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Nando Menete

Nando Menete

segunda-feira, 10 junho 2019 06:33

O dossiê da paz demanda Roberto Carlos*

O processo da paz em Moçambique – em prelo mais um acordo até ao próximo mês de Agosto - é um dossiê que me trás à memória (i) um pronunciamento de Samora Machel, primeiro presidente da República de Moçambique, salvo erro na recepção do Corpo Diplomático por ocasião das festas de um fim de ano na década 80; e (ii) um depoimento de uma cidadã brasileira de cinquenta anos, em 2009, falando à media, nas celebrações do quinquagésimo aniversário de carreira de Roberto Carlos (RC), o rei da música brasileira.  

 

Samora Machel, no seu discurso, debruçando sobre a guerra que assolava o país, disse: “com os Bandidos Armados só o diálogo das armas”. Uma mensagem - que em tempos de esperança pelo novo ano – não foi, certamente, das melhores para um povo que se encontrava exausto com o tipo de diálogo sentenciado. Felizmente, uns tempos depois, a abordagem de hostilização - que era mútua entre os antagonistas - foi alterada por uma de proximidade, resultando no Acordo Geral de Paz (AGP), em 1992, embora, desde então, o acordo passe por constante inquirição em cada pleito eleitoral.  

 

A cidadã brasileira referiu que RC é parte da sua família havia quatro gerações. Ela contou que os pais começaram a namorar e casaram ao som da música de RC. No dia em que a mãe se preparava para ir ter o parto, ouvia, na rádio, RC. O mesmo aconteceu com ela: casou com o namorado e RC foi o “culpado” desde o início. Ela engravidou (não me recordo que tenha culpado o suspeito de sempre) e com a mãe, a caminho da maternidade - para o nascimento da filha e neta, respectivamente – no táxi que as levava, tocava RC. A depoente terminou, contando que nos cinquenta anos de carreira de RC, a neta - igualmente com ligações aos versos do rei – já era mãe e ela, uma felicíssima bisavó. 

 

Em 2042, pressinto o depoimento de um casal de moçambicanos, numa reunião de alto nível das Nações Unidas por ocasião dos 50 anos do AGP (aproveite e confira qual será/seria a sua idade), em mais um esforço da Comunidade Internacional pela paz e reconciliação nacional no país. Um extracto: 

 

“Somos moçambicanos e ambos com 67 anos. Nascemos em 1975, ano da independência do país, conquistada depois de 10 anos de guerra colonial (…). No dia 4 de Outubro de 1992, nasceu a nossa primeira filha. Nesta data foi assinado, aqui em Roma, e nesta mesma sala, o AGP que pós fim a uma guerra de 16 anos. E volvidos 22 anos, foi assinado o Acordo de Cessação de Hostilidades (o que se esperava que fosse o da Paz Efectiva) e na data, 5 de Setembro de 2014, nasceu o nosso primeiro neto. Passados cinco anos, em 2019, veio ao mundo o nosso segundo neto, exactamente no dia de mais um acordo, o da Paz Definitiva (…)”. 

 

Agora, cada um de nós pode continuar a intervenção. Eu rezo para que o casal não tenha que continuar nos termos que se seguem: 

 

“Caríssimos representantes dos povos do mundo. Depois da assinatura da Paz Definitiva (2019) foram, sucessivamente, assinados a Paz Verdadeira (2024), a Paz Real (2029), o AGP II (2034), a Paz Realmente Efectiva (2039) e hoje, 04 de Outubro de 2042, Bodas de Ouro do AGP I, no lugar da celebração, o início de mais uma acção para um outro acordo, o da Paz Realmente Definitiva, antes das eleições de 2044”  

 

No “show” comemorativo das cinco décadas de carreira, no Estádio Maracanã, as quatro gerações da família da brasileira se encantaram ao ouvirem o rei – ao vivo e a cores – a cantar as músicas dos indeléveis momentos de amor, paz e felicidade. Infelizmente, os anos e as gerações da independência do país se resumem dentro do quadro da lógica do “diálogo das armas” e do intercalado e intricado “diálogo dos acordos de paz”. Este, nem por isso bélico, mas tão exausto quanto o primeiro.  

 

O que tudo o que foi dito tem a ver com o título deste texto? É simples. Temo que o dossiê da paz em Moçambique – um dossiê inacabado (e por encadernar e arquivar) – se arraste, nas mesmas condições, por mais quatro ou mais gerações de moçambicanos. Por uma mudança – da actual situação sombria para uma de amor, paz e felicidade – urge (e apelo) a magia das canções de Roberto Carlos no processo de pacificação e reconciliação nacional. 

