A nossa casa havia sido concebida pelo meu próprio pai. Nem sequer eu e meus irmãos tinhamos noção da existência de um arquitecto. Era formada por dois compartimentos, sendo uma casa grande e uma dependência. A casa grande tinha dois quartos, uma dispensa, uma sala e um corredor. Num quarto dormiam os nossos pais e noutro a minha irmã e as minhas primas. Na dependência havia três quartos erguidos em forma de comboio, sendo que um quarto era reservado as visitas e eu e o meu primo ocupávamos os outros dois.
O dia começava cedo em Memba. Quando o anúncio do adine da mesquita central se espalhava pelo bairro, tratavamos de acordar para iniciar as tarefas domésticas que eram distribuidas entre todas as crianças, independentemente do sexo. Todos nós faziamos a limpeza, lavavamos os pratos e iamos a torneneira acarretar água. A única diferença que existia entre meninas e meninos era na hora de dormir, com as meninas a seguirem para o seu quarto na casa grande e os meninos aos seus quartos indivuduais na dependência. Eu e o meu primo eramos únicos com nossos próprios quartos, porque nem mesmo o meu pai conseguiu ter seu próprio quarto, tendo que dividir um com a minha mãe.
Depois das actividades domésticas, todos nós seguiamos a escola. Meu pai e minha mae para trabalhar e nós para estudar, sendo que cada um tinha o seu horário e as tarefas domésticas eram distribuidas em função do horário escolar. Aos fins-de-semana jogávamos nome-terra, liamos estórias e faziamos concursos sobre quem conhece melhor geografia, história, matemática e cultura geral. Minha mãe elaborava os jogos e nós concorríamos, sendo que o vencedor era dispensado de algumas actividades domésticas para ir jogar futebol no salão. É assim que eu me esforçava a decorar conteúdos de várias disciplinas e me cultivar com livros e atlas na biblioteca comunitária de Memba para conseguir vencer as competições para que me sobrasse tempo para jogar futebol no salão da Escola Primária Completa de Memba-Sede.
Aos feriados, todos seguiamos a praça dos heróis. Assistiamos a deposição de coroa de flores e iamos ouvir grupos de tufo, makwaela, woroko, nsope e de vez enquanto, nivulule, ekerekere e mattapa. Seguia-se a um discurso do senhor administrador e iamos a casa, onde comiamos arroz, feijão, carne, e tomavamos sumos e refrescos. Beber água e tomar chá de chabalacate não nos dava prazer, por isso não que recordo de forma romântica. O meu pai abria um garrafão de vinho tinto e tomava com seus colegas e nas conversas falavam assuntos da escola, dos alunos, planificação, pontualidade, avaliação de controlo sistemático, avaliação de controlo parcial e outras expressões que não percebia. Falavam inclusive do aparelho do estado e como tivessemos em casa um aparelho de marca “pansonic” com duas boas de entrada de cassete julgava que o aparelho do estado fosse um “philips” muito grande, que talvez tivesse oito bocas de cassete. Nas conversas entre os meus pais e seus amigos, ouvia falar do regulamento interno da escola e ficava a pensar que a escola também usa camisas que devem ser colocadas dentro das calsas.
Um dia destes meus pais usavam uma camisete amarela, com um simbolo que continha um livro, umas sigla e seu significado “ONP-Organização Nacional de Professores) e uma frase de que me recordo que vinha estampada: “Em formação de professores não se improvisa, investe-se”. Talvez seja isso que eles tentaram fazer com os seus filhos e alunos, investir neles para que fossem cidadãos em pleno exercício de seus direitos.
Felíz 12 de Outubro – Dia do Professor de Moçambique
Claro que aquele punk é uma total fraude. Nos primeiros dias de julgamento, confesso que disputei as almofadas do sofá com os gatos para ouvir e ver o juiz. Os meus gatos miavam e enrolavam as antenas das suas caudas sobre as minhas pernas e eu com um frasquinho de pomada acompanhava o julgamento, pois o juiz já nos tinha dito que era alérgico à corrupção. Não sei, mas se a alergia o atacasse podia esfregá-lo através do ecrã da televisão a pomadinha contra a alergia. Todos reclamam naquela tenda: de fome, de cansaço, dos sapatos com a graxa comida por poeira, mas o juiz é o único que não se revolta contra a pomada de alergia que não tem. (Será que ainda precisa?)
