Para a África que se regozija com os sinais de que esteja na forja um mundo multipolar (mais do que um centro de poder estatal mundial), em contraponto com o unipolar das últimas décadas, vai um aviso à navegação: a multipolaridade pode ser fatal para a África. E não sou eu quem o diz: é a História.
Historicamente, e não tão longe, a existência de várias (super)potências mundiais fora ruim para a África. No último quarto do séc. XIX, um grupo de potências mundiais da altura, as potências colonizadoras, sentaram-se à volta de uma mesa em Berlim, capital alemã, e esfrangalharam o continente africano.
Hoje, com os sinais da proliferação de potências mundiais que se acrescem os da eterna avidez forasteira por África, a possibilidade de uma nova divisão não é remota e pelas mesmas razões que ditaram a estadia em Berlim de 15 de Novembro de 1884 até 26 de Fevereiro de 1885.
Lembrar que foram as crispações entre estas potências - que só atrapalhavam, mais do que ajudavam no cardápio da exploração - que ditaram os mais de três meses de negociação de diferenças e do tamanho da fatia do bolo de cada uma delas.
Acredito, para terminar, que o leitor não precisa que se desenhe para concluir que a História repete-se. Aliás, e já dizia Hegel: “A História repete-se sempre, pelo menos duas vezes”. E Karl Marx acrescentaria: "a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. "E a farsa é mais terrível do que a tragédia”, completaria Herbert Marcus.
Nando Menete publica às segundas-feiras
PS: Um detalhe: as conversações da Conferência de Berlim incluíram o período da quadra festiva (1885/86). Hoje, 138 anos depois (2023/24), é bem possível que enquanto o leitor celebra a presente quadra festiva a comer um frango assado no seu “Terreno”, haja, algures numa capital pelo mundo, quem esteja a esfrangalhar o seu “Terreno” e a ditar os termos da sua “ocupação efectiva” até a próxima quadra festiva.
Nelson Saúte
“Dum grande poeta deu-se o nome
a uma suburbana
nem tanto quis em vida
das ‘solidões lacustres’
que seu facho ainda alumia
dos nítidos e urbanos
dias ermos
escreveu e morreu”
(Sebastião Alba, “O Ritmo do Presságio”)
Este belo e pungente poema, que termina com versos lapidares (“fulge limpidamente / nas memórias mais graves / dos melhores de nós”), de Sebastião Alba, sucede, cronologicamente, a um outro, de Noémia de Sousa, “Poema para Rui de Noronha – No aniversário da sua morte”, escrito em 1949, e que termina, de forma igualmente lapidar e lacerante: “Como um cometa / atravessando a noite dos nossos peitos esmagados.” A tragédia do Poeta, que subscreve o mito, teve o seu epílogo no dia 25 de Dezembro de 1943.
António Rui de Noronha nascera a 28 de Outubro de 1909, filho de pai originário de Goa e de mãe nascida na África do Sul. Viveu os seus primeiros anos com a mãe biológica, Lena Sophia Bilanculu. Quando o pai, José Salvador Roque das Neves de Noronha, se casa com uma senhora oriunda da Índia, de nome Ana Luisinha de Figueiredo, o pequeno Rui e o seu irmão Amâncio passaram a viver com o pai, a madrasta e os irmãos do casamento subsequente do progenitor. Estudou no liceu que leva hoje o apelido de Escola Secundária Josina Machel, concorreu e foi admitido nos Caminhos de Ferro como aspirante. Ali, a par da sua atividade jornalística, estabeleceu a sua tribuna. Estreou-se aos 17 anos, colaborou em jornais e revistas, fez crítica de teatro e de cinema. Viveu apenas 34 anos.