 

A findar, realmente a findar, creio que um bom ponto de partida, “à nossa e numa boa maneira”, passa por colocar os antagonistas do eterno diálogo - um para o outro e olhos nos olhos - a cantarem o clássico de Roberto Carlos: Como é grande o meu amor por você! 

segunda-feira, 03 junho 2019 06:15

Um dia com Craveirinha

Por: Nando Menete/Assis Macaé 

 

Num texto recente (Por onde andas, Kalungano?) partilhei excertos de momentos interessantes de uma reunião com o poeta e político Marcelino dos Santos. Hoje, vou partilhar fragmentos de um dia - e outras circunstâncias – na companhia de José Craveirinha (ou Mário Vieira, José Cravo, JC, Abílio Cossa, Jesuíno Cravo e José G.Vetrinha), o nosso poeta-mor, falecido a 6 de Fevereiro de 2003. Um pequeno gesto para celebrar a data (28 de Maio de 2019) do seu nonagésimo sétimo aniversário natalício.    

 

Para iniciar, uns parênteses: Sempre soube quem era Marcelino dos Santos, a pessoa e a figura pública. O mesmo não era com José Craveirinha: Via-o (pessoa) na cidade e não me passava pela cabeça ou não tinha a certeza de que era o nosso poeta-mor (figura pública). 

 

Nos anos 80, ainda infanto-juvenil, tive os primeiros “contactos” com José Craveirinha em sessões espontâneas e caseiras de êxtase cultural. Nessas memoráveis sessões – composta por uma mescla de gerações de familiares e amigos - cada um mostrava o seu arcaboiço cultural e até científico. A declamação de poemas emblemáticos de José Craveirinha e de outros poetas, antigos e actuais da altura, era o auge das sessões e que nos deixava aos prantos, quiçá pelos dias cinzentos da época. À luz do tempo, e então em vésperas da democracia dos nossos dias, essas sessões foram, para os participantes, os primeiros acordes do associativismo e exercício livre de cidadania. E Craveirinha fez parte dessa aurora, um processo que – até hoje - se vai consolidando, entre sucessos e retrocessos. 

 

Era frequente avista-lo – sempre de boina preta- no bairro da Mafalala quando a malta da “Zona dos Bombeiros” – a que eu pertencia – se deslocava ao famoso bairro para afazeres recreativos (jogar e assistir futebol) e turísticos (assistir sessões de canto, música e dança). A boina preta – sua marca - fez parte da indumentária identitária da “zona dos bombeiros”. Suspeito que tenha sido uma imitação do “style” de Craveirinha. 

 

Outras vezes, no trajecto de ida e volta à Mafalala, cruzávamos com Craveirinha, no portão ou nas redondezas de sua casa, na zona da Munhuana. Desses momentos, retenho o seu ar urbano e contemplativo tal “caçador de clicks” para os seus poemas. Tenho dito, em brincadeira, que eu vi poemas de Craveirinha a serem feitos. Se não, pelo menos presenciei a safra dos ingredientes. 

 

Um outro local de avistamento era no Grupo Desportivo de Maputo, seu clube de coração. Neste clube, e como todos sabem, calculo, Craveirinha, em tempos idos, foi um atleta ecléctico e até à morte adepto ferrenho. Ele era uma presença assídua nas instalações do Desportivo quer a acompanhar treinos e competições, quer em singelas cavaqueiras. Certo dia – o que inspira o título deste texto - realizou-se um torneio interno da escola de minibásquete do Desportivo. A minha equipa (Bola ao Cesto) foi uma das finalistas. Os jogos decorriam de manhã e a tarde e José Craveirinha presenciou-os desde a fase de grupos até a final.  

 

Quando terminou o Jogo da final, Craveirinha veio ter comigo. Puxou-me para um canto e lá fez as habituais perguntas de adultos. Após o aturado inquérito passou para a sessão de conselhos, na verdade onde ele queria chegar. Entre outras coisas, recordo que me aconselhou a não só “chutar” - eu só apostava em lançamentos à distância e certeiros (risos) - mas que devia procurar e soltar mais a bola, aproximar e “brigar feio” no garrafão. Estava a ouvir Craveirinha pela milésima primeira vez. As outras mil foram nas sessões culturais dos nossos primeiros “contactos”. 

   

“Faça isso, rapaz!”. Assim despediu-me Craveirinha. Depois de um “Tá bom, tio!” fui a casa e num ápice - já noite - voltei para assistir ao jogo dos seniores. Era o habitual duelo dos eternos rivais e vizinhos: Desportivo vs Maxaquene. À entrada do pavilhão do Desportivo, pelo portão lateral direito e no compasso para ver alguém conhecido ou localizar um bom lugar disponível, deparo-me com uma mão levantada. Era o meu “conselheiro” a sinalizar que tinha um para mim. José Craveirinha estava sentado na dobra da bancada e mais acima. Aproximei e ele afastou-se, abrindo uma brecha entre ele e um seu amigo. Sentei-me, bem apertadinho, entre os dois e pouco depois a partida iniciou. 

