Depois da tia de óculos de ar(co) cinzento o médico é a segunda figura de quem se tem medo em tenra idade. Talvez seja por isso que na idade adulta, diante do médico, este, diferente do juiz no tribunal, não precisa que o seu paciente jure perante a lei ou mesmo que esteja autorizado a mentir a seu favor. Ainda mais: na generalidade, o médico não precisa da intervenção policial para que o seu paciente execute uma sua ordem, incluindo a de ficar tal como o mundo o recebeu.
Salvo melhor informação, o médico é o primeiro a ser recebido pelos detentores de poder como reis e presidentes, antes dos respectivos afazeres diários. Porventura, este seja o único momento em que a verdade é parte do menu diário do alto dirigente, pois o que acontece depois é tudo da esfera da peleja política.
Neste momento, o da visita do médico, o (bom) líder aproveita a ocasião e pergunta ao médico: “Como estão as coisas lá fora?”. Em seguida o médico partilha as dores (sociais, económicas, culturais, etc) da sociedade que as sente e escuta-as dos seus pacientes.
Este introito não tem nada a ver com a greve dos médicos, ora suspensa. Tem a ver com uma minha curiosidade sobre o invulgar interesse ou sensibilidade política dos médicos. O mundo esta cheio de exemplos de médicos que se tornaram grandes políticos e até revolucionários. O exemplo mais à mão é o do argentino-cubano Che Guevara.
Certa vez, perante esta minha curiosidade, alguém disse-me que a tal sensibilidade política dos médicos resulta do seu contacto profissional com os pacientes, no qual estes, fora partilhar os sintomas do que padecem, partilham outros sintomas e dores que enfrentam no seu dia-adia.
A explicação fez-me algum sentido a ponto de pensar se as dores dos médicos não seriam também as dores do povo? Se sim, ou se não, não sei. Por ora, apenas ocorre-me a tia de óculos de ar(co) cinzento: que me lembre ela nunca soube das dores do seu sobrinho.
Nando Menete publica às segundas-feiras.
Sempre que uma crise governamental se instala, analistas e comentadores de política apontam falhas na comunicação governamental. Foi assim com as crises de aumento do pão, do aumento do preço dos combustíveis, dos transportes e até da insurgência em Cabo Delgado. Mais recentemente, foi o caso das cheias na Província da Maputo e agora a greve dos médicos e dos funcionários de saúde, que mais uma vez colocam a Comunicação Governamental sobre escrutínio publico, afirmando que a comunicação governamental é deficitária.
No Programa Noite Informativa da STV (20.08.2023) Moisés Mabumba e Samuel Simango, falando sobre a Greve dos Médicos e dos Funcionários da Saúde, destacam a fraca capacidade comunicativa do Governo, como um dos principais factores que tem contribuído para o extremar de posições entre as partes e para o agravamento da CRISE.
As sucessivas crises pelo que o Governo vem passando nos últimos tempos, levantam a necessidade de uma reflexão sobre o papel e a contribuição da comunicação na governação, se tomarmos em linha de conta, que não é possível dissociar a comunicação da acção governativa, uma vez que uma governação de sucesso é aquela que coloca o cidadão no centro da sua acção.
As deficiências de Comunicação do Governo, não podem ser sustentadas por um princípio de incompetência ou de incapacidade dos gestores de governamentais de gerir seus processos de comunicação. há vários factores de carácter estratégico e operacional, que tem contribuído para uma comunicação deficiente do GOVERNO, com impacto negativo sobre sua capacidade de estabelecer relacionamentos, resolver conflitos e proteger sua reputação.
Não pretendo fazer uma discussão teórica sobre o conceito de Comunicação Pública ou Governamental, mas perceber, quais os factores que fazem com que a Comunicação Governamental seja deficiente e apontada como um dos elos mais fracos da Governação, sempre que crises acontecem.
O PAPEL E O VALOR DA COMUNICAÇÃO NAS ORGANIZAÇÕES
Um ponto importante e fundamental para a compreensão do papel da comunicação e sobre sua importância para as organizações, é que elas, devem em primeiro lugar, ser entendidas como parte inerente à natureza das organizações, pois, estas, são formadas por pessoas que se comunicam e se relacionam entre si e que, por meio de processos interativos, viabilizam o sistema funcional para sua sobrevivência e cumprimento dos objetivos organizacionais num contexto de diversidades e de transações complexas.
Apesar de percebermos que a comunicação é imprescindível para as organizações, muitas, particularmente em Moçambique, continuam a enfrentar desafios importantes no que tange a sua aplicação. O maior constrangimento para o sucesso da comunicação nas instituições publicas e governamentais em moçambique, tem haver com o papel e posição que lhe é destinada.
No início da década 1990, a caminho do Seculo XXI, A comunicação deixou de ser vista apenas como ferramenta de gestão táctica e passou a ser considerada área estratégica nas organizações. Assim, no contexto atual não há como pensarmos comunicação senão de forma estrategicamente planejada, fundamentada nos valores corporativos e focada no cumprimento dos objetivos de negócios das organizações. No caso do sector público a ideia central é a mesma.
Infelizmente muitas organizações e gestores de organizações ainda não perceberam a importância e papel que a comunicação deve desempenhar em suas organizações. Em muitas organizações, principalmente nas organizações governamentais, a comunicação ainda desempenha um papel marginal, sem nenhum valor estratégico. Ou seja, a comunicação é vista por boa parte das nossas organizações e seus gestores, como uma área meramente de apoio, de gastos, de produção de materiais (camisetes, bonés) atendimento a imprensa, organização de festas corporativas, Dia da Mulher, Dia do Trabalhador entre outras. Esta visão reducionista do papel e da função da comunicação e das relações publicas nas instituições, constitui em si, um grande entrave ao crescimento das organizações.
Organizações de sucesso, pensam a comunicação de forma estratégica e organizada. Se no passado pensávamos que o sucesso das organizações resultava apenas da gestão adequada dos recursos financeiras e materiais, hoje, o sucesso das organizações depende muito mais da qualidade das relações que elas estabelecem, seja a nível interno ou externo.
Pensar estrategicamente a comunicação, significa planear e organizar o processo de comunicação ao nível da organização. Significa, buscar resultados a longo prazo e as melhores acções para garantir o cumprimento dos objectivos estratégicos da organização. pensar estrategicamente a comunicação ao nível da organização, significa, posicionar a função no contexto da organização, dando-lhe acesso directo ao sistema administrativo, permitindo que ela (comunicação) possa assessorar a Direcção da empresa, avaliando seus objectivos e fazendo recomendações sobre como a área pode contribuir para esses objectivos; contribuir para analise de planos dos planos de negócios das empresas, identificando problemas e oportunidades para área de comunicação e estabelecendo programas para minimizar situações indesejadas e maximizando situações positivas; antecipar do ponto de vista de comunicação situações que possam vir a causar impactos negativos sobre a organização e acima de tudo, desenvolver a função de forma planeada e integrada as demais áreas da organização.
Do ponto de vista da governação, pensar estrategicamente a comunicação, que ela deve acompanhar todos os processos de governação, através de um processo de planificação e organização das suas actividades de modo que os governantes consigam dialogar com os seus públicos distintos.
Significa ainda que, os planos de governação como por exemplo o PES – Plano Economico Social ou Programa Quinquenal do Governo, devem definir a comunicação como uma ferramenta estratégica para a sua implementação e sucesso.
Numa analise rápida do Programa Quinquenal do Governo 2020-2024, no Pilar II: Promover a Boa Governação e Descentralização, define a boa governação como “A boa governação refere-se a mecanismos, processos e instituições, sobre os quais os cidadãos e grupos sociais articulam interesses, exercem os seus direitos, cumprem as suas obrigações e medeiam as suas diferenças. A boa governação visa garantir a transparência e participação de todos, providenciar a eficácia e eficiência na prestação de serviços ao público” para tal, recomenda no ponto (V) dos objectivos estratégicos, para garantir a consolidação da boa governação e da descentralização, que o Governo, “assegure serviços de comunicação social e informação de qualidade”.