Deixei, aos poucos, de acompanhar o julgamento, pois o juiz a cada dia virava uma pequena ave naquela tenda; abria as asas da sua bata e as punha sobre os seus registos como uma galinha aquecendo os seus ovos. E de quando em quando, o juiz cacarejava para pôr ordem na tenda, mas os pavões de farda amarela sobrevoavam sobre as suas ordens. E o juiz coçava-se sem parar, talvez precisava da sua pomadinha.
O juiz depois disse-nos que era católico, talvez tenha sido a partir desse momento que nos encheu de sacramentos de desesperança que revelaram a nossa comunhão distante com a justiça. Foi nesse mesmo momento que o juiz passou a ser acólito na tenda da BO: acompanhava as rezas em forma de provas do ministério público, ungia os réus com gotas de paciência e ajudava com toda sinceridade a afastar as bocas superiores que comeram a grande hóstia das dívidas.
Eu dizia que o punk do juiz é uma total fraude, pois claro. Mas antes do punk, falemos do juiz futebolista que não se faz presente na tenda. O meritíssimo juiz disse que gostava de futebol, muito bem. Mas diversas vezes o vi com possibilidades de remates bem acertados, com bolas que podia levar ao peito, mas sempre reclamou que não tivesse provas e nem indícios para encher a tenda de golos e gritos. E o juiz, às vezes, baralha tudo, pois coloca-se como árbitro e indica a baliza em que se deve marcar e diversas vezes apita um fora-de-jogo quando os réus avançam com dribles de nomes na grande área. Haja paciência, senhor juiz. Se a tenda não tiver o relvado em condições, diga-nos; podemos pedir um tribunal em Marrocos.
Quem ainda não viu que o punk do juiz é uma total fraude? Quem já parou para julgar o punk do juiz? Um homem com punk sabe agir, sabe usar a calma para agigantar a justiça. Quem nunca viu os homens de punk manifestando-se na Europa, exigindo subsídios e colocando os governos entre a lâmina e o chicote? Senhor juiz, por favor, dê mínima dignidade ao teu punk. Curta o teu punk, mas por favor, não nos exija provas e indícios, aliás, a tua tarefa é julgar e não fazer recortes a alguns nomes dos processos. Deixa os recortes para os barbeiros. Se o senhor juiz levasse os processos todos ao salão, de certeza o barbeiro reclamaria muito dos cortes que tens feito aos processos e aos nomes.
O antigo Presidente da República escolheu justamente o dia em que o país celebrava o Dia da Paz e da Reconciliação - 4 de Outubro - para, no seu mural no Facebook, fazer um post algo enigmático e de alcance e profundidade extraordinários, tais que não podem passar despercebidos a todo aquele moçambicano minimamente preocupado com o seu país. Como diríamos, usando a linguagem politicamente correcta, a todo o moçambicano patriota.
Escreveu Armando Emílio Guebuza que “Paz é quando nós, individualmente, nas nossas famílias, e nas instituições e órgãos formais do nosso Estado, não usamos as nossas posições (políticas, sociais, econômicas, ou de qualquer outra natureza) para produzirmos, ou projectarmos sobre os outros, um poder disconforme, discriminatório, selectivo…” Frase própria de um bom cultor da língua portuguesa… um poeta! Falou um poeta que, aliás, o é Armando Guebuza. A propósito, para quando mais poesia do poeta Armando Emílio Guebuza, autor de “Os Tambores Cantam”? Ou não teremos mais, o homem poeta foi completamente esmagado pelo animal político!…
A frase é de uma profundidade tal - um comentador na página do antigo chefe de Estado diz que se trata de uma “mensagem poderosa” - que precisamos de recorrer à semântica pura, um departamento da linguística, para interpretar e entendermos melhor o seu sentido. Está a dizer, o ex-Presidente da República, que a paz, o sossego, a tranquilidade é quando nós como indivíduos não usamos as nossas posições políticas (dirigentes políticos), sociais (líderes ou figuras de prestígio), econômicas (empresários, ou com emprego bem remunerado), ou outras, nas nossas famílias, instituições e órgãos formais do Estado para arremessar, fazer reflectir sobre os outros situações de desconforto, de discriminação, de exclusão ou segregação. Ou seja, quando não usamos a nossa posição para não deixar à vontade os outros à nossa volta, para não promovermos discriminação seja de que natureza for; não patrocinamos a exclusão e ou a segregação. É isto que o Presidente Guebuza está a dizer.
