Escrevi este artigo há alguns meses. Não o publiquei porque achei que faltavam elementos. Decidi guardá-lo, mas nunca deixei de revisitá-lo sempre que o sono me faltava e a imaginação procurava por mim.
Emprestei-me do ecumenismo religioso, definido como um processo de entendimento que reconhece e respeita a diversidade entre as Igrejas e/ou religiões. Trago aqui uma ideia de “ecumenismo político”, numa tentativa, talvez atabalhoada, de propor caminhos para uma coexistência pacífica entre diversos partidos e actores políticos. Este “ecumenismo político” pressupõe, antes de tudo, o reconhecimento de que o nosso processo de construção do Estado-nação teve erros, incongruências, descontinuidades e, em alguns momentos, armadilhas de tirar vantagens momentâneas que, mais tarde, resultaram em acusações de falta de bona fide – uma intenção genuinamente boa.
Para estabelecer uma ponte, começo pelo conceito ocidental de cosmopolitismo – uma ideia que defende que todas as pessoas, independentemente de suas afiliações ou cidadania, devem ser tratadas com igual respeito. Essa concepção sustenta que os indivíduos possuem direitos inerentes à própria pessoa humana, direitos inalienáveis e inegociáveis.
Atrevo-me a ir mais longe e dizer que questões como raça, etnia, religião, filiação partidária, orientação sexual e outras podem integrar o arcabouço do cosmopolitismo, quando ajustadas e debatidas dentro de fronteiras territoriais e jurisdicionais específicas. Proponho, portanto, que os quatro pontos cardinais do nosso país sirvam como balizas dessa construção cosmopolita e político-ecumênica.
A história recente, analisada sem paixões e com uma perspectiva crítica, revela fragmentos fundamentais do processo que nos trouxe até aqui. Desde a conquista da independência nacional, passando pelo conflito armado de 16 anos e a vigência de um partido único que se confundia ou era a personificação do Estado, até a introdução do multipartidarismo e da democracia constitucional.
Como país e sociedade, crescemos sob forte orientação ideológica e doutrinária. A visão única sobre o que era e deveria ser o país guiou nossas ações. O princípio de unicidade funcionava como um guia e alicerce contra qualquer força, interna ou externa, que tentasse subverter ou alterar o sentido da revolução.
Essa abordagem gerou desconfianças e estereótipos em relação ao “outro” – aquele diferente de nós por origem, aparência, ideologia, raça, religião ou filiação partidária. Nossa pouca emancipação naquela época não nos ensinou a lidar com essas diferenças. Assim, o discurso de unidade nacional falhou em promover a tão propalada unidade.
Hoje, ao invés de debatermos ideias, políticas, agendas e estratégias de governação, continuamos a discutir pessoas, regiões e poder. Criamos geografias políticas em nome da moçambicanidade que perpetuam divisões, como o debate sobre a vez do Sul, do Centro ou do Norte. Esses pontos cardinais não são partes desconectadas, mas sim integrantes de um todo chamado Moçambique.
No entanto, ainda não soubemos descolonizar nossas mentes nem promover o diálogo entre diferentes regiões e grupos étnicos. O processo de reconciliação sul-africano, com a Comissão de Verdade e Reconciliação, poderia servir de exemplo. Embora imperfeito, ajudou a construir uma nação arco-íris onde negros, boers, africânderes e brancos decidiram avançar juntos.
Em Moçambique, por outro lado, as feridas da guerra de 16 anos ainda não foram totalmente curadas. Carregamos estereótipos e narrativas divisionistas que dificultam o diálogo e a reconciliação. Isso explica, em parte, a falta de cultura para convivermos com diferenças.
Os discursos incendiários, perseguições e intolerância política continuam presentes. Apesar de algumas mudanças, a tensão permanece, como um barril de pólvora prestes a explodir. Nossa frágil democracia ainda carece de bases sólidas, sendo a tolerância e o diálogo fundamentais para o seu fortalecimento.
Vivemos tempos difíceis. A origem dos conflitos actuais pouco se relaciona com as eleições passadas e presentes. Esses conflitos são fruto de uma saturação social alimentada por desigualdades sociais e econômicas cada vez mais profundas e presentes no dia-a-dia do nosso povo.
Se queremos construir um país baseado em ideais, devemos ouvir e incluir pontos de vista divergentes, ao invés de combatê-los ou perseguir quem pensa diferente. Uma democracia verdadeira não pode basear-se em vitórias esmagadoras e na centralização do poder em torno do culto cego a figuras individuais.
Proponho um ecumenismo político verdadeiro e efectivo, capaz de colocar Moçambique em destaque no cenário mundial. Para isso, apresento as seguintes premissas:
- Aceitação e reconhecimento dos erros do passado e do presente.
- Diálogo aberto e inclusivo entre todos os actores envolvidos na construção do país.
- Refundação do Estado moçambicano, resgatando o que de melhor foi feito e abandonando práticas que nos levaram ao fracasso.
Pode parecer utópico, mas é nesse ideal que vejo as bases para reconstruirmos o país, respeitando diferenças e promovendo alternância de poder conforme o desejo democrático do povo.
Precisamos de uma agenda comum para reduzir desigualdades e assimetrias, combater a corrupção, restaurar o funcionamento das instituições e reintroduzir valores como cidadania, integridade e transparência em nossos currículos escolares.
O Moçambique de hoje reflecte escolhas do passado, mas o Moçambique que queremos será fruto do compromisso e determinação de cada um de nós. Precisamos, mais do que nunca, fazer valer o verso do nosso hino: “milhões de braços, uma só força.”
Este é o caminho para a Pérola do Índico.