O poeta ferroviário escreverá “No Cais”, publicado em “O Brado Africano”, em 1934: “Há vibrações metálicas chispando / Nas sossegadas águas da baía. / Gaivotas brancas vão e vêm bicando / peixinhos numa louca gritaria.” Este poema foi recolhido na sua obra póstuma “Sonetos” (1946), organizada e apresentada por Domingos Reis Costa, seu antigo professor, que lhe terá adulterado a obra. O poema, igualmente amofinado, termina com o seguinte terceto: “E ouve-se mais forte, mais vibrante, / Os pretos a cantar, a noite adiante, / Por entre a bulha e o pó das carvoeiras…”
Mário Pinto de Andrade, intelectual angolano de grande gabarito, num ensaio magistral e fundador, “Origens do Nacionalismo Africano: Continuidade e rutura nos movimentos unitários emergentes da luta contra a dominação colonial portuguesa 1911–1961” fala-nos de uma geração de “proto-nacionalistas”, uma geração que precedeu à sua (cunhada por ele como “Geração Cabral”), que nas primeiras décadas do séc. XX, quer em Portugal, sobretudo em Lisboa, quer nas chamadas colónias (São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique) empreenderam os primeiros tentames da resistência e protesto. Seriam “proto-nacionalistas”, “pan-africanistas” ou “nativistas”. A questão racial era central, a problemática do ominoso colonialismo. A verdade é que pertenciam a um “movimento negro anti-racista” que se afirmava. Eram os movimentos pan-africanistas, na América avultavam os movimentos dos direitos cívicos, onde pontificam as figuras de Booker T. Washington, W. E. B. Du Bois ou Marcus Garvey.
Creio que a figura de Rui de Noronha deve ser enquadrada nesta geração dos chamados “proto-nacionalistas”. Era o gérmen da rebelião, da contradita, da divergência. Temos por adquirido que o movimento emancipador iniciou nos anos 60. É uma forma oblíqua de ver a História. Há predecessores cujo papel é preciso reparar. À sua biografia desencontrada, marcada pelo infortúnio, ir-se-á confundir uma obra precursora. Poeta esquecido ao longo de décadas, ao ser evocado não falta a mofina que lhe ditou a vida. Fátima Mendonça, que lhe fixou a obra e esclareceu muitos dos equívocos que a edição, sob a égide de Domingos Reis Costa, estabeleceu, insurge-se contra o determinismo biográfico que obscurece uma poesia que vai além do sofrimento, da infelicidade, do desgosto ou do tormento. O porfiado trabalho de Fátima Mendonça muito fez para obviar esse mito redutor e apoucador que aviltava o estro de Rui de Noronha.
“Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério. / Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…/ O Progresso caminha ao alto de um hemisfério / E tu dormes no outro o sono teu infindo…” As sim inicia o poema “Surge et Ambula”, imbuído da sua “missão de fazer despertar consciências adormecidas”, como assevera Fátima Mendonça, num continente “onde fervilhavam já as expressões nacionalistas que o pan-africanismo sugeria”. O texto “Rui de Noronha, o esquecido?” foi publicado na revista “África” n.º 13, em 1986. Nesta mesma publicação, no seu número inaugural, em 1978, Francisco de Sousa Neves, no texto “A poesia de Rui de Noronha” defendia que as versões da edição póstuma de “Sonetos” poderiam corresponder a variantes deixadas pelo próprio poeta. Esta “tese” ia em sentido contrário às posições de Rodrigues Júnior que tinha acusado Domingos Reis Costa, encarregado da edição da poesia de Rui de Noronha, de lhe ter alterado e adulterado os sonetos. Isto em 1951! Mais de vinte anos depois, nos anos 70, Guilherme de Melo voltou à liça: um exame ao espólio do poeta revelava isso. Uma atitude preconceituosa em relação a quem denunciara tal aviltamento arrastaria a questão que denigre o Poeta por décadas. Os estudiosos e os antologiadores, por descaso ou abulia, não se ativeram à denúncia de Rodrigues Júnior e reiteradamente mantiveram a franquia torpe de Reis Costa.
Fátima Mendonça debruça-se sobre esta questão: “Foi um erro de que a literatura moçambicana foi vítima e que urge remediar, repondo a verdade. Efetivamente, grande parte dos sonetos publicados apresenta versões que não correspondem às que foram publicadas em vida pelo poeta, em “O Brado Africano”. Um exame ao espólio do poeta – em poder da sua filha – revela que o professor Reis Costa, por sua própria mão, alterou grande parte dos sonetos sobre os originais, tornando-os praticamente ilegíveis. Desta forma, o espólio devolvido à família está praticamente inutilizado. De notar ainda que o compilador deixou de lado inexplicavelmente alguns sonetos e toda a produção poética que não obedecia a esta forma”.
Fica, no entanto, quanto a mim, um enigma por elucidar: por que razão Reis Costa consignou de volta à viúva do Poeta, Albertina dos Santos Noronha, os textos ultrajados? Para mim, é um mistério. Soberba? Zombaria? Confiava demasiado na sua sobranceria ou debochava da crítica e do crivo futuros?
