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“Max Tonela remove obstáculos na exportação do feijão bóer para Índia

 

O Ministério da Economia e Finanças, sob liderança de Max Tonela, emitiu esta quinta-feira (14) um Despacho Ministerial em que delibera pela remoção de obstáculos que se colocavam à exportação de feijão bôer para a Índia, instruindo a Direcção-Geral de Alfândegas (DGA) para autorizar todas as operações de exportação a partir dos Portos da Beira e Nacala.”

 

Este é o trecho de uma notícia que vai ser hoje tema em muitos jornais na praça. 

 

Max Tonela está com boas intenções, creio, como é seu apanágio. Alguma mídia local insinuava há dias que, na esteira deste imbróglio, Tonela estava impotente perante a DGA.

 

O problema, segundo temos estado finalmente a apurar, é que a suspensão das exportações não foi uma decisão unilateral das Alfândegas; não tive a ver com questões de procedimentos aduaneiros. A DGA está a cumprir uma decisão judicial, designadamente do Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo.

 

“Carta” ainda não viu o aludido Despacho. A informação foi revelada pela CTA. O seu Presidente, Agostinho Vuma, exultou com o Despacho. Ele apelou a DGA e o Tribunal Administrativo a acatarem o Despacho, reza o noticiário. 

 

Não compreendo como é que um Tribunal deve seguir ordens ministeriais. 

 

Outra informação estranha: a CTA diz que há cerca de 150 mil toneladas de feijão bôer “encalhadas” em Nacala. Há bem pouco tempo, um grupo empresarial, que reclama a abertura da exportação fora de um Concurso lançado em Março e que no âmbito do qual esse mesmo Grupo exportou milhares de toneladas, alegava que tinha em armazéns, retidas, cerca de 300 mil toneladas. Nada mais inverossímil!

 

“Carta” sabe que neste  ano, de Moçambique já foram exportadas 180 mil toneladas e a produção nacional da leguminosa preferida dos indianos, não ultrapassa as 220 toneladas. Isto está documentado!

 

Ou seja, a quantidade ainda não exportada é de cerca de 50 mil toneladas. 

 

Esta saga do feijão boer está cheia de inverdades. Aos poucos, “Carta” vai contribuir fornecendo aos leitores uma perspectiva mais global sobre o dilema, ouvindo todas as partes e fazendo o necessário contraditório!

Em 1996, por razões similares as que caracterizam o histórico da gestão das eleições no país, o governo de Moçambique concessionou, por 10 anos, a gestão das alfândegas a uma firma britânica denominada “Crown Agency”. 

 

Em 2006, volvidos os 10 anos da concessão, o governo retomou o controlo da gestão das alfândegas, tendo ainda avaliado positivamente os resultados obtidos. Concorreram para tal as reformas e melhorias feitas a ponto de os britânicos terem conseguido ampliar, consideravelmente, as receitas alfandegárias.   

 

Lembrada a solução “Crown Agency”, e face ao caótico histórico da gestão eleitoral em Moçambique, tal exige que se active o modo concessão, desta vez para o processo de gestão eleitoral nos termos e condições a serem definidos. Urge!

 

De contrário - mantendo o modus faciendi - vai o aviso à navegação: esperar por eleições, livres, justas e transparente em Moçambique será o mesmo que “Esperar que um rio corra ao contrário” (i).

 

_______

 

(i) Entre aspas as palavras de um antigo chefe tribal índio que em discurso de resistência, diante de mais uma invasão das suas terras pela colonização branca, disse ao seu povo: “Esperar que quem nasceu livre se contente em ser aprisionado e que lhe seja negada a liberdade de ir para onde quiser, é como esperar que um rio corra ao contrário.” (In Público, Domingo, 10 de Dezembro de 2023, P.2, Crónica de Graça Castanheira).

segunda-feira, 11 dezembro 2023 12:03

Orçamento de Estado 2024: a Última Ceia

Li algures de que a  Última Ceia é a derradeira refeicção tomada por Jesus Cristo e os seus apóstolos antes da sua morte.