Podemos assumir que o antigo Presidente não quis dizer directamente que não estamos em paz, mas deixar a assertividade ao critério do leitor. E a inferência a fazer das palavras do post é mesmo que não estamos em paz porque não estamos a usar as nossas posições para promover a união, a coesão e a harmonia familiar e social entre os moçambicanos; não usamos as nossas posições para proporcionar o à vontade aos concidadãos (a disconformidade/desconformidade); para não proporcionar oportunidades iguais a todos os moçambicanos e para não incluir a todos na vida do nosso país! Esta é a mensagem clara ainda que não directamente enunciada (statement) do nosso antigo presidente!
Mensagem clara e corajosa.
Se o Ex-Presidente recorreu, nesta oportunidade, às suas capacidades poéticas para sofisticar a sua mensagem crítica, já no anterior Comitê Central não se fez de velado. Denunciou aberta e duramente o que chamou de ressurgimento do tribalismo dentro do partido de que é membro e foi dirigente, a Frelimo, e, por consequência, na sociedade moçambicana em geral. Pronunciou-se igualmente sobre o que considerou de caça às bruxas de que aparentemente ele próprio estava a ser vítima.
Assino por baixo das mensagens do nosso antigo Presidente da República, na totalidade. Hoje por hoje, a proveniência geográfica é informação importante para certas oportunidades. A paz ainda está bem distante da Pérola do Índico - a paz como tal e a paz espiritual. As armas ainda troam, estrondam vigorosas, seja ao nível individual, seja ao nível de estado.
Não haverá paz no nosso solo pátrio enquanto tivermos uma sociedade em que se desenvolve uma política de perseguição (mas não sei bem quem está a perseguir a quem), enquanto as famílias não estiverem à vontade, as oportunidades de vida não forem proporcionais para todos os compatriotas; enquanto praticarmos uma sociedade de exclusão, tribalista, de segregação, de discriminação, de nepotismos e de intolerância. Acrescentaria mais: não haverá paz enquanto não nos considerarmos todos moçambicanos, não estivermos reconciliados e não vermos permanentemente nos outros falta de patriotismo e nós os mais patriotas que os outros.
Mas nota importante aqui impõe-se. Não deixa de ser bastante interessante que seja quem é a levantar estas questões de fundo, estruturantes e lamentáveis na nossa sociedade. Não uma pessoa qualquer. Uma pessoa que teve tudo nas mãos! Agora, a pergunta inevitável que se (lhe) coloca é: tendo sido ele quem foi, mais alto dirigente do país, líder da sua formação política, que mecanismos procurou ele para que, como disse na reunião partidária, a Frelimo não volte àquela de 62 e para que em Moçambique o tribalismo não volte a ser uma questão que venha ao de cima, fluorescente; para que Moçambique seja declarado livre do tribalismo? Que estratégia encetou ou promoveu para que a exclusão, a segregação, a discriminação e a desconformidade voltem hoje a ser tristemente uma prática a que assistimos todos os dias. Ou durante o tempo em que esteve ao leme estas atitudes não se manifestavam?
Os líderes políticos não só devem deixar para os seus povos escolas, hospitais, estradas e pontes, mas devem também deixar uma sociedade de harmonia, de inclusão e em que as oportunidades são proporcionadas de igual para todos os membros da sociedade.