Fátima Mendonça, que defendia na época em que produziu o seu texto, informado e vigilante, advertia que a obra e o poeta Rui de Noronha obrigavam-nos a promover uma edição crítica e reparadora da injustiça praticada por Reis Costa. Vinte anos depois, foi editada a obra “Os Meus Versos – Rui de Noronha” com organização, notas e comentários de Fátima Mendonça. O título do caderno original deixado pelo poeta era justamente “Meus versos” e essa era a intenção da organizadora. O zeloso editor acrescentou-lhe “os”, alterando-lhe título. É irónico: parece que o poeta está fadado a este tipo de infortúnios. Não quero imaginar a fúria da estudiosa.
Primeiro fora Rui Knopfli, que lhe chamara “a primeira voz” (na revista “Tempo”, em 1973), e depois Sebastião Alba, que o homenageara no belo poema (publicado em 1974) que serve de epígrafe a este texto, e, mais tarde, José Craveirinha que lhe chamara “o Grã poeta da circunvalação”, que haviam estimulado o interesse e o fascínio que Fátima Mendonça desenvolveria sobre a obra e a figura de Rui de Noronha. Aliás, recordo-me das vezes que Craveirinha o evocava e descrevia na geografia emocional e cultural da Mafalala. Também Noémia de Sousa falar-me-ia de Rui de Noronha e de outras ínclitas figuras daquela época, como Estácio Dias, Karel Pott, os Dahan ou os Mata e todos aqueles que habitavam “O Brado Africano”, como os fundadores João e José Albasini.
Aníbal Aleluia, em dezembro de 1950, escreveria sobre o Poeta em “O Brado Africano”. Michel Laban , em 1992, quando o entrevistou, não evitou a pergunta óbvia: “Conheceu Rui de Noronha?” Aleluia retorquiu: “Conheci. Era um homem solitário, um temperamento a um tempo romântico e melancólico, de uma sensibilidade rara. A sua poesia traduzia a um tempo fatalismo e inconformismo. Parecia profundamente afectado pelo racismo então muito forte nesta terra. Creio que foi isso que o levou ao abandono de si mesmo, qualquer coisa como a busca do Nirvana. Não quero aludir a aspectos da sua vida que jogam com sentimentos íntimos, uma paixão não correspondida que se lhe atribui e que, no dizer de alguns, ditou o seu precoce passamento pela Terra.” (“Moçambique – Encontro com Escritores”)
Eduardo White (“Rui de Noronha, o poeta que a morte não poupou”, 1984), quase trinta e cinco anos depois irá descobri-lo. Da mesma geração, Mikas Dunga (Pedro Chissano) irá sobre ele discorrer na “Charrua”: “Encontro marcado com Rui de Noronha” (“Charrua” n.º 2, 1984). Importa referir o importante trabalho de Olga Iglésias, profusamente citado por Fátima Mendonça. Manuel Ferreira, um dos precursores, em Portugal, do estudo e divulgação das nossas literaturas, situou-o diligentemente. Mário Pinto de Andrade também o fizera na “Antologia Temática de Poesia Africana”.
Logo no texto que abre a coleção dos textos “Meus versos” escreve o poeta: “Mas o meu canto é mágoa.” Isto lhe define o destino: “Cruel destino o meu que ao meu caminho trouxe”, escreverá no soneto subsequente, que termina assim: “Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor!” Estes versos primeiros parecem definir-lhe o anátema: “Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta, / Repudiando a dor, tripudiando a lei, / Num gesto de altivez que em onda leva, arrasta, / Inteiras gerações de amaldiçoada grei.”
A dor, a tristeza, a solidão, a amargura, a noite, o frio, a mágoa, os infernos, entre outros sintagmas, dominam estes versos que ajudam a construir a imagem de um poeta enjeitado pela raça e pela amada e que se deixa destroçar até à morte. “Porque é através da Dor, não da Alegria / Que eu mais sinto a beleza, a poesia / Duma manhã que canta e de um poente…” Ou num outro poema: “Oh, minhas ilusões, mágoas sem fim!”. “E eu sou tristeza sempre, sempre pranto…”.“… E eu nada tenho por amar-te tanto!”