Se a prioridade do governo é promover a boa governação e a descentralização, então, do ponto de vista de comunicação, o seu objectivo estratégico, deveria estar orientado para o desenho e elaboração de uma política e estratégia de comunicação, que contribua para garantir a consolidação da boa governação e da descentralização. Mais ainda, a política e estratégia de comunicação do Governo deve estar igualmente orientada para garantir o cumprimento do Plano Quinquenal do Governo.
GESTAO DA COMUNICACAO GOVERNAMENTAL
Em moçambique, a gestão comunicação governamental é da responsabilidade do Gabinete de Informação de Moçambique (GABINFO). Subordinado ao Gabinete do Primeiro-Ministro, esta entidade, tem tutela sobre todos os organismos estatais e órgãos de comunicação públicos, presta assessoria ao executivo em questões específicas da área da comunicação, promovendo, entre outros, a divulgação e acesso à informação sobre as actividades governamentais. Compete igualmente ao GABINFO o registo e licenciamento dos meios de comunicação social.
Se olharmos atentamente para as atribuições do GABINFO, facilmente percebemos que estamos perante a uma organização que tem na sua génese, a gestão do relacionamento entre o Governo e os Órgãos de Comunicação Social com foco num modelo de “informação pública”, caraterizado como jornalístico, que dissemina informações relativamente objectivas por meio dos media em geral e dos meios específicos de comunicação.
Não existe um investimento no relacionamento proativo e permanente com públicos estratégicos. mais importante, falta-nos uma visão estratégica e directrizes da comunicação governamental, para garantir o cumprimento dos objectivos e do programa de governação.
O GABINFO precisa de uma vez por todas, assumir um papel estratégico, na Gestão da Comunicação Governamental e servir para prever e mitigar situações de crise, gerir relacionamentos e não apenas fazer comunicação ou campanhas sobre as realizações do Governo. Enquanto o foco do processo de comunicação governamental estiver fundado no modelo de comunicação unidirecional, as crises irão continuar a acontecer e a qualidade de resposta do Governo, continuará baixa, pois será sempre reactiva.
A semelhança do GABINFO, a maior parte das instituições publicas e ou governamentais, tem o foco dos seus processos comunicacionais orientados para gestão do relacionamento com a imprensa. Nossos governantes estão preocupados com aquilo que se diz sobre eles e sobre suas instituições nos órgãos de comunicação social e não com a construção de relacionamentos com seus principais stackholders.
Este modelo, prioriza acções de comunicação mais “táticas”, as acções tem um carater reativo e visam essencialmente proteger os executivos contra os ataques da imprensa, produzir Relatórios Boletins Informativos, Spots Publicitários Comunicados de Imprensa, entre outros instrumentos de comunicação unidirecionais, em detrimento de um pensamento estratégico e bidirecional, como recomendado.
Entretanto, o cenário actual caracterizado por impactos sociais, económicos e tecnológicos geradores de tensões, exige a adopção de novas posturas a comunicação ao nível das organizações. Seu papel deixa de ser meramente reativo e unidirecional e passa a ser estratégicos e orientado para uma diversidade enorme de públicos, mostrando aa relevância da comunicação e a necessidade de sua administração.
Porque o modelo actual não satisfaz de forma efectiva as necessidades da governação, para que a comunicação Governamental seja eficaz e excelente, deve o GABINFO ampliar o seu campo de acção, deixando de lado a logica de assessoria de imprensa, passando a incorporar na sua actuação uma logica de “comunicação” que tem como foco:
É importante que se repense o papel do GABINFO, dotando-lhe de maior capacidade operacional, técnica e humana para que efectivamente se torne a agência de comunicação do Governo. Precisamos de uma discussão abrangente sobre o tipo de comunicação que pretendemos a nível governamental. de olhar para a qualidade e a formação dos actores ou fazedores de comunicação, de olhar para os desafios que o país enfrente hoje e perceber qual é e deve ser o papel da comunicação. Acima de tudo, precisamos de buscar um modelo de comunicação que se adequado ao novo paradigma de Governação: A descentralização.
O PERFIL DOS PROFISSIONAIS DE COMUNICAÇÃO
Não menos importante do que dar o devido valor a comunicação e as relações publicas, nas organizações, o perfil dos profissionais e suas competências, desempenham um papel de igual importância, para o sucesso da comunicação ao nível das organizações. A competência e iniciativa profissional são também de extrema importância para a excelência de comunicação, uma vez que o profissional de comunicação deve ser aquele que viabiliza a convivência permanente entre a inovação e a rotina, a evolução e o retrocesso, a estabilidade e a instabilidade, a regeneração e a inércia (Gonçalves, 2013: pp. 65-66).
Segundo Margarida Kunsch, as Relações Publicas lidam directamente com a organização e seus públicos “promovendo e administrando relacionamentos e muitas vezes, mediados conflitos, valendo-se para tal, de estratégias e programas de comunicação, de acordo com diferentes situações no ambiente social e corporativo”.
Nessa perspetiva, Kunsch (1997) identifica o profissional de relações públicas como sendo o elemento mais indicado para exercer essa tarefa, uma vez que o seu campo de acção está direcionado para a análise dos planos da organização, identificando problemas e oportunidades.
É importante que os profissionais das relações públicas sejam capazes de inserir a comunicação governamental num processo produtivo, com a implementação de programas inovadores e eficazes de comunicação, tendo em vista um entendimento cordial entre a classe política e os públicos-alvo, colocando desta forma, as relações públicas como o motor de toda a máquina de comunicação ao nível da organização, pois as suas práticas imprimem dinamismo institucional, funcionando como principal indicador do posicionamento que qualquer organização deve ter em termos de imagem e de ideologia, numa altura em que as disputas políticas pelo poder são cada vez mais acirradas.
Entretanto, em Moçambique, talvez porque derivado do modelo de comunicação unidirecional e orientado também pelo perfil funcional do GABINFO, uma boa parte dos gestores de comunicação das instituições governamentais, são efetivamente jornalistas, e não gestores de relações publicas com uma visão ampla dos processos de comunicação organizacional e corporativo orientados para construção de relacionamentos entre a organização e seus públicos. Não quer isto dizer, que Jornalistas não podem trabalhar comunicação organizacional. É preciso enquadrar devidamente o papel dos jornalistas e do jornalismo, dentro da estrutura de comunicação de uma organização, para não criar desvios, no foco de actuação de tais estruturas.
Por :
Consultor | Gestor de Comunicação, Relações Publicas, Relações Externas e Governamentais
Especialista em Gestao e Elaboração de Projectos
Membro Fundador da APRPM – Associação dos Profissionais de Relações Publicas de Moçambique
Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.
Quando a amiga Zena Bacar do Eyuphuro, vitimada pelas armadilhas da vida, seguiu para o infinito das estrelas, para cantar nos palcos da consagração, quis dedicar algumas palavras de afecto que exaltassem o seu carisma. A sensualidade e beleza inigualável das jovens mulheres Emakuwa. Retomar ao colorido da capulana, a vaidade dos corpos franzinos, enfim, queria ter feito jus à profunda, melancólica, e quase sempre, soberba, voz da Zena que roubou do Tufo. Exuberante e, poucas vezes, lacónica, Zena Bacar, era vaidosa e esbanjava sorrisos que espalhavam a magia e o poder do feitiço dos seus gestos sensuais. Ela, na sua majestosa variação de tons musicais, viveu para atrapalhar os espíritos e equivocar corações.