 

Numa outra ceia, esta em sede da discussão governamental de uma proposta do Orçamento de Estado (OE) português, Salazar, nesse momento o primeiro-ministro luso, teve que intervir para acabar um tête-à-tête acalorado entre o seu ministro da justiça – que pretendia aplicar fundos adicionais na melhoria das condições das infraestruturas prisionais – e o da educação – que pretendia aplicá-los na melhoria das condições das infraestruturas escolares.  

 

Salazar decidiu atribuir a verba ao Ministério da Justiça, encerrando também a discussão da proposta do orçamento. De seguida, olhando para o ministro da educação, disse audível de que era mais provável que a cadeia, e não um banco de uma escola, fosse o destino dele ou de um outro alto governante depois que cesse as funções.

 

Lembro-me disto a propósito da proposta do OE 2024 do país, ora em debate na Assembleia da República (AR), o último do presente mandato. No menu da última ceia mais de 500 mil milhões de meticais para serem abocanhados.

 

Porque um OE é vital para a vida pública de qualquer nação, suponho que em sede da sessão do governo moçambicano (a única com a audiência completa), que aprovara a proposta do OE 2024, tenha havido discussões acesas sobre prioridades, quiçá uma similar ao caso relatado acima.

 

Uma vez que escasseia informação que tal tenha acontecido e do que se sabe do debate na AR, que se lavre em acta o seguinte: do destino da distribuição feita pelos membros do governo na derradeira ceia, a certeza de que a primeira cela não será o destino de nenhum deles depois de 2024. 

 

Nando Menete publica às segundas-feiras

sexta-feira, 08 dezembro 2023 09:46

Um panegírico ao Daniel Cuambe

Escrever várias histórias sobre o mesmo homem, jamais será redundante, e as mesmas histórias podem ser contadas de formas diferentes até que não se atinja a exaustão. É como ir ao rio e ver na ilusão do sentimento e da óptica, as mesmas águas que nos vão banhar o corpo e deixarem-nos frescos. Todos os dias. Então, Daniel Cuambe era isso, como o rio permanente. Que nunca seca, nem que venham as estiagens mais devastadoras.

 

Na Redacção do jornal Notícias onde o conheci melhor, o mano Dany, como era tratado pelos colegas e pessoas mais próximas, destacava-se pela predisposição de articular a palavra sem fim, suportada por um sentido de humor contagiante. Era homem de olhar discreto, mas muito atento. E esse detalhe avisava-nos da presença de um ser inteligente, preparado para todos os momentos e todas adversidades.

 

Mano Dany nunca escondeu a sua paixão pelo jornalismo. Era nesse campo onde a sua vida encontrava suporte e fazia sentido, actuando como um grande jogador de reagueby, sempre a correr com a bola nas mãos ao encontro da luz. O futuro para ele não tinha importância, era preciso viver como o tecelão das redes de emalhar, que trabalha com entusiamo todos os dias sem cansar. É por isso que a euforia do mano Dany não acabava.

 

Há momentos, muitos momentos em que o mano Dany dispensava as palavras, que adorava libertá-las como aos pássaros, para deixar que seja a gargalhada sonora a troar, impregnando o ambiente com alegria inefável. Era um actor seguro. Sabia que as pessoas esperam sempre dele algum gesto, talvez uma frase improvisada, porém suficientemente temperada, e ele sabia disso. Mas nunca teve medo que alguém o aguardasse, pois confiava na sua espontaneidade, na sua capacidade de estar em todos os lugares, em qualquer circunstância.

 

Vestia-se com simplicidade, a camisa e as calças estão sempre bem engomadas. Barba infalivelmente feita e cabelo aparado rente, e também não vai faltar na sua companhia, uma garrafa de água de 1,5 litros que vai bebendo a gargalo nos intervalos do tempo, em particular quando está na Redacção produzindo as prosas que vão marcar a sua vida.