A dor reiterada: “Só nesta dor que me sepulta, ignoto / Não chega a luz da lua e nunca noto / A beleza das cousas sempiternas.”. Os “Dias Tristes”: “Tristeza de si própria comovida…” A dor, sempre a dor: “A dor eterna é dor; mas dor maior / É aquela que um momento foi menor / E se tornou imensa em dor volver…” No poema “Caminhos”: “E eu entristeço e penso em quanta mágoa”. E no texto “Eternamente” escreve: “E esta amargura acerba de cair.” Ou no poema “Menti?”: “Vê tu quanta amargura novamente...”
O poema “Sonho Desfeito”, não coligido na edição póstuma, é assertivo quanto ao seu infortunado amor: “Foi curta a história desse amor que eu tive, / Mas foi profundo e triste o rasto seu. / Foi rápido e fugaz como o declive / Do aerólito que no céu correu…” José Craveirinha, na entrevista que concedeu a Michel Laban, em 1993, também se lhe refere: “Eu lembro-me do Rui de Noronha a dizer-me: ‘Continua, miúdo. Continua…’ Ele passava aqui, nesta rua, vou-lhe mostrar a casa onde ele morava. Ele saía de serviço, trabalhava no Caminho de Ferro, vinha para casa. Depois da casa, vinha assim sozinho, seu fatinho de linho, seu chapéu na mão… Esta rua não era alcatroada, era areia. Andava à volta e passava pela sua Dulcineia – a mulher que o inspirou sempre e que casou com outro. Mas que ele amou até à morte. Ele ia assim, passava e ela às vezes aparecia na varanda. Ele ficava assim, só para ver – já casada com outro. E ele voltava. Era um homem triste. Nunca o vi exuberante, a rir-se. Eu cheguei a vê-lo no “Brado Africano”, chegou a ser chefe de redacção do “Brado Africano”, mas sempre triste. Aliás, morreu cedo: ele não morreu, matou-se. Sim, praticamente matou-se, porque ele estava proibido de beber e bebia álcool puro.” (“Moçambique – Encontro com Escritores”).
Rui de Noronha: “Amei-te tanto, meu amor, oh, tanto!…/ Que ver cair tão súbito este encanto / Eu acredito que te amei bem pouco…”. Ou num outro poema: “Ninguém te amou como eu te amei outrora”.
Mas Rui de Noronha foi também o poeta que escreveu sobre os “Patshises” (carregadores no cais): “A pena que me dá ver essa gente / com sacos sobre os ombros cansadíssima / Às vezes é meio-dia, o sol tão quente / E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!”, ou sobre os “Mavikis” (contratados à semana): “De manhãzinha, a mata ainda escura, / Ainda dormindo os colibris nos ninhos, / Partem cantando uma canção obscura, / Em variados grupos ou sozinhos”. Poeta que reparou da humilhação de um herói: “E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto, / Fitava os dois, o olhar heroico, augusto”. Isto diante de Mouzinho. Poeta extraordinário desse fabuloso “Quenguêlequêze”.
Fátima Mendonça é assertiva: “É esta contradição, lucidamente assumida, que Rui de Noronha expõe aos homens do seu tempo. E é precisamente um dos polos do eixo em que se move essa contradição que a edição póstuma de “Sonetos” escamoteia. A seleção feita por Domingos Reis Costa criou uma imagem deformada do homem e a da obra, esta a servir aparentemente de refúgio para as inquietações e angústias daquele. Se a obra de Rui de Noronha exibe permanentemente um conflito não resolvido , dela faz também parte a afirmação da identidade africana.” (“Literatura Moçambicana – A História e as Escritas”).
Noémia de Sousa, no “Poema para Rui de Noronha” escreve: “Mas o archote, murcho e fraco, / que tuas mãos diáfanas mal lograram suster, / deixa que nós o levemos!” Rui de Noronha fica assim consagrado como a voz fundadora da poesia moçambicana, pese embora, na Ilha de Moçambique, José Pedro Campos Oliveira, seja efetivamente o primeiro poeta nascido em Moçambique. O mito fundador fica assim endossado pela poderosa voz de Noémia de Sousa. Com José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, entre outros, ela estará na origem da poesia de raiz marcadamente moçambicana, anos depois, no dizer de Rui Knopfli. Naquele poema evocativo, de 1949, a autora de “Sangue Negro” concedera a Rui de Noronha, que morrera seis anos antes, no dia 25 de dezembro de 1943, passam hoje 80 anos, os “trilhos abertos a golpes de catana” na literatura moçambicana.
“Desperta! O teu dormir já foi mais do que terreno.
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz-te: - África, surge et ambula!”