ME Mabunda
“Uma fronteira existe justamente para ser cruzada” (Achile Membembe)
Antes de mais gostava de deixar claro que ainda continuo a espera que o mwalimu Ngugi Wa Thiong’o, autor do livro Matigari (ainda está disponível nas livrarias moçambicanas) seja vencedor do prémio nóbel da literatura. Será uma grande injustiça se tal facto não acontecer. Entretanto, o facto do nóbel da literatura ter sido a um escritor não muito conhecido levanta enormes debates e posições, por um lado, pela sua imprevisibilidade e por outro, porque cresce um esforço de afastá-lo de suas origens.
Há 8 anos que concentrei a minha atenção ao pensamento africano. Basicamente ocupo 70% das minhas leituras a autores africanos, o que tem sido um momento de descoberta e reencontro comigo mesmo. Há dois anos tive a oportunidade de ler numa casa de hóspedes na Ilha de Moçambique, o livro “Memory of Departure” da autoria de Abdulrazak Gurnah.
Havia muitos livros na casa, mas este despertou-me por ter visto na biografia do autor que o mesmo era natural de Zanzibar e vivia na Inglaterra onde era professor na Universidade de Kent. Li o livro, registei o autor na minha base de dados e continuei a minha viagem. Há um mês comecei uma série de conversas com autores que não são conhecidos em Moçambique. Para o desenvolvimento desse trabalho tenho tido apoio do Manuel Matola que comprou para mim os livros “The eternal audience of one” de Remy Ngamije, “Uburu dead with song” de Mukoma Wa Ngugi e “Gravel Heart” de Abdulrazak Gurnah.
Li o primeiro e realizei um Ethale Talks com Remy. O programa pode ser visto no canal do Youtube Ethale Books com legendas em Português (basta procurar com o título Being an African Witer). Agora estou a ler Mukoma Wa Ngugi (também estou a ler o mapeador de ausências de Mia Couto) e estou a viajar entre Nairobi e Etiopia a seguir a trajectória dos seus personagens que querem vencer uma competição de etiopian blues. E o passo seguinte é ler “Gravel Heart” de Gurnah.
Todavia, Abdulrazak Gurnah foi esta semana anunciado como o venceu do Nóbel. Todo mundo, inclusive ele mesmo ficou supreso. Mas em meio a celebração, foi provocada uma grade discussão identitária. Aliás, pergunta-se se é ou não africano. Aqui recordei-me da conversa que tive com o escritor namíbio Remy Ngamije que definia aquilo que é, em sua perspectiva, um escritor africano.
Abdulrzak Gurnah como muitos escritores africanos não são conhecidos no continente africano. Aliás, a carreira de um escritor africano é basicamente feita fora de África. Entretanto, parece que ficou mais fácil considerar Gurnah como escritor “não africano” pelo facto da sua carreira estar a ser feita fora do continente, pese embora o mesmo se passe com autores como Ngugi, Mudimbe e Chimamanda (para citar alguns exemplos), mas também pelo facto de ele ter saído do seu país aos 20 anos na altura em que perseguiam-se os cidadaos de origem árabe a quando da revolução do Zanzibar. Também, acrescenta-se que ele não é negro, mas mestiço.
No livro “Memory of Departure”, Gurnah conta a história de um jovem que cresce num pequeno vilarejo, tendo a oportunidade de assistir a ciclos de violência durante a revolução de Zanzibar. Hassan Omar, personagem de Gurnah vive uma vida turbulenta. Seu pai é bébado, ditador e dirige a família a ferro e fogo, sua irmã perde-se na promiscuidade, seu irmão mais velho morre num acidente e claro, sua mãe vive de torturas do marido. Para além da violência que se vivia no seu vilarejo, havia violência dentro da sua própria casa. Hassan consegue escapar para viver com seu tio em Nairobi onde descobre a possibilidade de um mundo melhor, claro também cruel, mas onde a menos se pode sonhar e surge decisão que convive com a ansiedade e a tentativa de migrar.