 

E um homem destes, promovido a personagem, ficará sempre na memória pela forma como encarou a vida, tal como ela é, sem acrescentar absolutamente nada. Mano Dany via graça em tudo à sua volta. Trazia a alegria onde estivesse com os amigos,  destacando-se pela gargalhada descomprometida e pelas lembranças que partilhava, muitas delas que nos faziam recordavam a máxima: quem conta um conto, aumenta um ponto. Era assim, o mano Dany: tudo para ele tinha mais um ponto, e isso é próprio de actores livres de tabus.

quinta-feira, 07 dezembro 2023 14:08

Saudades dos meus três amores

A subida de Jacob Zuma como presidente da África do Sul apanhou desprevenida a constituição deste país. Esta não estava preparada (e creio que ainda não) para um presidente polígamo. Tenho consciência de que não fora fácil para a constituição sul-africana. Quem diz isto não é gago. Falo em causa própria (risos), pois… (conto abaixo).

 

Já com uma cara de adulto tive uma experiência similar a da constituição sul-africana. E tal como esta, eu também não estava preparado para gerir mais do que um amor em simultâneo, e no meu caso eram três amores. Por sinal irmãs gémeas. Para piorar, ainda nem conhecia a escriba Paulina Chiziane, senão a teria aproximado para aconselhamento. 

 

Foram tempos difíceis de gestão tripartida, mas interessantes. Elas eram inseparáveis: a Mãe Grande, a Escurinha e a Caçula. Nas casas de pasto era normal que conhecidos, e não conhecidos, sempre que nos vissem juntos e felizes, se dirigissem a nós com vénia e as infalíveis palavras: “Sempre bem acompanhado”. Gestos que agradecia e em seguida beijava, profundo e demorado, os meus amores. 

 

De todas, o meu grande amor era a Mãe Grande. Infelizmente fiquei viúvo dela. Desde a sua partida, tenho passado temporadas de banzo (nostalgia mortal). Até que na altura da sua partida eu fora avisado que lhe restavam poucos meses de vida, mas nunca as causas. Nos exames médicos e na certidão de óbito nada consta.    

 

Desde então saio com a Escurinha e a Caçula. E como antes, se juntam duas primas. Uma até agora aparece e a outra anda desaparecida. Não é igual, pois não preenchem na plenitude a ausência da mana e primosa.

 

A Caçula é mais uma acompanhante, sempre presente, inculta e bela. A Escurinha é louca, desvarada e provocadora. As primas gostam de estrangeiros. A Mãe Grande, de origem helénica, era única, a última flor da “Varanda do Índico”: madura, leve e recatada.

 

Por ser verão, as saudades das três juntas são imensas. Fico banzo. A Escurinha, que é a do meio, sempre que me vê assim, sugere que eu preencha o vazio da mana com uma outra, uma expatriada e cidadã do mundo. Ela vive pelas cercanias da área metropolitana de Maputo, um pouco depois da nova casa dos pais e primas dos meus três amores.

 

No próximo dia 10 de Dezembro, a data de celebração do Dia Internacional dos Direitos Humanos, será realizada uma missa privada em memória da Mãe Grande, Sua Majestade, pois o amor dela era também um direito fundamental. Outrossim, o seu desaparecimento físico, e o silêncio de quem de direto sobre as respectivas razões, representam uma flagrante violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

Para celebrar a data, e em sua homenagem, mandei fazer uma lápide doirada, contorno avermelhado, com a seguinte inscrição cravada: “Eternas saudades meus três amores: Laura, Tina e Clara (a Mãe Grande). Saravá!  