(Rui de Noronha)
P.S. – Rui Knopfli morreu - coincidência infeliz!-, num dia 25 de dezembro, em 1997.
KaMpfumo, 25 de dezembro de 2023
Olá Pai Natal!!!
Como de costume nestas alturas do ano, dedico um tempo e escrevo a minha cartinha, e faço alguns pedidos – alguns meio extravagantes e outros talvez utópicos. Porém, imagino que pela sua idade e experiência perceberá o alcance de muitos dos pedidos.
Imagino que pela minha faixa etária não seja mais elegível nem prioritário para ver meus pedidos satisfeitos, mas como deveis saber, eu raramente peço para mim, mas tento interceder pelos menos favorecidos.
Escrevo a partir de Moçambique – um país extenso e muito belo; também apelidado de Pérola do Índico. País com uma riqueza de dar inveja a qualquer um, mas com níveis de pobreza alarmantes e muito preocupantes. É conhecido por uns como a terra do gás que jorra pela bacia do Rovuma; como a terra dos rubis localizados maioritariamente em Namanhumbir; da grafite de Balama; das areias pesadas de Moma; e a terra que hospeda uma biodiversidade marítima, faunística e florestal única. Por outros é conhecido como o país que vive horrores do terrorismo que grassa a província de Cabo Delgado desde 2017 e, também como o caminho das tempestades tropicais devastadores, sejam elas de alta, média e baixa intensidade.
Mas o escopo da minha carta não é publicitar as riquezas e potencialidades do meu belo país, tampouco sugerí-lo às apetências dos senhores do mundo. É sim, deixar ficar um pedido muito nosso, para que interceda a favor do nosso país junto ao concerto das nações e faça o grito dos moçambicanos ser ouvido e respeitado além-fronteiras.
Na carta que escrevi no ano passado, acabei me empolgando e fiz muitos pedidos. Será perceptível que não tenha dado cobro a todos, todavia escrevo de forma convicta e com alguma esperança no coração. Lembro-me de forma clara, que dos vários pedidos que fizera, destacou-se o de pedir mais responsabilidade e assertividade por parte dos que governam e “decidem” o futuro do país.
Do Índico surge um pedido normal e algo ainda muito cortinado – mas que a meu ver deve ser visto como um direito inalienável e inegociável – O Direito a sermos um país uno e indivisível; com a autodeterminação e um lugar audível e respeitado nos holofotes do mundo.
Nesta carta trago pedidos de índole político-social. E acredito que pela sua versatilidade podes tornar-te um actor relevante e um campeão que carrega mensagens aos políticos e decisores. Quero usar deste canal de influência que é “a carta”, para levar a voz de todo um povo sofrido mas esperançado, que clama por mais justiça social, mais empatia, mais inclusão e mais respeito pela dignidade humana.
Por veleidade, podia aqui acrescentar alguns pedidos que tenho em mente – chamarei de pedidos de ocasião, mas com um alcance muito realístico pois, preocupam a mim enquanto cidadão ordinário, e a todos enquanto actores e sujeitos activos e passivos da ação climática. Sem egocentrismo, olho para o mundo como um todo e vejo que a crise climática é uma realidade e está cada vez mais severa. Suas consequências são nefastas e seus efeitos tem se mostrado avassaladores. Nunca antes o agora e o hoje foram tão prementes e convidativos a uma ação global urgente, coordenada e sem precedentes. Nenhuma outra geração teve em mãos o poder para pensar, decidir e fazer o que deve ser feito – nenhuma outra geração poderá ter melhor chance de mudar o hoje e deixar um amanhã melhor para as gerações futuras. O relógio climático da terra esta disparado, e os ponteiros do clima aceleram a uma velocidade quase que incontrolável - tudo o que devemos fazer é dar uma chance ao clima (give a chance to climate). Feliz ou infelizmente, o efeito das mudanças climáticas não tem sul global nem norte global; eles afectam ao globo como um todo. Todavia o sul global é o que mais perdas e danos sofre e daí vem um clamor para que se olhe mais pelo Sul.
Pai Natal!!!
Irá perceber que as mudanças climáticas estão a acelerar o degelo na Antártida e noutros pontos cruciais do nosso planeta, e em breve, até a neve que tanto o caracteriza irá começar a escassear. Não nos vai espantar que o seu trenó puxado por Renas seja substituído por barcaças ou que as Renas sejam substituídas por camelos. – Aí, talvez tenhas que reinventar e recriar toda amalgama em torno do enredo secular que gira em torno de ti e do Senhor barbudo que faz maravilhas ao mundo.
