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Com a aproximação do ciclone que paira sobre a região da Beira e que se vai estender território acima até à fronteira com o Zimbabwe, o Governo decretou um “alerta vermelho”. Isto significa que, devido à força devastadora que este temporal traz, aguardam-se vítimas humanas e destruição de infra-estruturas (habitações, escolas, armazéns, culturas etc ). De acordo com a Ministra da Administração Estatal, Carmelita Namashulua, o “alerta vermelho” serve para desencadear medidas de emergência para retirar as pessoas que vivem em áreas de risco e a mobilização de 18 milhões de Dólares para operações de ajuda humanitária.  

 

A declaração deste alerta aconteceu na terça-feira mas de lá até aqui pouco se viu de acções de prevenção. As televisões (sobretudo a TVM) não estão a ser usadas para mobilizar a sociedade para a gravidade do problema. Não há evidências de acções de prevenção e parece que o dinheiro mobilizado vai apenas ser usado, sempre com desvios à mistura, a posteriori. Infelizmente, este é um quadro recorrente em Moçambique. Ao invés de se evitar a ferida, as autoridades preferem que ele aconteça para usá-la depois como um instrumento de mobilização de fundos, boa parte dos quais acaba nos bolsos sem fundos de meia duzia de chefes. Ou seja, o alerta vermelho não é accionado para se fazer a prevenção mas sim como um mecanismo de financiamento das redes de acumulação instaladas nos circuitos mais obscuros do sector de emergência em Moçambique.

 

No caso concreto da aproximação do ciclone IDAI não há evidências de que entidades municipais da Beira e Dondo, mas sobretudo o INGC e os governos distritais, estejam já a executar um plano preventivo para evitar a catástrofe que se avizinha a grande velocidade e que vai "bater" na Beira no início desta noite. Os hospitais e centros de saúde estão preparados para não terem falta de água e energia e pessoal em prontidão? Já foram identificados edifícios robustos (igrejas, escolas, o Pavilhão do Ferroviário, mesmo o aeroporto, etc ) para recolher pessoas das zonas mais vulneráveis e colocá-las onde haja condições minímas de sanidade  (água, colchões, brinquedos para crianças, pesssoal para-médico)?

 

Quais serão os momentos de maior fustigação do ciclone - por exemplo: chuva intensa combinada com maré-cheia; zonas que as pessoas devem evitar circular; estradas que vão ser utilizadas para apoio de emergência (bombeiros, INGC) e que devem ser deixadas livres por outros condutores? Que precauções para evitar inundações caseiras? Há aconselhamentos para se cortem ramos de árvores que estejam sobre habitações e fios de energia eléctrica, etc?

 

Era fundamental que este tipo de alerta e dicas sobre o que as pessoas devem fazer antes do ciclone estivessem a passar em anúncios de rádio e televisão (a TVM está mais empenhada em passar anúncios de propaganda das realizações do Governo ao invés de dedicar uns minutos a preparar a sociedade para enfrentar um ciclone de tamanho impacto). Mas é sempre assim em Moçambique. Um ciclone, uma depressão tropical, ou mesmos as cheias, são sempre bem-vindas porque ajudam a mobilizar dinheiro dos doadores para encher o bolso das máfias corruptas dentro do Governo.  Todo o resto é cantiga!

As notícias dizem: 



"A Justiça norte-americana confirmou, esta sexta-feira, o envolvimento do gabinete do antigo Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, acusando Teófilo Nhangumele de ter agido em nome da Presidência no caso que corre em Nova Iorque sobre as dívidas não-declaradas. (...) 'Teófilo Nhangumele, 50, cidadão e residente em Moçambique, agiu em nome do Gabinete do Presidente de Moçambique' (...)".



E assim a Polícia já foi mobilizada e está atrás do gabinete e da presidência que se encontram a monte. A Polícia canina está em todas as esquinas. Diligências estão sendo feitas e já foi decretado o recolher obrigatório em todo território nacional. A Polícia está a trabalhar no assunto. Está a envidar esforços. Procura-se um gabinete e uma presidência de dois mandatos, os principais culpados das dívidas ocultas que deixaram o país a travar com jantes de segunda-mão. 