 

PS: Este texto é dedicado a todos os lesados pelo desaparecimento físico da cerveja Laurentina Clara sem consulta pública. Urge uma agremiação dos lesados (vendedores, consumidores e simpatizantes) que advogue pela informação dos motivos do seu desaparecimento, responsabilização dos autores e mandantes bem como para o seu resgate.  

quarta-feira, 06 dezembro 2023 12:59

VIRGÍLIO DE LEMOS

Quando o infortúnio lhe sobreveio, aos 84 anos, a 6 de Dezembro de 2013, nos arredores de Paris, avultavam, a favor de França, na biografia do poeta Virgílio de Lemos, 50 anos do seu porfiado exílio. Nascera na Ilha do Ibo, a 29 de Novembro de 1929, e pertencera ao escol dos poetas que se afirmaram nos anos ulteriores à Segunda Guerra Mundial em Moçambique, alguns dos quais, como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Orlando Mendes ou Rui Nogar, são responsáveis por intuir e instituir aquilo seria uma poesia de raiz marcadamente moçambicana. Apesar disso, o seu percurso e a sua poesia fazem-se por meios e características diversas daqueles.

 

Fátima Mendonça, num instigante ensaio de 1987 que estabelece uma periodização da literatura moçambicana, recolhido em Literatura Moçambicana – A História e as Escritas (1989), identifica-lhe proximidades ao surrealismo. Américo Nunes, num texto que antecede A Dimensão do Desejo (2009), fala de “uma experiência simultaneamente lúdica e trágica, erótica e profundamente desassossegada” da sua poesia: “Virgílio de Lemos é um lírico desdobrado de um metafísico.” Reconhece-lhe a “militância” anti-colonial e anti-fascista, mas “não é isso que traduz a essência da sua poesia”. Creio que Poemas do Tempo Presente (1960) não declina um espírito irreverente, contudo, não prossegue o que uma poesia como a de José Craveirinha ou Noémia de Sousa propugnam.

 

Craveirinha, numa remota entrevista a Michel Laban (Moçambique – Encontro com Escritores, I vol, 1998), não tergiversou quanto a dúvidas que chegou a ter sobre o papel e a personagem de Virgílio de Lemos: “Eram simplesmente dúvidas: de que lado é que o tipo está? E depois aquela coisa de ele pedir-me originais para pôr no jornal da Mocidade Portuguesa…” Aliás, Craveirinha declina quando este lhe propõe colaboração nas folhas “Msaho”, em 1952. Queria ver primeiro, contudo, “Msaho” soçobrou no primeiro número. Colaboram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira ou Ruy Guerra. Reinaldo pertencia, com Domingos de Azevedo e Virgílio, à coordenação da publicação. Da sua amizade com Reinaldo Ferreira, da sua cumplicidade, há um testemunho afectivo e poético de Virgílio.

 

Virgílio de Lemos foi preso duas vezes. Foi absolvido no caso da “capulana vermelha e verde” e condenado a 16 meses (o tempo que expendera na prisão) no caso de subversão. O seu ideário (chamou-lhe “crioulismo” ou “barroco estético dos moçambicanos”) passava, a seu ver, por uma amálgama cultural e uma vivência urbana que incluía “brancos, mistos, indianos, chineses e os pretos que dormiam no fundo dos quintais”. Casou com a artista Bertina Lopes (pai português e mãe moçambicana) e teve dois filhos. Contudo, em 1963, desfeito o laço matrimonial e cansado dos imbróglios com os esbirros e as impugnações destes, parte para o exílio. A África do Sul, onde estudara e vivera algum tempo, não lhe parece lugar auspicioso para tal desiderato. Aterra em Paris em Dezembro desse ano longínquo.

 

Michel Laban fez-lhe a pergunta que se impunha: “Poderia supor-se que, saindo tu da cadeia, te juntasses ao movimento nacionalista organizado…” A resposta de Virgílio de Lemos é honesta: “Cheguei aqui e fiz um balanço para mim. Verifiquei que acima das ideias do movimento de libertação nacionalista, eu devia valorizar a minha própria liberdade de pensamento e de acção, embora denunciando o colonialismo, o salazarismo.” Nada mais lídimo. Quando, por vezes, se fazem exabundantes afirmações sobre o dissentimento de Virgílio de Lemos, creio que vale lembrar a sua liberdade como poeta que lhe divisa a franquia. E respeitar isso. Por conseguinte, a este respeito, nada de pregões.