Os jovens, agora de cabelo grisalho, da minha geração ficarão, eternamente, associados a sua a Muara ya N´rake (esposa do Senhor N´Rake). O icónico hino que atravessou tempos e espaços, do norte de Moçambique, dessa voluntariosa etnia Emakuwa, espalhada por África e pelo mundo. Nunca me perdoei por não ter feito esse elogio. Chorei no silêncio da dor a sua partida. Zena Bacar, nem deve repousar. Continua activa e cantarola para os anjos. Completaria neste Agosto, 74 anos. Procuro, ainda, explicações para esta manifesta omissão. Apenas, as emoções poderiam ter paralisado meus dedos e silenciado minha consciência. Testemunhar o nosso tempo e revisitar a trajectória de uma voz que viveu para lá do seu tempo, e que permanece, incomparável, como uma das mais conhecidas interpretes vozes femininas do cancioneiro moçambicano.
Neste exercício de remissão e indulto reencontro esta janela entreaberta, para cruzar Zena Bacar e os iconoclastas Ghorwane. Eles, os bons rapazes de Samora Machel, agora, igualmente, celebrando os 90 anos do seu nascimento, coincidem com a celebração dos 40 anos. As bodas de esmeralda duma monumental carreira, do inimaginável impacto social, e do da irrepreensível matriz que souberam gerar e preservar. Os Ghorwane são uma decorrência de um tempo revolucionário conturbado, de um período de afirmação e aporias, mas, e sobretudo, dessa inolvidável geração do 8 de Março que assegurou um país sonhado socialista e moldado capitalista.
Ghorwane e Zena Bacar ou Eyuphuro do Gimo Abdulremane foram os pioneiros moçambicanos da bem conhecida World Music. Para além deles só o conjunto RM ou Marrabenta Star e a CNCD alcançaram patamares igualmente visíveis no estrangeiro.
Teríamos de revisitar o músico britânico Peter Gabriel, afortunado compositor, progressista e activista de diferentes causas sociais, para entender este percurso. Peter Gabriel foi, originalmente, vocalista do Genesis. Em 1975 inicia uma carreia a solo, abandonando os Genesis. Vira activista em diferentes áreas sociais, incluindo políticas. Combate o apartheid sem tréguas. Abre um espaço privilegiado para promover ritmos e sons de outros países em desenvolvimento. Cria vários álbuns que são designados pela crítica como Eponymous. O último ficou conhecido como Jogos sem fronteiras. Pegou na luta de Steve Biko, líder do ANC e deu voz à luta contra o regime racista. Impacta o mundo com uma postura que mostra maturidade e consciência política.
Nesse apoio declarado a Steve Biko, conta com a colaboração de Youssour N´Dour. Ambos lançam a última tentação de Cristo. Os artistas convidados são africanos. Peter Gabriel sempre advogou o princípio de aglutinar artistas da Ásia e América Latina. Vence o Grammy e outras distinções em 1992 e 1993 e se afirma, em definitivo, como o maior promotor musical cuja tecnologia já superava a música da época. Terá sido nos CDs XPLORA e OVO que colocou os nossos compatriotas Zena Bacar e Ghorwane. Esta caminhada pela divulgação dos artistas africanos ainda o levou a vencer um prémio especial da Amnistia Internacional e outras distinções honrosas.
Convenhamos que a Real Music foi, então, responsável pela gravação de uma incontável e selecta nata de artistas africanos, incluindo o congolês Tabu Ley Rochereau, da famosa Kwassa Kwassa e esposo da Mbilia Bel, que tanto agitou as nossas ancas, e ainda o tanzaniano Remmy Ongala, Salim Keita do Mali, Touré Kunda, Papa Wemba. Um naipe inesgotável.
A World Music foi uma forma erudita e genuína de promover as interpretações dos africanos. Convenhamos, uma forma de escapulir das ortodoxas regras do mercado musical mundial. Todavia, não isento da armadilha de penetração num mercado que obrigava a esconder a linha da originalidade e identidade. Apesar de tudo, Peter Gabriel tem o mérito e crédito de ter aberto essa frente de divulgação.
Os Ghorwane sucederam a Zena Bacar e Gimo Abdulremane. Majurugenta foi o cartão-de-visita. Voltaremos lá. Estas bodas de esmeralda do Ghorwane acontecem quando eles voltam a incendiar palcos e plateias, aquecem esses Verões europeus, já de si com as temperaturas desconfortavelmente quentes. Não admira, pois, que este libelo contra o meu próprio esquecimento, auxilie a reavivar algumas facetas. Ninguém tem o direito de se alhear destes bons rapazes, parte património musical mundial.
Quando em 1978 foi tomada pelo Governo a decisão de colocar jovens, de todo o país, para se formarem e preencherem as vagas deixadas pela debandada colonial, não poderíamos os imaginar que a história musical, deste país, estaria sendo escrita com as letras douradas. O projecto de unidade nacional dinamizou a música. De norte a sul de Moçambique houve uma verdadeira explosão musical. Grupos e cantores como o eterno Alexandre Langa, Fanny Pfumu, Chico da Conceição, João Domingos e Orquestra Dambu, eram expressão exponencial. Pedro Ben e Wazimbo vinham do Chibuto para ferver as plateias musicais. Pelo centro e norte, à esquerda e à direita, a música parecia andar na contramão da revolução. Era progressista e evolucionista.
Misturavam-se ritmos e cores. Era preciso cantar como dizia o poeta Kalungano o herói nacional Marcelino dos Santos. A minha geração ainda teve o ensejo de desfrutar de exímias bandas musicais. Com saudades me recordo da banda Primeiro de Maio (1º de Maio de Armindo Salato), de Quelimane, que tanto furor fez com “Verdes campos”. A letra continua tão actual como vital para os dias que correm. Zambézia, aliás, foi terra de Lalarita e tantos outros. Nampula tinha Chico da Conceição e João Júlio Patinho no topo das preferências. Cantaram contra o que era imposto sistema com linguagem camuflada. Aliás, Lázaro Vinho, de Tete, seguiu suas pegadas.
Foram, ainda, destaques as vozes inimitáveis de David Mazembe, Madala e Romualdo na região centro. O Eyuphuro de Gimo Abdulremane e Jaimito Matapa na cidade de Nampula. O sul tinha outros pergaminhos. Desde o Alambique, de Hortêncio, Arão Litsure e João Cabaço, passando pelo Hokolokwe, os Galtons, José Mucavel, Guegue, Mingas, Willy e Aníbal, Fernando Luís, Bill Cuca, Chico António, esse vencedor do prémio radio Franca Internacional, José Guimarães, Elsa Mangue, Filipe Nhassavele e tantos outros que gravaram na Rádio Moçambique. A Rádio Moçambique, diga-se de passagem, foi a catedral da produção e divulgação deste vasto património musical.
A RM foi o respaldo de tudo que aconteceu. Mas, a música não desperdiçou outras oportunidades. Os estúdios da EME, de Eduardo Mondlane Júnior, irmão de Chude Mondlane, também ela, com voz dourada, emprestaram à música deste país uma tonalidade cativante. Deveria ser obrigatório que cidadãos como Eduardo Mondlane Júnior regressassem à música. Ajudar a recriar o talento juvenil. Stuwart Sukuma fala do concurso da EME para descoberta de talentos com saudade. A sua fornalha iniciou nesta época. Também foi a base do Ghorwane. Mas, existe, igualmente, mérito que deve ser estendido ao empresário e revolucionário Aurélio Le Bon.
Privei com o Pedro Langa. Uma relação me empurrou para a simpatia pelos Ghorwane. Pedro chegava do Chibuto, esse espaço musical incontornável. Filho de enfermeiros e de uma família musicada pelos irmãos mais velhos. Hortêncio Langa e Milagre Langa. Conceituados. Em cima dos seus sapatos de tacão alto, calaças boca-de-sino, cabelo a Jimmy Hendrix, chegava, por equívoco para fazer professorado. Eu chegava pela mesma imposição. Também, de uma família de enfermeiros, mas, sem músicos para embalar as noites de luar. Pedro tentou incutir a ideia de sermos todos músicos. Queria que todos os seus amigos tocassem violão.