É um caos total. Estão em curso muitas, diversas, diferentes e multifacetadas operações: terra-mar-ar. Tem de se encontrar o gabinete e a presidência onde quer que estejam. Os parceiros históricos já foram contactados. A Rússia enviou os seus melhores mergulhadores que estão a procurar os dois arguidos algures no mar. Tubarões estão sendo confundidos com atuns, mas eles juram que nunca burlaram ninguém e os seus nomes não aparecem em nenhum documento oficial do calote. Por sua vez, a China diz que os foragidos só podem estar escondidos na Serra da Gorongosa. Helicópteros inundam o céu. Leões e gazelas se abraçam de medo. Nunca tinham visto, nem nos tempos da guerra dos dezasseis anos nem nas recentes instabilidades intermitentes. Enquanto isso, os búzios divinatórios da Ametramo sentenciam que o gabinete está junto com a presidência, numa wella, a exaltarem a pátria numa dessas praças da capital. E o povo confirma. 



Todas as evidências indicam que a autoria moral das dívidas ocultas recai sobre o gabinete e a presidência, pelo que vão responder criminalmente. Se forem encontrados, vão aguardar o julgamento em prisão preventiva. O mundo parou, finalmente os verdadeiros culpados das dívidas ocultas foram revelados. A mídia não fala de outra coisa. Diz-se que, nos últimos tempos, o gabinete vive uma vida de rei e a sua comparsa presidência anda em festas fastuosas. Compraram mansões e carros de alto calibre de último grito. O gabinete e a presidência colocaram o país na sarjeta. E agora, cadê eles? 



Gratifica-se com um prato de atum em água e sal e mangas secas com xima de mapira a quem indicar o paradeiro desses dois autores morais desta cómica maracutaia. Mas atenção: não é para pegarem naquele que foi o dono do gabinete e presidente da presidência em causa. Não! Esse não tem culpa. 

- Co'licença!

As notícias dizem: 



"A Justiça norte-americana confirmou, esta sexta-feira, o envolvimento do gabinete do antigo Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, acusando Teófilo Nhangumele de ter agido em nome da Presidência no caso que corre em Nova Iorque sobre as dívidas não-declaradas. (...) 'Teófilo Nhangumele, 50, cidadão e residente em Moçambique, agiu em nome do Gabinete do Presidente de Moçambique' (...)".



E assim a Polícia já foi mobilizada e está atrás do gabinete e da presidência que se encontram a monte. A Polícia canina está em todas as esquinas. Diligências estão sendo feitas e já foi decretado o recolher obrigatório em todo território nacional. A Polícia está a trabalhar no assunto. Está a envidar esforços. Procura-se um gabinete e uma presidência de dois mandatos, os principais culpados das dívidas ocultas que deixaram o país a travar com jantes de segunda-mão. 



É um caos total. Estão em curso muitas, diversas, diferentes e multifacetadas operações: terra-mar-ar. Tem de se encontrar o gabinete e a presidência onde quer que estejam. Os parceiros históricos já foram contactados. A Rússia enviou os seus melhores mergulhadores que estão a procurar os dois arguidos algures no mar. Tubarões estão sendo confundidos com atuns, mas eles juram que nunca burlaram ninguém e os seus nomes não aparecem em nenhum documento oficial do calote. Por sua vez, a China diz que os foragidos só podem estar escondidos na Serra da Gorongosa. Helicópteros inundam o céu. Leões e gazelas se abraçam de medo. Nunca tinham visto, nem nos tempos da guerra dos dezasseis anos nem nas recentes instabilidades intermitentes. Enquanto isso, os búzios divinatórios da Ametramo sentenciam que o gabinete está junto com a presidência, numa wella, a exaltarem a pátria numa dessas praças da capital. E o povo confirma. 



Todas as evidências indicam que a autoria moral das dívidas ocultas recai sobre o gabinete e a presidência, pelo que vão responder criminalmente. Se forem encontrados, vão aguardar o julgamento em prisão preventiva. O mundo parou, finalmente os verdadeiros culpados das dívidas ocultas foram revelados. A mídia não fala de outra coisa. Diz-se que, nos últimos tempos, o gabinete vive uma vida de rei e a sua comparsa presidência anda em festas fastuosas. Compraram mansões e carros de alto calibre de último grito. O gabinete e a presidência colocaram o país na sarjeta. E agora, cadê eles? 



Gratifica-se com um prato de atum em água e sal e mangas secas com xima de mapira a quem indicar o paradeiro desses dois autores morais desta cómica maracutaia. Mas atenção: não é para pegarem naquele que foi o dono do gabinete e presidente da presidência em causa. Não! Esse não tem culpa. 