 

Era adepto do “barroco estético”, uma demanda que se inseria numa busca de antropofagia cultural baseada numa mestiçagem identitária, o tal crioulismo que ele sempre procurou. No frontispício do livro Negra Azul (1999), que é uma espécie poética de “Cahier d´um retour au pays natal” (Aimé Césaire dixit), fica explicitado: “retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco.”

 

Se é facto que retoma versos da sua dissensão (“bayete-bayete-bayete / à Kapulana vermelha e verde, / se subsistirem no tempo / capulanas de várias cores”), o que temos neste “regresso” é uma poesia sobre uma “cidade, na alucinada posse / que supera o irreal”, na “babilónia de gozos / frágeis luzes e amores”, ou “na solidão que o Infinito / transporta”, “o despertar do fogo e da orgia”, de quem “viveu teu corpo / por dentro” –  “a erótica dimensão da noite”.

 

“O coração da cidade bate

nesta Baixa plural

Polana e Malhanga, Mafalala

e Malanga,

Zélias e Detinhas, Júlias

de grandes decotes e brincos.”

 

Ou ainda estes versos: “Olhos / de teu corpo / que deslizam dentro / da cidade / viagens pelas ancas / pelas pernas / fogos da cripta / que subvertem / o desejo.” É o retorno ao “mais feminino pôr-de-sol da minha infância”: “minhas mãos entre teus seios / tuas mãos em meus infernos / devaneios, girassóis.” Há, nesta poesia, de Negra Azul, essa “temporalidade sem tempo”, esse “espanto”, “como se adivinhasse as coisas / ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno / face à morte, seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites”.

 

É essa a ideia com que ficarei da sua poesia inicial, de um certo exotismo e de uma ideia erotizante de uma realidade muito mais problemática, complexa e inquietante. Provavelmente, uma ideia inexacta ou imperfeita. No livro de homenagem ao seu amigo de geração, o grande poeta Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos é mais metafísico e estabelece um vasto diálogo com poetas importantes na sua formação e afirmação. Com Reinaldo e na companhia do psiquiatra Fernando Ferreira liam poetas como Rainer Maria Rilke. Mas também Goethe (Wherter), Joyce ou Proust.  

 

“Senta-te aqui Ricardo Reis entra neste jogo

e charla de café, ajuda-nos a irmos mais longe,

superar sonhos gregos e persas, e atravessar

gentes e línguas de oceanos, portos e ilhas.”

 

Este poema parece denunciar a sua ideia de “barroco estético” e aquilo que então Virgílio prossegue como ideário poético. Cito ainda do mesmo poema:

 

“Rangel meio chinês e grego, africano tal

os Nicolaus, Rui Guerra e Zé, afro-alentejanos

Cabo-Verdes e Algarves, Carlos Maria e

eu, Virgílio, vindos da malandragem, libertinos.”

 

Virgílio de Lemos irá escrever no fim do texto: “nós que vadiamos na descontracção de surrealismos, / somos lusismos, cubismos e dadaísmos das artes.” Fernando Pessoa, disse-o, mas também Cesário Verde, Sá Carneiro, Padre António Vieira, Guerra Junqueiro, Jorge de Sena, Camões – safra dos portugueses –, os brasileiros Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou João Cabral de Melo Neto, ou poetas como Cavafy, Borges, Mallarmé ou T. S. Eliot fazem a estiva da sua busca. Mas também a música, a pintura, a poesia, a língua. E sempre a presença de Reinaldo Ferreira.

 

Durban, Lisboa, Paris, Cidade do México, Alexandria, Ibo e Zanzibar. Cidades, ilhas, destinos da sua poesia, da sua metafísica e do seu incessante desassossego. Mas sobretudo esse mito chamado Ilha de Moçambique. Chega à ilha pela primeira vez em 1952, na companhia de Gilberto Freyre, com quem discute uma identidade culturalmente mestiça, crioula, apontando-lhe imperfeições no seu luso-tropicalismo.