As mudanças climáticas não eram parte da sua agenda, e disto estou certo. Mas esteja mais certo que irão a breve trecho afectar o seu status de velho barbudo que faz a alegria de milhares de crianças pelo mundo. Por isso Pai Natal, faça uso dos seus corredores nas Nações Unidas e faça chegar este pedido sobre desbloqueio do financiamento climático, sobre o fundo para perdas e danos, para adaptação e mitigação, energias limpas e renováveis, bem como para a tão propalada transição justa. Por falar em transição justa, tente falar que o Sul Global precisa desenvolver-se, criar bases sólidas e atingir os standards no Norte Global – e quando estiver num nível de desenvolvimento sustentável haverá sentido falar em justiça climática.
Acabei me empolgando na ressaca da COP28, e trouxe aspectos globais que espero que sejam também globalizantes e ligados a agenda climática que a todos diz respeito e a nós toca de forma muito particular a cada evento extremo. Mas, descendo a minha petição, diria que no meu país – Moçambique – o ano foi um dos mais desafiadores e marcantes. Uma data de acontecimentos varreu o país e inaugurou um novo paradigma social e político – a marcha progressiva de repúdio e aos discursos vazios e sem materialização factual. Talvez seja cedo para apelidar de um novo amanhecer, mas a aurora parece ter dado sinais.
Velhas formas de pensar e olhar a sociedade, outrora relegadas a velha esperança, deram lugar a novas formas de agir social e vários movimentos espontâneos de mobilização social liderados por jovens, agitaram o panorama político-social do país.
Estas formas de pensar e de agir, degeneraram em manifestações muito concorridas onde milhares de jovens maioritariamente das gerações 1980, 90 e 2000, saíram às ruas para mostrar o seu descontentamento e seu desejo de ver a mudança há muito anunciada e propalada, mas nunca vista.
Estas manifestações e passeatas pacíficas, foram sempre acompanhadas por uma carga e uso desproporcional de força da força por parte das autoridades.
Se em 2020 na minha carta de natal, pedi mais vacinas e máscaras para a COVID19, entenda Pai Natal que o contexto pandémico assim o exigiu.
Hoje, em 2023, troco as máscaras da COVID pelas máscaras ANTI-GÁS lacrimogénio. Cancele os brinquedos e toda a gama de entretenimento da época e invista mais em saúde do nosso povo provendo máscaras anti-gás, pois o contexto também o exige.
No encontro anual que tem com os estadistas e governantes, faça chegar de forma leve, breve e objectiva esta máxima que é sobejamente conhecida: Nada é mais forte que o POVO!!! E que usar a força e brutalidade contra o povo é perder a base de apoio deste que é o maior recurso social, político e humano da nossa nação.
Não quero politizar a minha carta, tampouco ser associado a alguém que esta perverter a ordem social e o status quo, por isso Pai Natal, peço anonimato, e a minha assinatura será ilegível.
Escrevo porque sei que existes, e acredito veementemente como tantas outras pessoas que tu podes e vais fazer chegar nossa prece aos devidos destinatários.
Mais esperança para Moçambique.
Feliz Natal!!!
Por: Helio Guiliche
Filipe Nyusi faz hoje o seu discurso sobre o Estado da Nação. É o último discurso, ou penúltimo, desse requisito constitucional ao cabo de dois mandatos presidenciais. Neste sentido, ele poderia começar a fazer mais do que o balanço anual da sua penosa governação; mas um exame mais global da sua quase década de governação.
E o sumo espremido do retrato só pode ser penoso. As últimas eleições foram a nódoa mais gravosa do nosso processo democrático. A Frelimo não fez um “fair play”, como sempre, batotando a dois níveis.
Com o apoio de uma máquina eleitoral, incluindo o Conselho Constitucional, manipulado e subserviente, por um lado. E, por outro, amordaçando a voz do povo com recurso aos cifrões usados para silenciar a liderança da oposição.
Estamos a viver uma democracia em contrapé, uma crise tremenda das suas instituições, fruto do estilo autocrata da liderança de Filipe Nyusi e seus lugares tenentes no partido e no Estado.