 

O jogo não corria bem para o Desportivo e uma vaga de apupos era direccionada ao treinador, António Azevedo. A dada altura, o amigo de José Craveirinha levanta-se e toca a chamar nomes ao treinador, terminando com um sonoro “seu careca!”. Em seguida, o ilustre amigo de Craveirinha - enquanto procurava encaixar devidamente a bunda na bancada, tal era a enchente no pavilhão - veio-lhe à consciência, perdida por alguns instantes, que José Craveirinha (sempre sereno e tranquilo) também era careca. 

 

Ultrapassado o tempo suficiente de espera, já composto e comportado, o amigo de Craveirinha desculpou-se e desprendeu um melódico: “Oh! Zé Craveirinha, tu és diferente. És um careca intelectual!”. No momento caiu-me a ficha. Afinal o meu “conselheiro” era nada mais nada menos que José João Craveirinha, o poeta-mor e nacionalista moçambicano. 

 

Anos depois, numa entrevista, a propósito da sua “galardoação” com o Prémio Camões (1991), o mais prestigiante da literatura em língua portuguesa, Craveirinha lamentou que o valor monetário do prémio encontrou-lhe a “dobrar a esquina”, aludindo, creio, à idade que lhe fugia. 

 

Infelizmente, nunca mais estive “cara-a-cara” com o poeta-mor e meu “conselheiro”, José Craveirinha. Acho que pesou o facto de eu ter passado para o outro lado da fronteira (Maxaquene) poucos dias depois do jogo a que assistimos, sentados, na dobra da bancada - à direita - do Pavilhão do Desportivo. Saravá, Mário Vieira! 

segunda-feira, 27 maio 2019 07:44

Por onde andas, Kalungano?

Vêem-me essa pergunta a propósito da homenagem pelos 90 anos de Marcelino dos Santos - o nacionalista histórico e temido membro fundador da FRELIMO - celebrados no passado dia 20 de Maio de 2019. Na verdade, não sei bem a razão da pergunta. Também não sei a razão por que escrevo estas linhas. Estarei a homenageá-lo? Não sei!  

 

Na esteira da homenagem, e através dos diversos depoimentos e arquivos audiovisuais passados nos media, não me surpreende a dimensão da sua grandeza, mas fica sempre a interrogação ou a sede de se saber mais e cada vez mais sobre a trajectória política e cultural de Kalungano, Lilinho Micaia ou simplesmente Marcelino dos Santos. 

 

Venho contando em privado os “meus encontros” com Marcelino dos Santos. Agora, tomo este momento para partilhar parte de um desses encontros como meu singelo contributo pelas suas “noventas rosas vermelhas”, palavras de Óscar Monteiro, membro sénior da FRELIMO, no tributo que presta ao seu mentor, que acabo de ler no Jornal Notícias do dia natalício de Kalungano, e que utilizo, como empréstimo, com sua suposta permissão. 

 

Em meados de Dezembro de 2006 fui convocado para participar numa reunião na sede do Partido FRELIMO com Marcelino dos Santos. A convocatória era estendida a toda a equipe de trabalho que coordenou a realização em finais de Outubro de 2006 do primeiro evento do Fórum Social Moçambicano (FSMoç), um espaço alternativo e crítico de debate público organizado por um grupo de organizações da sociedade civil moçambicana. Confesso que, na altura, alguma carga de medo tomou conta de nós e que só foi aliviada por conta da proximidade com o pessoal encarregue de interagir connosco na preparação da reunião cuja agenda seria em torno do evento que organizámos.   

 

Para efeitos do presente texto, não me irei debruçar sobre o conteúdo dessa reunião (ficará para uma outra ocasião, assim como outros episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos). Vou apenas partilhar algumas situações ou momentos especiais que me marcaram, nessa reunião. Adianto já que foi muito interessante e que houve direito, por solicitação de Marcelino, a uma segunda rodada, uma semana depois, e a um convite para o pessoal do FSMoç capacitar/interagir com os quadros do partido, no âmbito dos propósitos do FSMoç, que para Marcelino dos Santos eram os mesmos que guiaram a fundação da FRELIMO e que conduziram a luta de libertação nacional.  