- Co'licença!

terça-feira, 12 março 2019 13:24

Aprofundar a democracia na escola moçambicana

“Hoje estou aqui/ entre mártires e traidores/ entre bandidos e inocentes/ entre hipócritas e fariseus” (Vera Duarte, Esta canção desesperada)

 

Apaixonei-me à primeira vista pelo livro Repensar o Estado: para uma social-democracia da inovação logo que o vi, entre tantos, na prateleira de uma livraria, em Bragança, finais do ano passado. Comprei-o e passou a ser meu fiel companheiro de viagem e cabeceira.

 

A edição que tenho em mãos sai sob chancela da Círculo de Leitores, da autoria de Aghion, P. & Roulet, A. (2012), economistas franceses, tradução de Francisco Telhado, do original Repenser l’État: poer une social-démocratie de l’innovation (Éditions du Seuil et La République des Idées, 2011).

 

O livro que, em traços gerais, delineia “os contornos de um Estado repensado: Estado investidor, Estado regulador, Estado garante do contrato social e da democracia” (p.145) tem quatro capítulos, sendo o quarto Aprofundar a democracia (pp. 117-143). É nele que me baseio para tecer estas pequenas notas.

 

Não sendo cientista social, muito menos economista, este acto emana do exercício da cidadania, como os seus próprios autores testemunham, “a liberdade de consciência e de expressão, o confronto das ideias, a possibilidade de um debate contraditório, de pôr em causa um regime, ou até mesmo de derrubá-lo, fazem parte integrante da dignidade humana” (p.117).

 

O capítulo Aprofundar a democracia tem como principal linha de força a possibilidade de medição da democracia, assente, por sua vez, na democracia como indicador de crescimento, da liberdade, da criatividade e da corrupção. Nestes nós, a meu ver, podem tirar-se importantes lições para a escola moçambicana (uso o termo escola no sentido de educação), embora a reflexão original se refira aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em especial a França.

 

Para atender às necessidades urgentes da nossa escola (nossa porque também faço parte dela, no dia-a-dia, na sala de aulas), entabulamos às premissas do capítulo em recensão, a liberdade, a criatividade e os valores morais que se querem cultivados em Moçambique. Alias, parecem esses fazer um entrosamento com a linha urdida por Aghion & Roulet.

 

Ao debruçar-se sobre a liberdade, Aghion & Roulet (2012:122) apontam “é um facto que as grandes invenções não se coadunam com o autoritarismo e a hierarquia” e parece essas práticas amararem a nossa escola ao marasmo a que se encontra. Como exemplo, os autores partilham:

 

Se Larry Page e Sergey Brin, estudantes em Stanford, puderam desenvolver conjuntamente, no âmbito do seu doutoramento, o que viria a ser o Google, foi porque tiveram toda a liberdade para escolher a pista que desejavam explorar e não receberam ordens dos seus «superiores» relativamente a escolha do tema da sua tese.

(Aghion & Roulet, 2012:123-124)

O autoritarismo e a hierarquia empurraram a nossa escola para o círculo do yes man: só a ideia do chefe vinga, só o chefe sabe, o chefe sabe tudo, só o chefe fala, o chefe fala tudo. Na nossa escola quem sabe ou fala mais que o chefe sofre sevícias. Reina, na nossa escola, o culto do silêncio.

 

O aluno da nossa escola não só não sabe ler e escrever, isso é de menos. O aluno da nossa escola é ensinado a ter medo do professor, a dizer o que o professor quer ouvir, a dizer direitinho ao pé da letra do apontamento. O aluno da nossa escola deve vestir-se bem e não superior ao professor, deve fazer a barba, o cabelo e as unhas, igual ao que o “regulamento” manda. Experimente furar a orelha!

 

O aluno da nossa escola é um mero reprodutor que não foi ensinado a transformar uma frase activa em passiva, a inverter o sujeito do objecto, a usar da recursividade proposta por N. Chomsky, porque o professor não disse assim. Da noite ao dia, estamos a formar autênticas multiplicadoras, caixas de ressonância, quando bem formadas.

 

O professor da nossa escola não fala em reuniões, não aponta erros e nem sabe dizer o que pensa em grupos de whatsapp institucionais com medo de não ser promovido ou ser despromovido.