A vida nos empurrou, depois, para desconfortantes situações. Rebuscávamos o sentido de missão. As tarefas revolucionárias eram irrecusáveis. Pedro não se ajustou e não escondeu ser avesso. Uma boa parte do nosso grupo aceitou, com reservas, e mesmo sem vocação ou motivação, seguiu a única carreira disponível.
Pedro não se alheou dos seus sonhos. Não questionou, nunca, abandonar seu violão. Qualquer sintoma de música incendiava seu espírito musical. Cantava melodias conceituadas. Criava músicas em tudo que tocava. Cantámos algumas músicas que nunca foram gravadas. Essa foi a força dos sonhos que nenhum tempo conseguiu afastar. Queria viver de uma forma diferente. O sonho da vocação que se opunha ao da revolução. O que o tipificou e fez dele melhor que todos nós foi mesmo a coragem. Enfrentou tudo e todos. Um sistema. Muitos dos colegas desertaram das fileiras e abandonaram o país. Os prosélitos não perdoaram. Outros sofreram sevícias.
As revoluções se fazem de diferentes formas. O nosso grupo aprendeu a fazer amizade com os compositores revolucionários. Calisto Mijico e Lindolondolo. Escreveram os hinos da revolução Moçambicana. Aprenderam a compor na Coreia do Norte. Era a bandeira musical de tantos temas cantados na época. Aprendemos deles os ritmos ensaiados nos campos de Tunduru e Bagamoyo. Nachingwea. As canções que Eduardo Mondlane escutou, deixaram se encantar, e cantou, tantas vezes, no clamor da sua revolução.
Toda a disciplina criou alguma saturação. Cansava a exigente disciplina e rigorosidade dos tempos iniciais. Isto fez com que se criassem focos de revolta. Próximo do corredor dos nossos quartos foram escritas nas paredes frases inimagináveis. Os serviços castrenses não toleraram. Condicionaram a expulsão de todos. Sem apelo e nem agravo. Perdíamos colegas e amigos cuja empatia não esmoreceu. Para muitos de nós, pela primeiríssima vez, depois da independência, dialogávamos com um caminho da contra-revolução. Outros valores e exigências. Aprendemos que o pensar diferente era proibido. Não seguir a linha da ordem era proibido. Perigoso. Não se atentava contra a revolução. Não tardou, o centro do país, voltou a escutar o ruído das balas e a ausência de paz. Não deu, sequer, para nos reconciliarmos como irmãos. Nem como irmãs. As notícias eram de ataques e destruição. A intransigência do não encontrou antídoto que tivesse evitado a catástrofe.
Antes da sua expulsão Pedro Langa, José Chambe e outros, ainda subiram por alguns palcos. Levava sons originais experimentados entre os colegas de curso. Sentíamo-nos representados. Eram, igualmente, os nossos sons. Apoiámos e preenchemos muitos dos lugares da plateia. Queríamos, também, saber como se comportaria o grande público. Muitos aplausos, mas, também, desconfianças e alguma desaprovação.
Nelson Saúte escreve no seu Planisfério moçambicano que a primeira apresentação pública de Pedro Langa, em 1979, no teatro Scala, na companhia de Hokolokwe foi sofrida. Nas duas canções originais que apresentou, nem por isso foi bem-sucedido. A plateia não queria, apenas, ritmos originais. Preferiam as músicas do estrangeiro. Sons mais quentes e que faziam as noites de festa. A despeito da adversidade, como refere Saúte, os verdadeiros criadores não são entendidos pelos seus contemporâneos. Mas, eles estão muito a frente do seu próprio tempo. Parece que vivem em galáxias diferentes e funcionam como satélites fora do comum.
Anos mais tarde, soube que o Pedro Langa se juntara ao conjunto Mbila. Um grupo que tocava no edifício do clube da juventude, alegrava as mentes que procuravam entender a revolução sem desperdiçar a sua juventude. Nós deambulávamos um pouco por todo o país. As escolas caiam em nossas mãos. Pedro Langa não chegou a entrar para nenhuma escola, porém, com agrado sabia do paradeiro de todos. Vibrava com o empenho de todos. Nós retribuímos com cartas que ele nunca respondeu em detalhe.
Igualmente, soubemos que ele se aliara ao compositor e cantor Simão Mazuze. Simão, um músico de outras referências e valências, havia feito o serviço militar em Portugal, na força aérea, e já por lá, além-fronteiras, provara aos cidadãos portugueses a magia do seu talento. Simão Mazuze era irredutível, com toques de rebeldia no que fazia, cantava e dizia. Era igual a si próprio. Até de nome mudou e virou Salimo Mohammed.
O regime nunca o compreendeu. Foi enviado para Bilibiza, Cabo de Delgado. Longe de o silenciarem, ele regressou mais forte e mais convicto. Já não era apenas Mamana Maria, sua canção mais conhecida e forte, mas, a sua famosa Bilibiza. Pedro e Simão Mazuze formam o Xigutsa Vuma. Um grupo e músicas de contestação, rebeldes e avessas ao que de pior o projecto de revolução oferecia ao país.
O Xigutsa Vuma, com Pedro Langa e Salimo Mohammed, ainda, foi a tempo de conquistar o prémio de melhor composição nesses dificílimos anos 80. Eram os tempos da tenebrosa Operação Produção, que todos tentamos esquecer e perdoar, como moçambicanos, e os reflexos de uma política que correu com pouca feição e originou outros problemas transversais. Associado à fome que começava a grassar um pouco pelo país, as arbitrariedades das guias de marcha e a guerra de desestabilização, existiam razões de sobra para escrever e cantar temas que marcariam os seguidores. Já conhecidos como controverso na abordagem das suas letras, o grupo tinha de tudo para singrar. Porém, terminou cedo e dois galos no mesmo poleiro não poderiam conviver por muito tempo.
Por volta de 1984, e fazendo eco nas memórias de Stuwart Sukuma e do Roberto Chitsondzo, esse Professor músico, melhor, músico professor de Educação Física, os concursos musicais de novos talentos lançados pela EME de Eduardo Mondlane Júnior, auxiliaram que os novos talentos surgissem pela praça. Roberto Chitsondzo aproveitou a estadia em Inhambane para escrever alguns versos. Voltou a Maputo com o intuito de os gravar. Não voltou à prática desportiva. Perdíamos um professor com pouca habilidade desportiva, para alguém que virou um exímio tocador. Usava a destreza dos seus dedos para recriar sonhos e verdades escondidas. Da sua voz seriam extraídos ritmos assombrados. Palmilhou a cidade e se experimentou com vários Músicos. A melhor paragem foram os ouvidos de Pedro Langa. O passado da educação serviu de base para os unir. Os Ghorwhane que estavam em banho-maria ganharam força. 1983 marcava, então, as pernas e o arcabouço para seguir pelo mundo dos sons que encantam e exaltam os céus. A música moçambicana agradeceu. O mundo também.
Um selectivo conjunto de músicos esteve associado ao Gorowhane, com realce para o saxofonista, vocalista Zeca Alage. Se o Pedro Langa era a alma, Zeca Alage era o espírito e a força que comandava o barco. Se juntavam, também o baixista Lot, o baterista Hilário, e ainda a o guitarrista Tchika. Para os sopros Júlio Baza assumia as responsabilidades e garantia que os ritmos tinham um factor diferenciador. Ao grupo inicial juntaram-se David Macuácua, e o percussionista Dingo.