O livro de Gurnah pode nos dizer um pouco de si. Claro que apesar de as lutas pelas independências nos serem vendidas como um momento em que todos pensavam da mesma forma, há quem não se identificava com isso e tenha decido sair em busca daquilo que constituiam seus ideias. Pode ser o caso de Gurnah. Assim como, muitos moçambicanos saíram do país para tentar a vida noutras latitudes e paradas, mas isso não os retira o estatuto de serem identificados como moçambicanos.
Para evitar me alongar deixo aqui aspectos importantes. A identidade é um conceito cuja realização deve partir do indíviduo, ou seja, é assim como me vejo e não assim como os outros me vêm e Gurnah escreveu no twitter que deseja este prémio a todos africanos, o que pressupõe que ele considera-se africano. Da mesma forma como colabora com a SOAS (uma professora do deprtamento de Swahili com quem falei ontem está aos pulos) e ensina “post colonial studies”, para além de participar em conferências e festivais. Este ano Gurnah é um dos convidados para o Ake Festival, para além de suas histórias acontecerem em África, com personagens, nomes e lugares africanos e sobre a condição dos africanos imigrantes . Gurnah fala Swahili e demonstra no livro “memory of departure” ser um bom conhecedor da cultura Swahili (tenho o privilégio de ser Nahara o que me permite identificar-me um pouco com a cultura Swahili). Por isso, não vejo porque não celebrar um nóbel africano. E para nós, nortenhos do litoral do Nampula, temos mais motivos para celebrar porque Zanzibar é mais perto de Memba (meu distrito) que Maputo (a capital do meu país).
Jessemusse Cacinda
Maputo, 9 de Outubro de 2021
Abdulrazak Gurnah foi anunciado hoje como Prémio Nobel da Literatura deste ano. A Academia Sueca prossegue, nestes últimos anos, a sua estratégia disruptiva em relação aos favoritos, laureando nomes totalmente inesperados. Sabia que hoje seria anunciado o vencedor deste ano e tinha a ideia de que o mesmo pudesse ser um autor oriundo de uma zona diversa daquela que acumula mais prémios: o Ocidente.
Eu diria que esse propósito não foi cabalmente cumprido. Gurnah nasceu, em 1948, no antigo Sultanato de Zanzibar e de lá saiu aos 20 anos, tendo feito a sua vida e a sua carreira no Reino Unido. É um escritor britânico. Parece-me um dislate quando se diz que se premiou um escritor tanzaniano. Quando ele nasceu, a ilha de Zanzibar nem sequer pertencia à Tanzania. Existia a Tanganyika e o Arquipélago de Zanzibar, que teve sempre um estatuto e jurisdição colonial independente. E mais: aqueles que abandonaram a ilha na sequência da revolução, quase todos, nunca se identificam como tanzanianos. Sobretudo os de origem indiana. Eram e são cidadãos britânicos.
Este autor parece-me ser um caso semelhante ao de V.S. Naipaul, que ganhou o Nobel há precisamente 20 anos, e que nascera em Trindade e Tobago e sempre se viu britânico. Também chegou jovem e fez toda a carreira no Reino Unido. Foi provavelmente o mais virtuoso cultor da língua inglesa entre o século passado e este. Aliás, o intrépido V.S. Naipaul chegou a cortar com uma editora (a Secker) por esta ter redigido na contra-capa de um livro (“Guerrillas”) que ele era um “romancista das Índias Ocidentais”.
Esta tarde ligou-me uma jornalista da RTP a pedir a minha opinião sobre Gurnah. Disse-lhe que falaria na contra-corrente, como anoto agora. Qual era importância do tema colonial, que estava no centro da obra deste escritor? – quis ela saber. Pessoalmente – disse-lhe - não sou um entusiasta das temáticas coloniais e/ou das perspectivas pós-coloniais em voga na Europa. Creio ser uma forma ocidental de ver a História. Nós subscrevemos a perspectiva da libertação: luta de libertação e não guerra colonial, independência versus descolonização, pós-independência e não pós-colonial. Os africanos veem a História numa óptica divergente ou até mesmo antagónica.