 

No dia programado (finais de Dezembro de 2006) e à hora marcada (9h) lá estávamos na sede da Frelimo. Qualquer coisa como estar na toca do lobo. Do lado da comitiva da Frelimo, chefiada por Marcelino dos Santos, prontificava o ora deputado Edson Macuacua, João Bias e Florentino Kassotche para citar alguns dos integrantes. Coube-me, na qualidade de Secretário Executivo, encabeçar a equipe que representava a estrutura de coordenação para a realização do FSMoç, e assinalo, também, as presenças de Ahmad Suca, Thomas Selemane e Silvestre Baessa, companheiros com notável contributo na elevação da cidadania no país.

 

Marcelino dos Santos tinha na mesa os documentos do FSMoç, destacando o Plano Nacional. Este estava excessivamente sublinhado e com diversas cores e anotações, evidenciando que o tinha lido, como também que vinha “chimoco”. Para a nossa satisfação, Marcelino começa a reunião elogiando a qualidade dos documentos, admitindo que não via há bom tempo algo parecido na pérola do Índico, o que o deixava contente, serenando os nossos corações e receios. Ele ainda perguntou se tínhamos lido os estatutos da fundação da FRELIMO, pois os nossos documentos tinham o mesmo espírito e que ele vislumbrava possíveis pontes que se podiam construir entre o Partido FRELIMO e o FSMoç. 

 

A reunião foi repetidamente interrompida por intervalos de telefonemas de e para Marcelino dos Santos, desculpando-se em seguida pelos transtornos. Por volta das 12 horas e quando pensávamos que se estava prestes a encerrar, mais um telefonema, e Marcelino termina a chamada dizendo ao interlocutor que só teria tempo no final da tarde, pois a reunião que estava a orientar se estenderia até às 16/17 horas. Felizmente não foi um susto para nós, pois conhecíamos a fama das demoradas reuniões da FRELIMO e com a particularidade de entrarem zangados e saírem sempre coesos e unidos.   

 

Num dos telefonemas, apercebemo-nos de que era o Presidente Guebuza ou alguém próximo a confirmar um encontro. Depois de desligar, Marcelino comentou que estava desapontado ou preocupado com a hostilização do Governo de Guebuza ao de Chissano, celebrizada na famosa expressão “combate ao deixa-andar”. Referiu, ainda, que tinha pedido um encontro, creio do Partido, pois era tempo para se pôr termo à situação que até embaraçava o Partido FRELIMO. Um tempinho depois, como se constatou: o combate ao deixa-andar saiu do discurso governamental. 

 

A dado momento, debruçando-se sobre a reacção do povo por qualquer insatisfação, Marcelino recordou as escaramuças na então Cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, em Setembro de 1974, entre a FRELIMO e o Governo Português, que selou o processo para a independência de Moçambique. Ele contou que alguns colonos foram assassinados com alguma barbárie numa revolta popular em resposta a atitudes de alguns sectores coloniais que estavam em contramão. Aproveitei a ocasião e informei que tinha um livro (que foi) escrito nesse período e que retravava, em parte, o que ele acabara de contar. Nesse instante, Marcelino olhou-me e franziu a testa como quem estivesse a desconfiar da veracidade do que tinha acabado de ouvir.   

 

Em outro momento, Marcelino dos Santos anotou que acabava de ler o livro “Memórias em Voo Rasante” de Jacinto Veloso, outro membro sénior da FRELIMO, lançado em 2006, e por coincidência eu e o Silvestre Baessa acrescentámos que também o tínhamos lido, por sinal, o mesmo exemplar. Da leitura do livro ou da conversa sobre o mesmo com Jacinto Veloso, Marcelino disse - embora os dois políticos fossem companheiros de jornadas há várias décadas - que se apercebeu de que um dos livros que influenciou o General Veloso foi o “Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que, também para ele, é uma referência e contribuiu grandemente para a sua consciência política. 

 

Ainda sobre o livro de Zamora, Marcelino lamentou que nunca tenha visto o original e que apenas tenha lido fotocópias. Voltei a aproveitar o momento, e disse-lhe que eu tinha o original. Desta vez, interrompendo o gole de água, Marcelino dos Santos abriu mais os olhos, direccionando-me com intensidade. Em seguida, apontou-me o seu dedo indicador, e com o tom de voz mais ríspido e denotando um iminente sorriso exigiu veementemente: Eu quero ver a sua biblioteca! 

 

Cá por mim, pensei: Agora é que me lixei. Desde então, fiquei com uma promessa oculta de passar-lhe o original do “Processo Histórico” de Juan Zamora, e eu ficar com uma fotocópia! 

 

Por onde andas, Kalungano? Agora sei a razão da pergunta. De certeza que não lhe procuro para saldar a minha promessa oculta ou mostrar-lhe a minha biblioteca, mas apenas para beber mais do teu “Processo Histórico”. Acredito que não seja só do meu interesse. É um Imperativo Nacional. 

 

 Saravá, Lilinho Micaia! 

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