Cambridge, UK; New York : Cambridge University Press, 2003.
[43] F. Geledan, « Spectres du léviathan : l’État à l’épreuve de la simplification administrative (2006-2015) », Revue française d’administration publique, vol.157 no 1. 2016, pp. 33.