 

A nossa escola devia ser o laboratório de ideias. Mas as ideias só nascem em espírito e ambiente livres: livres da burocracia excessiva, livres dos lambe-botas, livres dos chefes pro-adulação, livres da censura, livres do medo.

 

A nossa escola transformou-se em centro de imitação, “pelo contrário, nos setores de ponta, o crescimento das empresas baseia-se na inovação «na fronteira», que implica delegar pelo menos parte do poder decisório, de maneira a estimular a criatividade no seio da empresa” (Aghion & Roulet, 2012:124).

 

A criatividade só é possível onde não se tem medo de errar, onde não se tem medo de experimentar novas coisas, novos métodos, novas técnicas, na fronteira entre a realidade e a loucura. Este espaço parece cada vez mais longe da escola moçambicana.

 

A gritante falta de valores morais na sociedade moçambicana é, em grande medida, produto da nossa escola. Numa escola aonde a democracia não está aprofundada não se pode praticar os valores da tolerância, da escuta, do respeito, da cedência, do perdão, do amor ao próximo, da paz. E, em última instância, nesse ambiente não se pode exaltar a pátria.

 

A nossa escola inverteu os paradigmas: transformou nacionalistas em gatunos, dirigentes em corruptos. A mudança desse quadro, tal como Aghion & Roulet (2012:118) sugerem para uma economia de crescimento, parece estar no aprofundamento da democracia na nossa escola. E isto passa por: (i) um maior grau de democracia e descentralização na gestão da nossa escola – que, por sua vez, propicia a criatividade e o aparecimento de novos paradigmas; (ii) um sistema político mais democrático e menos corrupto, onde os lóbis exercem menos influência sobre os gestores da escola – o que dá lugar à inovação; e (iii) evitar comportamentos de favoritismo ou de clientelismo – o que impede que a escola seja tomada por interesses da casta dos gestores a base de favores e apetências pessoais.

 

Para fortalecer esse quadro de uma democracia aprofundada, para o qual a escola joga um fator determinante, Aghion & Roulet (2012:129) sugerem que os meios de comunicação social sejam suficientemente independentes para apontar o dedo a práticas políticas duvidosas ou abusivas e que se criem instituições adequadas e dotadas de meios suficientes para avaliar as políticas públicas de forma sistemática, independente e rigorosa.

 

Enfim, parece aprofundar a democracia na escola moçambicana ser o passo para o povo tomar o poder.

___________________________

[1] Linguista, escritor e docente.

 

terça-feira, 12 março 2019 10:18

O lugar do eu e do outro na cidadania

A todas e a todos, permitam-me que expresse a minha felicidade por estar aqui na Universidade Lusófona do Porto, para fazer parte da mesa redonda sobre o ‘Associativismo e Cidadania’, na companhia da Cecília Gonçalves, Fátima Cordeiro, do João Russo, do Joaquim Guedes, e do Alberto Magassela.   

 

Ainda no espírito de 8 de Março, é com muito gosto que me dirijo às raparigas, jovens e mulheres, presentes nesta sala.

 

Antes de começar, permitam-me, de igual modo, agradecer a Índico Associação Cívica de Moçambique, em Portugal, pelo convite.  

 

Como nota prévia, devo confessar que o convite que recebi com muito gosto para ‘cogitar’ sobre ‘Associativismo e Cidadania’ no contexto global é desafiante pois o meu ‘raciocínio’ melhor funciona na lógica local, glocal e global. Todavia, o termo desafiante faz parte de um leque de palavras que se tornaram ‘corriqueiras’ no contexto moçambicano. Espero saber fluir nesta globalidade multi e pluricultural.

 

Falar de associativismo e cidadania, ou melhor, o que no nosso ‘dialecto’ seria o jargão “activismo”, faz parte da característica ‘social’ do ‘eu’ que pensa no outro, um ‘eu’ que não se dilui na relação com o outro, mas sim que se fortalece e se humaniza cada vez mais na companhia do outro. Para o contexto ‘local’ português, diria: um ‘eu’ que busca aprender e fortalecer com o ‘eu’ multicultural.

 

A cultura que o activismo, ou se preferirem, que o associativismo e cidadania devem evocar, é a cultura das entrelinhas dos artefactos, a cultura implícita nas capulanas, uma cultura mental imbuída de abertura e aceitação do outro.

 

Cultura não como uma condição acrítica ou condição pré-lógica, cultura não como polarização. Mas cultura como terapia, cultura como superação, cultura como o bem-estar e bem-ser, cultura como status quo na ciência, cultura como ética, cultura como empatia, cultura como alteridade e cultura como glocalidade.