Para mim não é importante destacar a origem ou querer forçar uma certa nacionalidade, mas sim a sua obra. E mais: não vejo, por conseguinte, neste prémio, uma distinção a um escritor africano. Nem sequer falo do facto de ele ser mestiço e não ver nisso um impedimento para o considerarem britânico. Coibo-me até de interrogar: será por essa razão (o facto de ele ser mestiço) que o querem forçosamente tanzaniano? Ele é britânico. Escreveu sempre no Reino Unido, foi lá publicado e consagrado. Na Tanzania ninguém o conhece e nem sequer é lá editado.
Vi, aliás, algures referido que depois de Wole Soyinka (Nobel em 1986) ele era o segundo escritor africano negro a ganhar o prémio. Outro disparate. Abdulrazak Gurnah não é negro. Não me parece sequer que isso seja importante, no caso. Nem creio ter sido esse o critério. Premiou a obra. A Academia, caso quisesse outorgar a láurea a um escritor negro africano, cuja escrita fosse de raiz marcadamente africana, tinha, quanto a mim, duas possibilidades: ou dar o prémio ao queniano e veterano Ngugi wa Thiong´o (eterno candidato) ou premiar Chimamanda Adije Ngozi, autora nigeriana, das mais brilhantes da nova literatura africana.
Pergunto-me, agora e a terminar, sem sequer fazer chacota: passa mesmo pela cabeça de alguém considerar Freddie Mercury – que é, curiosamente, o meu mais favorito cantor -, nascido também em Zanzibar, justamente dois anos antes de Abdulrazak Gurnah, um cantor tanzaniano?
Maputo, 7 de Outubro de 2021
Falar da vida e obra de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos é, e será sempre um exercício que exige elevada capacidade de abstração para narrar todo um percurso e uma trajectória (caracterizados por suas incansáveis lutas, suas vitórias e porque não suas derrotas), e todos eventos que caracterizaram a odisseia religiosa, educacional e humanística desta que é uma figura incontornável na história do nosso vasto Moçambique. Para não pecar por soberba, e não perder de vista o objectivo deste texto de agradecimento, enaltecimento e despedida, focar-me-ei apenas no cerne - Um Homem ao serviço de muitas causas.
A Época Medieval é cronologicamente considerada o período mais longo da História da Humanidade (com mais de 1000 anos). Período este que viu florescer o surgimento das primeiras Universidades no mundo. Nesta época, a Filosofia e a Teologia viveram de forma única a rivalidade entre a fé religiosa e a razão científica; um conflito que opunha a religião à ciência e desafiava a cada instante a tentativas de conciliação e harmonização destes dois domínios do saber sem necessariamente anulá-los, numa fórmula traduzida na fé alicerçada na razão e, na razão que ajudaria a perceber a fé. (Intellectus quaerens fidem, et fides quarens intellectum.
Um dos mais brilhantes e notáveis pensadores da época em alusão foi São Tomás de Aquino - (figura que desempenhara tremenda influência na cosmovisão teológica e educação de Sua Eminência O Senhor Cardeal Dom Alexandre), que durante o seu percurso académico foi instruído por Alexandre Magno (Ou Alexandre o Grande). Curiosamente, o nome Alexandre, mestre de Tomás de Aquino é o nome de baptismo do Senhor Cardeal - Aproximações e coincidências que corroboram para ideia da grandeza do nome em referência.
De certo, nestas breves linhas será complicado trazer o espelho dos 103 anos em que o Cardeal viveu e fez viver, disseminando a fé, espalhando a esperança, semeando amor, educando o seu povo e proliferando ensinamentos. E nesses 103 anos teve o prazer de colher os primeiros frutos da sua incansável luta por uma sociedade mais capaz, mais justa e intelectualmente emancipada. E são esses frutos que devem se encarregar de assegurar e alargar o escopo do outrora iniciado.