É óbvio que ele não vai reconhecer qualquer crise. Fazê-lo seria autofágico, qualquer coisa entre o gesto haraquiri e o ardor kamikaze, abrindo brechas para a justificação de uma Reunião Nacional de Quadros, que esvaziaria sua ascendência sobre um Comitê Central moldado à sua imagem e medida; e cujo domínio é essencial para a sua reprodução no partido e no Estado, mantendo o controle sobre a economia política da execução orçamental, feita mormente com base em práticas de “procurement” opacas, e projectos de viabilidade duvidosa como um Tribunal Um Distrito ou um Hospital um Distrito, autênticos sugadouros de dinheiros públicos.
Nyusi deverá enaltecer o DDR e a aparente acalmia em Cabo Delgado. Aparente porque a segurança na zona só está garantida dentro do cordão das operações da TotalEnergies, que já está plenamente construindo suas plataformas em Afungi mesmo sem levantamento oficial da “Force Majeure”, para não despertar atenção.
O resto da paisagem é dolorosa, com hospitais sem compressas, o ensino público cada vez mais precário e a economia definhando.
O banco central faz das suas e ninguém põe um guizo nos excessos de um governador errático; antigos ministros controlam o “procurement” por onde passaram e o SUSTENTA não se reinventa para passar a gerar rendimento real para os produtores rurais, através de uma comercialização agrícola decente.
Moçambique é o único país do mundo sem uma bolsa de mercadorias operacional.
Multinacionais de rapina tomaram conta dos silos e armazéns destinados à comercialização agrícola, tornando o Instituto de Cereais de Moçambique (ICM) numa mera entidade rendeira, deixando os produtores camponeses à mercê de “traders” indianos e bengalis, que cavalgam os atalhos montanhosos do Alto Molocue, pagando migalhas pelo feijão bóer e outras leguminosas produzidas com o suor do campesinato e que depois são vendidas na Índia a preços sobre-facturados.
Noutro plano, a dívida pública interna cresce a olhos vistos, perante uma liderança sem soluções para taxar os carteis econômicos instalados em todo o país, os quais gosam da vista grossa fiscal, que decorre do contributo desses cartéis para os cofres do partido e dos seus dirigentes do Secretariado e da Comissão Política.
E no turismo extrapolam-se os números, para dar a imagem de um “boom”apenas sentido nas estatísticas oficiais e nunca nos bolsos dos verdadeiros operadores.
E a EN1? Onde está? Com o Banco Mundial?
Sem essa turma perversa, o nyusismo não consegue enxergar outras soluções?
Parece claro que nao!
O discurso de Nyusi hoje vai ser o mais do mesmo, pintando uma paisagem idílica com o verde da esperança, quando todos os dias a pobreza urbana coloca pratos vazios nas mesas dos moçambicanos.
O actual PR nunca gostou de tocar na ferida. Esse será o principal pecado dos seus dois mandatos.
As recentes eleições mostraram que nossa Constituição da República precisa ser renovada, para renovarmos nossa democracia. Nyusi poderia introduzir essa agenda na governação. Saindo com, pelo menos, com o legado de quem iniciou uma reforma constitucional visando reforçar os pesos e contrapesos no plano na governação e proteger a democracia e a vontade do povo. Mas será que ele pensa nisso? Duvido!
MMosse
O desporto, cuja história apontava para ser um dos maiores patrimónios históricos do país, vem sofrendo face ao estatuto de menoridade a que foi relegado. Da Independência para os tempos em que vivemos, cometeram-se grandes males. Hoje, com o realismo e empenho de alguns, estamos numa fase dos pequenos remédios.
As leituras dos “rankings” internacionais, não mentem. Mas vive-se agora na tentativa de “acertar o passo” com África e o Mundo, o que poderá ser um tónico para encorajar a juventude a tirar proveito do “tónico” ímpar para a saúde, que é a prática desportiva!
NÚMEROS NÃO MENTEM
A invasão do cimento e dos “dumba-nengues”, à vista de todos, foram os primeiros “culpados” do abulicismo da juventude. O cimento tomou conta dos espaços onde se improvisavam os campos e o mercado informal fez o resto. Nem as varandas escaparam à voracidade de construir em tudo quanto é sítio, nas zonas urbanas.
Exemplificando: no Maputo, havia o Clube Central, movimentando o futebol na II Divisão. Dele já não reza a história. O mesmo com o Alto Maé, que possuía uma sede no bairro que lhe deu o nome.