 

Actualmente esta temática ganha mais relevância na condição de movimentos sociais, pois hoje, ao que mais se assiste, infelizmente, é o fenómeno do nossismo, isto é, a lógica nós e outros, ou estás comigo ou estás contra mim. Simplificando, vivemos hoje numa época em que se legitimam, de maneira estrutural, as várias formas de intolerância e violência (simbólica) face ao ‘estranho’, ao ‘viente’, ao ‘diferente’. Pois, para uns, a narrativa actual sobre a cidadania pode ser um campo de aberturas analíticas e, para outros, pode ser um campo fechado, linear e sem esperança.

 

Quando estes dois não comunicam, não procuram uma forma de entendimento, entram para um status quo nocivo que levaria a pontes quebradas, onde, de um lado, tens o eu e do outro lado bem distante tens o outro que pensa de forma diferente e, consequentemente, é visto como o eterno outro a ‘abater’, o que seria o nossimos

 

O triângulo euismo, outrismo e o nossismos faz parte das formas (ins)conscientes da fobia pelo diferente, criando assim várias nuances do nossismo, a saber:

 

  • Nossismo comunicativo como uma forma que ganha espaço na significação da nossa narrativa onde os ciber-intelectuais com recurso a popularidade e populismo criam ‘fábricas mágicas’ de pós-verdades;
  • Nossismo identitário como forma de marcar território, representa uma outra nuance da perigosidade da relação eu e outro. Os temas actuais na nossa narrativa ‘digital’ giram à volta da identidade tribal, regional e, quiçá, por voltas gemas, ou moçambicanos de primeira e os moçambicanos de segunda, ou, europeus e emigrantes/refugiados. Esta forma linear e fechada de ver e mergulhar no ethos do país funciona para legitimar as diferenças (formas excludentes) no lugar da tão sofrida e bem conseguida narrativa: ‘unidade nacional’;
  • Nossismo cultural como o status quo, o nossismo cultural faz parte de um ethos inflexível, que legitima os grupos através da cultura, o que seria cultura para o país bilionário culturalmente?
  • Nossismo político é elevação e legitimação da intolerância no seio dos grupos, dos movimentos e dos partidos políticos, podem ser assumidas como uma forma de violência simbólica, sem mencionar aqui as várias nuances e dimensões da violência associada a este ethos. No lugar de perceber o outro, no lugar de comunicar com outro, o encarramos como sendo um inimigo por abater do espaço político, no lugar de uma co-habitação política, num contexto de liberdades individuais e colectivas.

Nós produzimos inconscientemente estas formas de ‘medo’ perante ao desconhecimento, que não precisa ser necessariamente físico, pois, muitas vezes, ele está na dimensão mental, cultural e ideológica.  

 

Os discursos dos governantes, dos políticos e dos activistas estão cheios de narrativas acerca da cidadania activa, mas, no final do dia, trata-se de uma cidadania formal ou informal? A zona de conforto está na narrativa da cidadania formal, legislada, aquela que fica bem na fotografia, pois tem um ‘rosto’.

 

A cidadania informal irrompe do quotidiano, não conhece ‘as leis e as regras’, não tem ‘rosto’, a cidadania informal é rica pelo anonimato, ela é elástica e flexível. Isso faz dela vítima da sua própria condição.  

 

Cidadania é saber ser, saber estar e saber viver com os outros, ou seja, estar online pelo lugar do eu e pelo lugar do outro.

 

Cidadania pressupõe o eu social, o outro, o grupo, a relação intergrupal que deve ser alimentada pela relação intra-pessoal.

 

  • Cidadania é saber estar em grupo.
  • Cidadania é saber comunicar e saber ouvir.
  • Cidadania e associativismo são formas sociais estruturais de participação activa

O eu e o outro pressupõem uma comunicação ética e empática, enquanto categorias das nossas relações grupais, pois só somos eu e eles porque existe uma relação com o outro, mas, o que acontece quando não temos a ética e empatia em nome da cidadania?  

 

Riscos ou desafios que devem ser evitados em nome da ‘cidadania’, em nome do ‘associativismo’ e em nome do ‘activismo’, a saber:

 

  • O activismo deve evitar diluir-se nas questões éticas;
  • Evitar perder a empatia e alteridade;
  • Não perder a capacidade bonita de saber ouvir e escutar;
  • Evitar diluir-se na política, ou seja, ‘fazer política’ em nome do activismo e dos ‘outros’;
  • Evitar ser eleitoralista;
  • Evitar substituir o outro, pois, sem o outro, seria possível ser activista?