As letras e os conteúdos iniciais, que estiveram a cargo de Pedro Langa e Zeca Alage, eram de arromba. Para aqueles tempos eram mesmo de muita virulência. Cantavam o que o povo e seus seguidores mais queriam escutar, a crítica social, o desacerto político, a guerra que dilacerava o país e o mercado negro que crescia a olhos vistos. Pedro Langa e de alguma forma Zeca Alage conheciam muitos dos dissabores dessa oposição às políticas económicas e sociais do regime. Cantavam o que a alma lhes recomendava e faziam o delírio das plateias. O público apoiou e virou um aliado natural.
Roberto Chitsondzo toma uma decisão e junta-se ao grupo a 23 de Junho de 1984. Fazem o primeiro espectáculo no cinema África, hoje tão descuidado e tão votado ao esquecimento. Hoje, os Ghorwhane persistem e o cinema definha. Uma pena ter uma catedral musical tão voltada ao abandono.
Retorno ao Nelson Saúte que tão bem os soube tipificar e glorificar num texto de homenagem escrito há cinco anos. Ghorwane, segundo ele, soube transformar o sofrimento e a dor em alegria. E vai mais longe, não se limitavam a lamentar, como acontece com tantos nos tempos actuais, e como muito se ouve do cancioneiro moçambicano, mas pautavam pela inovação e pela busca de ritmos tradicionais para os incorporar nas suas músicas e dar essa roupagem que fazia da sua música prístina, delicada e uma agradável suavidade para os ouvidos dos seguidores. Mas, o mais importante, no meio de tanta agitação e ausência de consensos, era aproveitar o quadro da realidade social e fazer disso a moldura da tela para eternizar a natureza e a beleza infindável das suas canções.
Era a profissão e a profecia de fé e de amor, a um país e um povo, que eles tinham a missão de apoiar, entreter, educar e informar. Os países com tantos problemas sociais precisam de um escape. Eram essas temáticas que invadiam a cabeça de qualquer compositor. Temática insubstituível. E se desde o período da independência a promessa da revolução era liberdade, paz e progresso, isso era, precisamente, aquilo que todos queriam cantar e escutar.
A crítica, nunca é bem recebida por quem tem responsabilidades de governação. Na época, ainda, com os campos de reeducação vigentes, os serviçais do regime se assustaram com o desalento da classe. A crítica vinha de todos os lados. A guerra chegava às bermas das grandes cidades. Não tardou que para todos os espectáculos públicos, fossem enviados grupos à paisana de sequazes e seguranças, com o intuito, único, de captar os conteúdos, a apreciação do público e as mensagens. Uma espécie de avaliação do sucesso e uma medição do que tentava ser atirado para baixo do tapete que permanecia tão evidente como destapado. Foram tempos desafiadores.
Cantar parecia ser a única forma de espantar os males. Moçambique, tão jovem, se submetia aos pés da sua própria juventude e se assustava com uma faixa etária que sonhava, aspirava e queria outros rumos. Na realidade, queriam paz, desenvolvimento e liberdade. As promessas de um processo que não dependeria, apenas de si e da sua conjuntura, para prover estes meios todos as pessoas. Até o Presidente Samora Machel se assustou com a profundidade das músicas e versos do Ghorwhane. Presumimos, todos, que foram as informações deturparas que foi recebendo e consumindo. O tempo ajudou. Escutou com a atenção do seu coração e sensibilidade. Depois, gerou a empatia, como a graciosidade que brincava com a sua própria alma. Virou adepto incondicional. Não tardou para que fossem convidados para os banquetes de Estado. Recebia as suas visitas no Palácio e fazia do empenhando e rejuvenescido Ghorwhane um aliado musical e um símbolo da própria moçambicanidade.
O Presidente Samora Machel tatuou o grupo com a mecânica que a própria música criou. Ofereceu instrumentos de percussão à banda. Fê-lo com um sentido de Estado e de amizade pessoal. Queria continuar como um líder que se assumia como Mestre. Nessa condição, entendeu que as obras sagradas dos seus jovens músicos, representavam os valores de um povo que ele deveria liderar e saber escutar. Queria que os Ghorwhane fossem a banda de referência e a realização da perfeição musical. Aliás, soube, nos últimos tempos, que o Presidente Machel ofereceu, igualmente, equipamento musical à Banda dos Massucos, lá do longínquo Niassa. Os Massucos nunca desapontaram. Transportam toda a mestria e a simbiose dos sons Yao, o ritmo cadenciado dos Nyanja, ambos adornados pela glória do Chioda e Nganda, as mais célebres danças do norte. O Mestre Santos líder dos Massucos ainda mantem esse violão presenteado e não se desfaz dele, em nenhum momento. Virou talismã.
A nossa alma é composta por harmonia, e a harmonia só pode ser gerada nos momentos em que as proporções do bem e do mal são desequilibradas pela própria vida e seus sons. Os Ghorwane livraram-se da cerrada perseguição, sem que para o efeito tivessem de mudar a sua forma de cantar e vibrar. A música não deve ter outro nome que não seja a irmã da pintura. Assim, pelos ritmos e conteúdos dessa injustificada perseguição, passaram a ser apelidados de Bons Rapazes. Um nome improvável, mas apropriado que quase assenta no original. Lagoa que nunca seca. A criatividade deu corpo à liberdade e algo bem mais supremo. Liberdade de criar. Com esta liberdade se criam as oportunidades para que as próprias liberdades individuais se corporizem e a sociedade se liberte de amarras. Os direitos humanos entravam pela porta mais democrática da vida. O sentido que a humanidade sempre prezou. A dignidade quer satisfaz o sentido mais digno.
Dois anos depois da criação da banda Pedro Langa abandona os Ghorwane. Recordei aqui o temperamento do Pedro, mente brilhante, todavia, muito preso às suas convicções. Uma teimosia que quase era casmurrice. Não admira, por conseguinte, que se tenham desentendido por alguma abordagem, ou pelo rumo, menos consentido, que a banda deveria seguir. Roberto Chitsondzo e Zeca Alage se firmam como líderes substitutos. Ao grupo se junta David Macuacua. As canções continuaram impressivamente pungentes. Jamais deixaram de interpretar essa dor dos moçambicanos. Massotcha de Zeca Alage, o tema que dizia que a guerra não era solução e tinha custos demasiado elevados. Os investimentos, se ainda existissem, deveriam ser encaminhados para aquisição de comida para a população. As armas que eram caras, bem mais caras que sacos de arroz, não serviam. Ghorwhane colocava mantinha a força do paradigma do quotidiano. Os recados eram para todos os envolvidos no conflito que fez milhares de mortes e milhões de deslocados.
O primeiro disco dos Ghorwhane foi quase que uma encomenda da Real Music. 1991. Majurugenta foi o nome do álbum de estreia. Com tantas outras canções, de inegável beleza e sempre com um substrato de mutimba, gravam este álbum na perspectiva de incluírem as músicas na World Music. Peter Gabriel está por detrás e tem a garantia que seria um sucesso. Pela segunda vez, Moçambique chegava ao topo da música internacional. Agora, eram dois os nomes mais sonantes. Eyuphuro e Ghorwane. O disco foi lançado em 1993.
Nem Pedro Langa e muito menos Zeca Alage estiveram presentes, em 1993, e levou algum tempo até que o disco tivesse sido finalizado, para testemunhar o sabor do seu sucesso, daquele que foi um muito celebrado e apetecido lançamento. Zeca Alage foi barbaramente assassinado. Inexplicavelmente retirada a vida de quem só tinha vida para dar e revelar. Com a sua partida desaparecia, na mesma proporção, toda a cor, beleza e magia dos sopros do seu indomável saxofone. Esse genial sopro metálico e que tanto ritmou dezenas de canções, surpreendeu os ouvidos mais exigentes e penetrou fundo no coração dos seguidores. Um sentimento de comoção tomou conta do país. A estação de televisão pública iniciou o serviço noticioso, com o anúncio da sua partida. O triângulo que fez as fundações destes clássicos sofria um revés. Um furacão que parecia destinado a assombrar o que está escrito nas nuvens como parte dos sons deste Moçambique.