 

“A cultura específica das ilhas é herança barroca”, declarará mais tarde. Ilha de Alberto de Lacerda (onde nasceu e escreverá versos iridescentes) e de Rui Knopfli (autor dessa belíssima A Ilha de Próspero), ilha que será de Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, anos mais tarde, ilha que fora de Camões ou Jorge de Sena, quatro séculos depois, sempre numa invenção poética, numa celebração da língua e da sua mitologia de exílio.

 

“ilha

que dorme na utopia

pródigo mito

da poesia.”

 

Estes versos estelares pertencem a Ilha de Moçambique – A língua é o exílio do que sonhas (1999). Ali, onde evoca “os deuses do mar à minha volta”, naquele lugar onde não foge do erotismo (“teu corpo é bruma” ou “sou erotismo / na vulcânica geografia”), onde vive um “incandescente êxtase”, uma “insondável magia”:

 

“Eu sou pássaro migrante,

das ilhas-mulheres singulares

nenhum corpo igual a outro corpo,

face ao mar o irreal navega.”

 

Ali onde o poeta viaja e se declara: “sou português swahili / sou celta judeu / não confúcio mas buda”, sempre “no erotismo entre oceanos e / palavras”, “na pátria do desejo”. Na mesma ilha onde homenageia Camões e Pessoa nestes belos versos:

 

“A ilha de amores é a casa dos mortos, a nau

habitada de infernos, tumultos, espantos, a gruta

dos fogos da alma e obsessões do corpo, culto

das rotas interiores. Solidão, medo e fim, erras

na bruma, sol e sedas do teu corpo, silêncios

e gritos, inventário de mitos, a beleza em busca

de si mesma, confiante, inquieta, fulgurante e neutra

interrogando-se acoplada ao destino em ti.”

 

Canto desse “mar tão exoticamente azul” e dessa “sensual sensação na sedução azul”, nessa “própria luz feita desejo”. “Nasceste do sonho e pelo sonho morrerás / na revolução que tu próprio estrangulaste. / Foste a Europa, o Império, o mundo foste / na mais erótica irisão do que inventaste.”

 

Se há uma poesia do Índico, se há uma tradição poética desse destino Oriental, desse Moçambique e desse Oceano, dessa viagem que inclui espaços e ilhas, destinos e espantos, que o poeta exprime nas suas várias línguas, que o poeta sagra e consagra em francês, inglês ou em português, nessa busca assombrada do mar e da sua fortuna – Para fazer um mar (2001) – , é nessa mesma poesia que Virgílio de Lemos faz a sua perquirição, na sua “osmose”, “no diálogo com os mortos”, na “luz oriental da volúpia”. Mas também o inventário das suas ilhas, dos seus mitos e duendes, da sua Ibo matricial, mas tudo o que “antropofagicamente” desencadeia a sua nostalgia poética, passional e iminentemente índica.

 

Essa nostalgia poética exprime-se e imprime-se luminosamente nesse Eroticus Moçambicanus (1999) demandado no Brasil e pelo entusiasmo de Carmen Lúcia Tindó. Ou em: Lisboa, oculto amor (2000). Do seu longo e obstinado exílio francês: Object à trouver (1988), L´obscene pensée d´Alice (1989) e L´aveugle et l´absurde (1990), livros que suspendem quase trinta anos de silêncio. Duarte Galvão, Bruno dos Reis ou Li Lee Yang, numa heterónima e numa incessante inventiva e busca de si próprio, “a cor, o traço, o som e o gesto”, da sua liberdade e da sua poesia, da sua alquimia, da sua rebeldia, da sua paixão, da sua aventura, do seu gozo e da sua solidão. “O existir feito / deserto e / caos”.

 

“Serei em tudo “barroco estético” ou nada.

Na fragilidade de palavras e silêncios,

Serei espaços de deslocação,

desconstrução, desenraizamento,

universalidade no singular e plural,

respiração no seio da tragédia

ficção e sonho.”

(Virgílio de Lemos, A Dimensão do Desejo)  

 

KaMpfumo, 6 de Dezembro de 2023

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