Dom Alexandre foi muito mais do que uma figura religiosa e eclesiástica destacada, e comprometida na causa do bem estar social, do crescimento, da coesão no seio da Igreja Católica e do catolicismo em Moçambique, do Ecumenismo vibrante e da difusão da mensagem de Deus por todo o lado e em várias línguas. Para ele a fé tinha o poder de quebrar barreiras e unir povos (sejam eles considerados civilizados ou indígenas), e para isso as línguas nativas serviram de veículo e ferramenta estratégica de penetração e evangelização nas comunidades.
Foi um incansável peregrino da paz; astuto e apaixonado amante pela ideia de uma educação para todos e em todos níveis. Sua filosofia e ideia transformadora era clara – somente investindo mais e expandindo a educação se poderia criar bases sólidas para emancipar e desenvolver a nação, e consequentemente sonhar com um Moçambique mais inclusivo e mais próspero. Daí a sua luta assaz contra a pobreza absoluta e o seu compromisso vincado com a formação sistemática do Homem.
Sua grandeza transcende a imagem que muitos de nós temos – Patriarca da Igreja, primeiro Sacerdote e Bispo moçambicano. Na verdade Dom Alexandre foi um cultor, um educador visionário e um humanista douto com visão ampla da realidade do país e com cega convicção de que a educação do homem conduziria à libertação e à emancipação das mentes dos moçambicanos.
Dos vários momentos de partilha, fossem eles na Universidade, na Igreja e nos Seminários bem como em eventos vários públicos e privados, algo deliberadamente se repetia, entre a preocupação presente e os sonhos futuros: o paradoxo entre a riqueza do país e a incapacidade de transformar essa riqueza em algo útil para os moçambicanos. Segundo ele, Moçambique não é um país pobre; muito pelo contrário, é muito rico e mal explorado. O problema reside na falta de preparo e no défice enorme de conhecimento e precisa de mentes para transformar sua riqueza no bem-estar de todos.
As lentes visionárias do futuro, a crença na mudança de paradigma social, económico e educacional, e a transversalidade primeiro do seu pensamento, e depois da sua acção fizeram de Dom Alexandre José Maria dos Santos uma das figuras de Moçambique Contemporâneo de maior destaque, com projectos e obras transgeracionais que vão desde a formação de Padres dentro e fora do país, passando pela intermediação do conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), à formação de vários quadros superiores em várias áreas e domínios do saber.
Dom Alexandre, fora um dos mais sagazes impulsionadores das artes liberais e ciências do espírito no país, e desafiou centenas de jovens estudantes universitários e seminaristas (fazendo uso de ferramentas éticas, teológicas, filosóficas, e humanísticas) a pensarem com liberdade intelectual, e de forma crítica e analítica contribuírem para edificação de um Moçambique melhor. Fora um cultor do saber Ser, saber Estar e saber Fazer. Fora acima de tudo alguém muito preocupado com as questões éticas e com a dimensão da dignidade humana– ditames estes herdados da Filosofia Escolástico-Medieval de São Tomás de Aquino.
E é sobre estes e outros feitos de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre, que nós, a geração do hoje devemos assentar a nossa reflexão e acção. Replicar vivamente sobre as gerações vindouras e incutir a necessidade permanente de pensar no Outro; Uma reflexão centrada no homem concreto como um fim e não como um meio. Viver e ensinar a criação de modalidades e estratégias de desenvolvimento do que fora iniciado por Dom Alexandre.
A coragem para iniciar novos e ambiciosos projectos, a ideia viva e prática do altruísmo, o espírito de criar e buscar novas realidades, e o desejo de ver um país mais educado, desenvolvido e próspero são algumas das licções práticas que Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre nos deixa. Foi mais de um século de um Homem talhado para a vida do bem estar do próximo. Saibamos viver e honrar os seus feitos, os seus ensinamentos e imortalizar sua obra fazendo do nosso país uma referência no rendezvous civilizacional.
Obrigado e até sempre Cardeal Dom Alexandre
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)