Ao longo dos anos Ghorwane continuou vindo a público local e internacional com regularidade. Como qualquer banda no mundo, passam por períodos mais ou menos complexos e difíceis. A corajosa crítica social manteve-se presente. As vicissitudes sugeriram mudanças. Entradas e saídas. Ainda assim, se reinventam. Pedro Langa partiu em 2001, igualmente, de forma misteriosa, ainda no calor de uma juventude que teria tudo para oferecer à música ligeira Moçambicana. Mesmo não estando com o grupo, esta partida impacta. As honras lhe foram prestadas em diferentes momentos. Depois, saiu do grupo David Macuacua, numa viagem para as Europas.
Roberto tem uma memória de elefante. Marcou a saída de Costa Neto do grupo. Uma digressão por Portugal e, simplesmente, não regressou ao país. Nada que estivesse nos planos, mas a conjuntura forcou e extremou estas posições. Carlitos Gove, Paíto e Jojó Moisés, também, em momentos separados. Marcou a saída de Jorge César. Mas as saídas, por vezes, acompanham-se de reentradas. Também chegou sangue novo importante. Como o próprio Roberto coloca, do que ele mais gosta é chegar sem planos e fazer parte de um plano que estava traçado. Esses são os dois lados da mesma viagem. Tiveram músicos que chegaram para ficar e outros que partiram para nunca mais voltar.
As recordações não são cronológicas, muito menos por ordem de categorias e importância. Fez parte da banda a Tsala Tina Cândido. Eventualmente, a primeira mulher que emprestou a voz e trouxe uma forma diferente de estar. Nos anos 90, se juntaram ao Ghorwhane a Felicidade Tomas (Fofinha) e a Luciana Chissano (Cindinha). Faziam coros e coreografias. Betinha seguiu para o infinito. Mas, foi importante na performance. O bailado dela encantou Londres. Soberbas e memoráveis actuações. Também o pujante e agora na carreira a solo Moreira Chonguiça entrou para a banda. Um etnomusicólogo que vestiu as músicas de uma nova roupagem e um sentido de modernidade. Teve de sair, mais tarde, para continuar os seus estudos na cidade sul-africana de Cape Town.
Esse movimento de equilíbrios e reequilíbrios continua perene e perpétuo. Por vezes, mais oportuno, e por noutros momentos, com menos sabor e profundidade apresentados no conteúdo, todavia, marcadamente, na coloração dos efeitos especiais que as composições foram ganhando. Ao grupo se juntou Karen Boswell, uma artista que havia estudado música na infância e juventude e com o seu saxofone recriou uma sonoridade pouco habitual. A banda guarda memórias inesquecíveis desta passagem.
Agradável surpresa foi a Sheila que integrou a banda e tocou flauta. Essa tonalidade que desperta todas as almas. Emigrou mais tarde para Europa e por lá continuou os seus estudos. Joni Schwalbach chega em 1993. Eram os primeiros 10 anos da banda. Trazia um som refinado pela tecnologia. Continua como coração da banda, com uma forma mais pausada de ser, a serenidade que sabe respeitar o caminho, mas que não se coíbe de impor um pouco da sua marca e do seu estilo. Assim o grupo se reergue. Faz da dor das partidas a forca da sua resiliência e do querer perpetuar um som que agrada diferentes gerações e prazeres.
40 anos de esmeralda e muito ouro à mistura. Gorowhane e os seus versáteis músicos e compositores podem não ser os mesmos, não manter a originalidade dos ritmos. Porém, continuam a não aceitar a resignação e a criticar de forma obstinada no exercício da cidadania. 40 anos, de uma música que revela a forma de viver e de estar dos moçambicanos. Uma prova contra a intolerância e a estupefacção. A manifestação mais viva de um povo que se libertou e que escolheu os seus caminhos. 40 anos e três álbuns que ficarão em nossos corações. Majurugenta, Kudumba e Vana Va Ndota. São álbuns inesquecíveis e sublimes. Decénios para recriar o DNA, manter a fidelidade à poesia, ao ritmo e ao balanço. Essa caminhada aborda as assimetrias sociais, as contradições do quotidiano, e a manutenção a fidelidade aos sons do nosso tempo. Dignidade e honra, num som espantosamente agradável e delirante.
É uma coincidência abismal! O terrorismo em Cabo Delgado está a terminar! O mandato de Filipe Nyusi na Presidência da República também. Nos últimos dias, abunda noticiário sobre o abate dos cabecilhas do terrorismo e seus lugares-tenentes. 30 líderes já foram mortos recentemente, escrevem as parangonas. Dentre eles, o Bonomade, seu chefe maior. O Abu Kital. O Ali Mahando. Eles foram mortos. Ninguém foi capturado, para ser levado a julgamento e relevar os tentáculos das suas traficâncias.
Estamos perante um assomo de bravura por parte das nossas Forças Armadas e também por conta do estoicismo do Comandante Policial, Bernardino Rafael. Nyusi é esperto: ele quer sair mostrando que foi ele quem eliminou o terrorismo, fenómeno que nasceu e floresceu no seu consulado. Nasceu em 2017. E desde 2021 que a identidade do Bonomade foi revelada. Ele andou passeando sua matança. Escapou aos ucranianos do Prigozhin, aos mercenários doDyck Advisory Group (DAG), às tropas da SAMIM, aos bravos do Kagame, para finalmente sucumbir às nossas forças. Grande feito! Inolvidável! De repente, as nossas forças fazem sentido. Habemus Moçambique, outra vez?!
Este golpe final no terrorismo será o grande legado do Nyussismo, sobretudo porque nasce e morre com ele. Vai ser acrescentado ao DDR - a pacificação ardilosa com a Renamo, que compreendeu remendos constitucionais por cima do joelho. Quando o terrorismo nasceu, tratava-se de um mero assunto de Polícia, diziam, a pés firmes, o Bernardino Rafael, e o putativo candidato a candidato, Basílio Monteiro.
Queriam o exército lá longe! E foram arrastando a matança. E foram usufruindo do poder decisório sobre as compras para a guerra policial, equipamento, munições, comida, contratações de Wagner’s a troco de minerais, dos mercenários da Dykc Advisory Group a troco de milhões do Tesouro (sem procurement), e das tropas ruandesas a troco de pedaços de soberania e preferência no conteúdo local. E os aviões do Kagame sobrevoando Cabo Delgado na calada da noite, levando não sei o quê.
Ao logo do caminho, o Primo Basílio foi empurrado para fora do banquete. E o assunto tornou-se assunto militar. Mas o enredo macabro, de resto nada queirosiano, continuou com matanças e decapitações. O Bernardino Rafael manteve-se firme em Cabo Delgado, extrapolando-se, mesmo quando o assunto deixou de ser meramente policial. Mesmo quando passou a ser eminentemente assunto do Exército. Ele lá estava, em todas, e hoje certamente que é um dos responsáveis deste triunfal final pintado com as cores do sangue e os tons garridos da ambição.
Mas a eficácia brutal das tropas deve ser elogiada. A limpeza tem de ser cabal, eliminando-se todos e quaisquer vestígios do terror, dos seus chefes e dos contactos do lado de cá. Tudo está a ser feito para nada sobre. Nem os indícios da instrumentalização da guerra, para engordar os bolsos, a desordem reinventada, adulada!
E quando o mandato de Nyusi terminar, começaremos uma nova vida. Ele começará uma nova vida, limpinho, limpinho! O PR está empenhado nisso! Agora removeu a Ministra Arsénia Massinga, do Interior. A narrativa vendida cá para fora coloca os raptos no centro da remoção. Uma espécie de penalização pelo fracasso geral do Estado no combate a uma indústria que solidificou suas entranhas no aparato castrense, nomeadamente no seio das forças de investigação criminal (SERNIC) e na Unidade de Intervenção Rápida (UIR).