Obrigada a todas e a todos

Dos 21 arguidos do processo das “dívidas ocultas”, 11 já estão em prisão preventiva (a detenção de Osvaldo Catela continua a passar despercebida). Ontem foi ouvida a senhora Carolina Reis mas não se sabe se vai ser detida. A PGR corre agora em velocidade de cruzeiro para lograr deduzir uma acusação provisória até o próximo dia 26 de Março, dia em que termina o prazo de prisão preventiva dos arguidos presos a 14 de Fevereiro, caso os advogados não requeiram a instrução contraditória. 

 

A investigação conta agora com mais elementos: buscas efectuadas em residências e escritórios dalguns arguidos recolheram evidências documentais essenciais para a acusação ter forças para enfrentar uma instrução contraditória que promete ser dura. São cerca de 14 mil folhas de processo. Se a 26 de Março, o Ministério Público não conseguir deduzir essa acusação provisória (o que parece pouco provável), a defesa vai exigir a alteração da medida de coação mais grave, a prisão preventiva, para uma mais leve, nomeadamente, a liberdade provisória sob caução. 

 

Mas até agora fica pouco claro se haverá mais detenções. Os critérios usados pelo Ministério Público impedem qualquer futurologia. Aliás, os critérios não são claros. Em Janeiro foi dada a ideia de que nem todos os arguidos iriam ser detidos – alegadamente porque havia quem se predispusera a colaborar imediatamente na investigação, desde o seu início, embora isso não conferisse a qualquer fulano o estatuto de protegido da justiça e de isento de responsabilização.

 

Mas e depois a PGR passou à fase das detenções propriamente ditas e o que é que vimos? 

 

Quatro perfis de detidos: i) os alegados orquestradores do calote (Nhagumele, Rosário, Ndambi, Leão e Tandane); ii) os receptores directos de subornos da Privinvest (Inês Moiane, Sérgio Namburete e Fabião Mabunda); iii) os receptores indirectos de dinheiro da Privinvest, designadamente pessoas que venderam bens em operações de lavagem de dinheiro (como Sidónio Sitoe); iv) e um último grupo onde cabe uma mistura de arguidos cujo papel se situa entre a gestão de bens comprados alegadamente com dinheiros do calote (como Ângela Leão e Elias Moiane) e o simplesmente desconhecido (Osvaldo Catela).

 

A questão que se levanta nos meandros mais atentos ao caso é se esta arrumação de perfis corresponde mesmo a um critério mensurável e objectivo ou se o Ministério Publico está a prender com base em outro tipo de critérios completamente insondáveis para a opinião pública. Uma explicação cabal sobre isto é necessária, para afastar nossa tendência imediata de enxergar teorias de conspiração onde ela até não existe, nomeadamente a ideia de que as detenções seguem um cunho eminentemente selectivo.

 

O problema é que há na lista de arguidos gente com perfil semelhante ao dos arguidos detidos mas que anda à solta. Um exemplo, para não nos limitarmos a já corriqueira menção do nome do ex-Conselheiro Político do Presidente Armando Guebuza, é a figura identificada na acusação americana por "co-conspirador 1". 

 

Juntamente com Teófilo Nhangumele, esta figura, que encaixa no perfil dos detidos que orquestraram o calote, recebeu de subornos cerca de 8.5 milhões de USD, directamente da Privinvest, designadamente em 2013, poucas semanas após o contrato da ProIndicus estar fechado. À luz da delação premida americana, o fulano pode estar isento de responsabilização criminal nos EUA mas em Moçambique também fica isento? Eis, pois, uma questão que merece clarificação imediata. Se a acusação americana foi essencial para a prisão dalguns arguidos por que é que as evidências de que os "co-conspiradores" receberam subornos não são usadas para a sua responsabilização em Moçambique?

 

Quanto a mim, é fundamental que a PGR divulgue a lista de todos os detidos e explique por que é que uns são presos e outros não. A opinião pública moçambicana está sedenta de transparência também em relação aos procedimentos da justiça. E pergunta-se a si mesma, em todos cantos, com um vozeirão infernal: afinal porquê alguns são detidos e outros se passeiam impunemente?