E o que é feito do Atlético Nacional, Ferroviário das Mahotas, Belenenses, Beira-Mar, Rodoviário, Vasco da Gama, Aeroporto, Caju Industrial, Metal Box, Alumínios, Atlético Mahometano, S. José, Nova Aliança, Gazense, Águia D´Ouro, Inhambanense, Nacional Africano, João Albasini, IMA, Texlom, Zixaxa e tantos outros, dependentes das quotas e empenho dos sócios? Resiste ainda o Munhuanense Azar, autêntico “avis-rara”!
E se tivermos em conta que estes clubes movimentavam juvenis, juniores e reservas, facilmente se pode calcular as razões pelas quais o campo de recrutamento se reduziu drasticamente, obrigando a recorrer-se aos países vizinhos, de onde vêm, muitas vezes, jogadores caros e de qualidade duvidosa.
Outro “pecado”: no pós-Independência, o Estado decretou um “não” às transferências dos nossos atletas para outras latitudes. Craques de craveira passaram ao lado de grandes carreiras, deixando de motivar as novas gerações. Mais um erro histórico que acabou por ser corrigido, depois de (re)conhecido.
E AGORA?
Para quem como eu viveu, sentiu e sente, de alma e coração um tempo em que os “Geny(os) Catamos apareciam todas as épocas, custa engolir e acreditar que do reduzidíssimo parque desportivo que nos restou, o do Desportivo de Maputo, venha a ser mais um em vias de desaparecimento, para aumentar o sufoco que o cimento provoca na capital do país!
Repare-se que o Governo foi o líder da invasão dos terrenos dos desportistas, com o impensável exemplo de construir até a Secretaria do Desporto, num espaço que anteriormente era o Ginásio de Maputo! Ao lado, metro a metro, o circuito António Repinga vai reduzindo, reduzindo, reduzindo!
E já que estamos a falar de prioridades, não podemos deixar de referir que nos poucos campos e recintos desportivos que sobraram, por questões financeiras ou orientações políticas, as prioridades apontam para a ocupação em cerimónias religiosas e políticas, ou espectáculos desportivos.
Foram grandes males!
Os pequenos e curtos remédios?
Os recintos modernos, apenas dirigidos ao desporto do Black Bulls, ENH e União Desportiva do Songo, mais o programa do elenco de Feizal Sidat em investir na formação, bloqueando e recuperando os espaços destinados ao futebol.
Pessoalmente, gostaria de apresentar uma proposta: “qui-tal” (como dizia o SE), destruirmos os prédios que “roubaram” espaços ao desporto, para os devolver aos legítimos donos?
Acompanhei na imprensa que esta quarta-feira, 20 de Dezembro de 2023, o Presidente da República (PR) fará, no Parlamento, a habitual comunicação anual denominada o “Estado Geral da Nação”. Uma das televisões foi à rua e questionou aos cidadãos sobre o que eles esperavam da comunicação a ser feita pelo PR.
Enquanto os interpelados respondiam, lembrava-me de uma conversa, no início das conversações do desfecho da II Guerra Mundial (1939-1945), entre o então líder soviético, Joseph Stalin, que respondendo ao líder americano, Franklin Roosevelt, quanto ao futuro da Alemanha, perguntara: “Alemanha? Qual Alemanha?”. Para Stalin, a Alemanha do final da guerra era apenas uma noção geográfica.
Pergunto o mesmo sobre o sujeito da comunicação do PR: “ Estado Geral da Nação? De Moçambique? Qual Moçambique? E tal como o raciocínio de Stalin (talvez a única coisa de bom que aprendera dele), o país do final do dia 11 de Outubro de 2023, a data das sextas eleições autárquicas, é apenas uma noção geográfica.
No final da conversa entre Stalin e Roosevelt, e para o bem das conversações, as partes acordaram que seria a Alemanha do dia anterior à data do início da II Guerra Mundial (data da invasão alemã à Polónia).
E para o bem do entendimento da comunicação do PR sobre o Estado da Nação: que Moçambique será o objecto da comunicação? O país do dia anterior à última comunicação do Estado Geral da Nação? Ou o país do final do dia 11 de Outubro de 2023?
PS: Logo depois do início da Guerra entre a Rússia e a Ucrânia publiquei um texto (Ucrânia? Qual Ucrânia?) do qual extraio uma parte que compõe o ora publicado. Se estiver interessado acesse: https://cartamz.com/index.php/opiniao/carta-de-opiniao/item/10067-ucrania-qual-ucrania