Mas onde estava o chefe operativo policial? Enredado na guerra, controlando os negócios do Interior, num teatro ruinoso. Como no Fado do Ladrão Enamorado: “Nunca fui grande ladrão/Nunca dei golpe perfeito/Acho que foi a posição/Que me aguçou o jeito”!
Massingue sozinha não podia fazer nada! Ninguém esperava dela nada. Demiti-la faz parte do enredo do fingimento. Ninguém combate os raptos sozinho! Ela não tinha a necessária protecção política (ou não é a função ministerial uma função política? Ou o combate aos raptos não precisava de vontade política para lá da sua expressão verbal? De recursos; da aceitação da cooperação da “mão externa”; da pronta colaboração interinstitucional?).
Massingue surgiu do cenário como um bode expiatório. Foi usada e quando se apercebeu disso ainda tentou impor um travão no fartar vilanagem sobre Cabo Delgado, mas foi confrontada com a mais pueril insubordinação.
E sobre os raptos, o operativo central nunca foi chamado à responsabilidade. (E não será o combate aos raptos uma função operativa da polícia? Ele fica e os Ministros passam, sendo conotados na opinião pública com incúria e laxismo? E ele não é mexido?). Ou estamos perante o derradeiro inamovível, uma versão mais sólida que o Gilberto Mendes com sua pretensiosa retórica de intocável, mais sólida porque a fonte da deferência nyussista para com ele não decorre de uma mera representação teatral da perfídia frelimista, mas da sua descendência matrilinear – e a autoridade subjacente – no seio do conclave nortenho.
Na verdade, ele é uma reedição do antigo Ministro do Interior, Manuel António: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Esta exoneração de Massingue faz prever que seu (do Bernardino) percurso até ao fim do mandato no Nyussismo será incólume. E para desfazer quaisquer dúvidas, Pascoal Ronda, zás, o carcereiro de Montepuez é repescado do fundo do sofá para vir fazer figura de corpo presente. O que resulta disto tudo e esta assumpção assombrosa: Bernardino Rafael empurrou Massingue para a rua e passa ele a ser, agora, o todo poderoso no Interior, relegando Ronda para a inoperatividade. Isso lhe permitirá encerrar no Interior o “dossier Cabo Delgado”, sem qualquer oposição ou tentativa de escrutínio interno. E isso é absolutamente necessário. É absolutamente necessário apagar os vestígios do terrorismo, das mordomias derivadas do esforço da guerra, não só no campo de batalha como também na papelada centralizada do procurement castrense. (M.M)
1. Independência e credibilidade do Tribunal Administrativo
A jurisdição administrativa tem dado sinais de ser mais célere e eficaz na protecção do poder executivo e completamente morosa e ineficaz relativamente aos processos que visam a protecção jurisdicional dos grupos vulneráveis, com destaque para os pobres, vítimas de injustiça social, de abusos de autoridade e de violação dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
No ano transacto, o Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) intentou, no Tribunal Administrativo, um processo de suspensão de eficácia do polémico despacho conjunto dos Ministros das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos e da Economia e Finanças, que fixou as taxas de portagens e início da sua cobrança nas praças da Costa do Sol, Zintava, Cumbeza e Matola Gare, ao longo da Estrada Circular de Maputo.
Estranha e curiosamente, o mesmo Tribunal Administrativo, de forma inédita na história desta jurisdição, proferiu, em menos de 24 horas, uma decisão que afastou a suspensão provisória do despacho que fixou as taxas de portagens e a data de início de cobrança das mesmas, alegadamente, em protecção do interesse público que, no seu entender, seria prejudicado caso não se iniciasse a cobrança das taxas de portagens na data fixada para o efeito pelo Governo, através dos Ministérios supra mencionados.
Nesse mesmo caso, o CDD defendia que o interesse público a proteger era a justiça social, a liberdade de circulação e de escolha, bem como a legalidade violada no processo de instalação das portagens e das respectivas taxas. No entanto, porque o CDD já havia conseguido a suspensão provisória e automática daquele polémico despacho, o Tribunal Administrativo, em tempo ultra recorde e sem discutir e analisar a essência e o alcance do interesse público em causa que se pretendia salvaguardar, escolheu o interesse público do Governo que se traduzia em iniciar de imediato a cobrança das taxas de portagens, o que veio a acontecer em detrimento do interesse público defendido pelo povo, através do CDD.
Tratou-se de um caso controverso, muito debatido na praça pública, em que ficou notória a interferência do poder político sobre a jurisdição administrativa, cuja independência ficou ofuscada perante as famosas “ordens superiores”, uma espécie de poder divino do executivo que ninguém ousa confrontar.
Passam hoje nove (9) meses desde que, em Dezembro de 2022, a Associação Médica de Moçambique (AMM) submeteu, no Tribunal Administrativo, um processo de Intimação contra o Ministério da Saúde para se abster de conduta intimidatória e de ameaças de vária natureza contra os médicos, por estarem a exercer o direito fundamental à greve dentro do quadro da Constituição da República de Moçambique (CRM). Este é um processo de carácter urgentíssimo, com fundamento legal para o efeito. A protecção do interesse público aqui é notoriamente a saúde e a vida dos cidadãos que correm riscos enquanto o Governo não acautelar as condições salariais e de trabalho dos médicos, com destaque para as condições de tratamento dos doentes, conforme revelado no caderno reivindicativo da classe médica em greve. Não há dúvidas da urgência da decisão deste processo e que seja justa e conscienciosa.
Para a surpresa de todos, o processo não tem qualquer desfecho ainda e não se percebe a razão da tamanha morosidade quando o Tribunal Administrativo já provou para a sociedade ter capacidade para decidir os processos urgentes em tempo recorde, senão à velocidade da luz. Ora, o único beneficiário na morosidade deste processo é o executivo contra quem o processo foi proposto através do Ministério da Saúde. Enquanto não houver decisão, pairam dúvidas e incertezas sobre a legalidade das ameaças e intimidações de que os médicos estão a ser vítimas por exercício de um direito fundamental.
No entender da AMM, os contornos da morosidade no desfecho deste processo revelam falta de independência do Tribunal Administrativo e fraca protecção jurisdicional dos direitos e interesses dos administrados, em particular os grupos vulneráreis e os pobres, que é o povo. Qualquer que seja a decisão, desde que devidamente fundamentada nos termos da lei aplicável será percebida, o que não se percebe é a demora dessa decisão, atendendo à complexidade do assunto e à natureza urgente do processo.
Importa aqui referir que significativos processos em matéria de protecção dos direitos humanos no Tribunal Administrativo são caracterizados pela excessiva tendência proteccionista do Estado, em particular o Poder Executivo. A Ordem dos Advogados de Moçambique já publicou vários processos que revelam essa tendência proteccionista dos fortes em detrimento dos fracos, o povo, nesta jurisdição. Urge, pois, repensar a reforma do Tribunal Administrativo, cuja credibilidade está em crise.
2. Garantia dos Serviços Mínimos
A greve dos médicos demonstrou mais uma vez a fragilidade senão vazia relativamente aos critérios para a garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, bem como a sua definição. Afinal, o que deve ser considerado como serviços mínimos e que os define? No mesmo sentido, ficou claro que os serviços míninos não são garantidos somente com a presença dos médicos nos seus postos de trabalho, mas sobretudo com a existência de material de tratamento suficiente para responder à demanda das doenças.
A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir os serviços mínimos e clarificar os termos da sua garantia, tendo em conta as características e exigências que os departamentos hospitalares e outros serviços conexos ou similares impõem.
A Assembleia da República deve legislar urgentemente com vista a sanar o vazio legal relativamente à lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública. E, para efeitos da elaboração da futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, é importante que o legítimo exercício dos direitos, deveres e liberdades fundamentais nos termos previstos na Constituição e que impliquem ausência ao serviço por parte dos funcionários e agentes do Estado, seja, expressamente, considerado causa justificativa das faltas, uma vez que não é possível exercer o direito à greve nestes termos e, simultaneamente, se fazer presente ao posto de trabalho.
A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir claramente a forma e os prazos de realização da greve, com vista a evitar greves de período ilimitado. E, embora admita que a mesma se possa realizar continuamente, deve adoptar mecanismos para a sua realização de forma interpolada, nos casos em que os fundamentos legais da greve persistam.
A decisão sobre a aplicação dos descontos no vencimento deve ser dada a conhecer ao funcionário ou agente do Estado visado para que o mesmo saiba das razões e implicações dessa decisão e para que possa exercer o seu direito de contraditório, querendo. Trata, pois, do direito ao contraditório a que os funcionários têm direito nos termos da lei aplicável ao caso, mormente: O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e respectivo Regulamento.
Aliás, os descontos salariais só devem ter lugar nos casos de faltas injustificadas e os mesmos devem obedecer a uma tramitação legal própria para a sua efectivação, sob pena de carecerem de fundamento e violarem o princípio da legalidade a que deve obedecer a Administração Pública. É proibida a aplicação de descontos arbitrários e como represália por exercício de direitos e liberdades fundamentais nos termos da Constituição da República.
É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” Ora, se assim deve ser, é clarividente que o MISAU, ao penalizar os visados aplicando descontos por terem faltado ao serviço em virtude do exercício deste direito fundamental, está, no fundo, a desrespeitar a garantia constitucional do exercício do direito fundamental à greve.
O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.
Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.
3. Responsabilidade pelos danos causados na saúde e vida dos cidadãos
Com a agudização da greve dos médicos pelas ausências ao posto de trabalho e a problemática dos critérios da garantia dos serviços mínimos de saúde, corre informação na imprensa de milhares casos de perda de vida e de deterioração do estado de saúde, sobretudo dos doentes crónicos que não tiveram assistência médica e medicamentosa em tempo útil.
Neste contexto, começou uma onda de diabolização da classe médica em greve como que desumanos sem responsabilidade pelo juramento que fizeram à sua profissão. Em bom rigor, os médicos não juraram levar a cabo a sua profissão em regime de exploração e de marginalização. Mais do que isso, é que a responsabilidade pela garantia das condições de trabalho e de tratamento médico nas unidades sanitárias cabe ao Governo do dia e não aos médicos que muitas vezes são colocados em situação de cuidar de doentes sem qualquer material adequado para o efeito e obrigados a assistir de mãos atadas mortes diárias de vários utentes por falta dessas condições. Isto é que é violação dos direitos humanos dos médicos.
Do ponto de vista legal e com cunho constitucional e dos instrumentos internacionais de direitos humanos relevantes aplicáveis ao caso de que Moçambique é parte, cabe em primeira ao Estado a responsabilidade pela garantia do direito à saúde e dos direitos humanos no geral. Se o Estado não cria condições para o efeito, é a ele que cabe a responsabilização e não aos médicos por exercício do direito fundamental em conformidade com a Constituição.
Portanto, atendendo aos contornos da greve em questão, os seus fundamentos e o tempo que dura a reivindicação dos médicos, a resposta dada pelo Governo durante todo esse tempo, claro está que não há espaço para os responsabilizar sobre os danos que tiveram lugar nesse período, senão responsabilizar o próprio Estado através do seu executivo.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Causou - e continua a causar - um grande alvoroço nacional e internacional o pronunciamento, em Setembro de 2022, do General Nihia de que “os makhuwas são falsos e sem direcção”. Simplesmente isso, uma frase de umas três palavrinhas - povo, falso e desfocado -, mas com um significado e alcance muito profundos. Profundíssimos.
A acusação foi proferida para camaradas numa reunião distrital do partido em Nampula, mas acabou não sendo exclusivamente para eles. A mensagem universalizou-se. Teve uma repercussão esmagadora, avassaladora, um alcance bastante grande e longo, tamanha é a dimensão numérica dos makhuwas. Um pronunciamento que caiu como uma autêntica bomba atômica: trata-se do maior grupo étnico de Moçambique e com presença significativa na Tanzania, Malawi, Seychelles, Maurícias e Madagáscar; qualquer coisa como cerca de nove milhões de pessoas! Para atingir nove milhões de pessoas, só pode mesmo ser através de uma bomba… atômica! Como aquela lançada em Hiroshima!
Até parecia verdade aquela asserção. Aliás, até pode ser, dependendo do ângulo e clima em que nos encontramos. Para quem, como o General Nihia, está na trincheira em que está, no contexto e ambiente em que se encontra, faz todo o sentido o claim. Em causa está o facto de cinco dos sete municípios de Nampula estarem na gestão da Renamo, designadamente, Angoche, Malema, Ilha de Moçambique, Nacala-Porto e cidade de Nampula; e não na do seu partido, porque os makhuwas não votaram nesse sentido. Portanto, estando parado onde está, na perspectiva político partidária em que está inserido, de facto, é falso - só pode sê-lo, todo aquele que não concorre para a consecução dos supremos objectivos da organização.
Por conseguinte, podemos dizer que a veracidade da proclamação do nosso herói nacional é relativa. Numa perspectiva social, até é infundada. Um ser social prossegue os seus objectivos e os objectivos de uma determinada sociedade são inclassificáveis: são os objectivos daquela sociedade, pura e simplesmente. Não são, nem podem ser, qualificados com seja qual for a terminologia.
Cerca de um ano depois do dispara(t)do(e), numa das rotineiras passagens por algumas das nossas livrarias, fui deparar-me com um livro que me trouxe de volta à memória o “desabafo” do nosso compatriota. “O Povo Macua e a Sua Cultura” é o seu título e o Padre Francisco Lerma Martinez, seu autor. Não hesitei um único segundo. Adquiri-o e pus-me a devorá-lo por estes dias.
“O povo macua … é o mais numeroso dos povos que integram Moçambique e, ao mesmo tempo, um dos menos conhecidos. (...) com o presente estudo, quero contribuir para o conhecimento e estima deste povo, realçando alguns dos seus valores culturais… exprimir o mais fielmente possível a riqueza cultural do povo macua” - escreve o autor na introdução. Um grande convite para a degustação do livro, antecedida por um prefácio assinado por… Brazão Mazula! Professor Mazula que conclui que “apesar de Francisco Lerma ter conduzido a sua investigação antropológica para os objetivos dum “encontro genuíno” do cristianismo com a cultura macau, esta tese é válida para outras áreas de organização da sociedade moçambicana, como as de ciência política, filosofia, direito, psicologia, mesmo economia e para melhor planificação do desenvolvimento.”
Na verdade, o estudo é uma grande viagem antropológica, histórica, filosófica e sociológica e alguma introdução à linguística do e-makhuwa, sedimentada e condimentada numa experiência do autor de 14 anos de vivência e convivência com os makhuwas - “o que vi e ouvi”, como escreve e depois aponta com mais precisão: “Neste meu trabalho, terei uma preocupação constante: partir dos factos e da experiência. Quero transmitir o que vi e observei, o que ouvi e escutei: o povo, a gente, a sua maneira de ser, de viver, de amar os valores culturais que o identificam, valores estes que lhe dão consistência, e que encontramos nas suas manifestações sociais.”
E o Padre Francisco Lerma Martinez conclui que o povo makhuwa é “um povo semelhante aos outros povos da Terra”; os makhuwas “são, antes de tudo, um povo com história, tradições e cultura própria…”
Portanto, não podem ser “falsos”! Nem tão pouco.
ME Mabunda