No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado 5 novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por COVID 19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções.
Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.
Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.
Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.
O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.
Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.
Mia Couto
José Eduardo Agualusa
A única generosidade mais pura que sempre vi em Calane foi a de dobrar-se; ele tinha uma espécie de guinchos no pescoço que lhe dobravam a cabeça para falar com os mais baixinhos. Não era só o corpo enorme que se dobrava, que descia, eram os seus óculos, o seu cheio, a sua boca entulhada de gotas de saliva e toda a sua humildade. E parece injusto quando o tempo dobra um homem que sempre se dobrou a todos.
E ele era também estiloso, não sei porque raio de gentileza o tempo arruma as pessoas estilosas; Calane já tinha o bigode penteado de branco pelo tempo, a tesoura das horas comia-lhe, sem parar, a raiz dos cabelos e o seu bigode com sedas brancas levitava a cada sorriso como capim sendo arrastado por um jacto de vento.
Escrevo isto a Calane que sempre andava enterrado em camisa sem gola, com pêlos brancos escalando a camisa e denunciando a ilha do tempo que lhe arrastava a areia do corpo à velhice. Não escrevo isto a Calane do Michafutene, a Calane que se deixa comer pelos vermes da terra como a poeira engole os capítulos dos seus livros e a métrica dos seus poemas nas prateleiras da cidade. A este Calane não escrevo e nunca escreverei.
Escrevo a Calane de gancho, elegante, no nariz onde engatava os óculos, a Calane que nunca soube falar devagar, a Calane que afastava os pulmões para falar e parecia que se sufocava quando falava; mas nunca se estrangulou pois era falando que o homem respirava. Escrevo a Calane branco, preto, mulato, indiano, hindu…
Não escrevo isto ao estranho Calane que foi tapado a voz e o corpo pelas pás de Michafutene, a Calane que pernoitou de costas sem dizer um poema na morgue do hospital para assustar a morte. Escrevo isto a Calane que não precisa de uma botija de gás para pôr a andar a porcaria da vida; escrevo a um Calane branco, preto, mulato, indiano, hindu, que sempre foi coveiro do medo com a pá da sua poesia. Juro-vos que não escrevo a Calane de Michafutene com flores e vasos no peito.
Eu dizia que Calane tinha a habilidade de dobrar o seu enorme corpo para falar com os mais baixinhos, não sabia que ele podia, um dia, curvar o corpo para caber na travessa de uma funerária e terminar no Michafutene como todas as carcaças de ossos que saem das morgues dos hospitais.
Tinha a cabeça submersa, como um cágado, no casco da camisola, movimentava-a mas só para os lados. Tinha os óculos poisados sobre a mesa, mas as marcas dos óculos continuavam em seu nariz; e seus olhos mexiam-se a cada instante como pés húmidos arrancados das meias. Os óculos de costas estavam sobre a mesa, um isqueiro descansando o sopro de lume mexia-se o seu gás sobre um maço de cigarros. O homem, de quando em quando, atirava o seu olhar solto das algemas dos óculos sobre a Ria Formosa.
As lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria eram como mulheres aninhando-se nos corredores de uma maternidade, os carros comendo-se de impaciência na passadeira para um velho puxado por um cachorro magro, os turistas de calções curtos estendendo suas pernas povoadas por pêlos murchos e outros remastigavam fumo de cigarros de olhos fechados, tudo isso corria no centro de Faro. E o homem continuava ali sentado, sobrepondo os pés, de segundo a segundo, como se ensaiasse passos para caminhar para dentro de si.
Andamos todos com medo de sermos atacados, por isso armei-me de máscara e sentei-me na mesma mesa com o homem; e ele, também, por segurança, manejou o revólver da sua máscara e ficamos um vigiando o outro com medo do ataque; o homem tossiu duas vezes, três vezes e quase os pulmões saiam-lhe pelas fendas do nariz. Como um bom militar de guerra, recuei a cadeira, estiquei os gatilhos elásticos da minha máscara e homem riu-se sem parar. “Esses tipos já começaram a despachar esta porcaria de cigarrilhas”. E a conversa começou. Primeiro foi a recolha obrigatória que recolheu toda a nossa timidez na conversa, depois foi a gripe que adormecia toda a Europa a enfiar-se na mesa; e do nada o homem, equilibrando a máscara no queixo para mais uma cigarrilha, disse-me: “o único imigrante que não é bem-vindo em todo mundo é esta gripe”.
O homem sacudindo a cauda da última cigarrilha, ainda com a boca transbordando de fumo, diz-me: “depois de morto que levem os meus pulmões para a Amazónia; assim o mundo respira muito mais. Podes não acreditar mas tenho os pulmões mais saudáveis do mundo”. Filtrei, com a máscara, um sorriso que o homem não viu, mas apercebeu-se pelas leves deslocações das bochechas. E o homem foi falando sem parar, reclamava da esposa que lhe trocava por um cão. E no meio disso o homem diz que na terra onde cresceu os cães não têm nenhum direito; o único direito que têm, por piedade, é de morrerem apedrejados na rua.
“Eu sou imigrante como tu, imigrante como todos os que saíram da sua terra com um par de calças no cabide da cintura”. Kassoma era o nome do homem. Disse-me que é de Angola e tinha chegado a Portugal porque queria, antes de tudo, fugir da memória pesada do assassino dos pais durante a guerra civil. Um senhor mexeu nas lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria e as lanchas agitaram-se, desta vez como mulheres sendo engolidas por porta de uma maternidade. E Kassoma não parava de falar dos seus pais assassinados como cães, na sua terra onde os cães eram apedrejados nas ruas. “Os meus pais foram podados os pescoços com duas baionetas, tu sabes o que é isso? És puto demais para isso”.
Já não tinha mais cigarrilhas, começou a roer as unhas como se quisesse desenterrar uma cigarrilha, agitou o isqueiro. Quando me preparava para uma pergunta qualquer o homem dispara-me: “o que tu queres saber de mim? Tu sabes que sou imigrante, Portugal acolheu-me, apesar de existirem alguns racistas que me chamam macaco, mas eu também fui criança-soldado. É isso que queres saber?”. Quando o homem afundava-se num enorme poço de silêncio eis que um carro, com um cão agitando-se no interior, buzina à nossa mesa; uma senhora branca entorna a cabeça pela janela e Kassoma levanta-se, junta-se aos poucos, mete-se no carro e desaparece.
Sérgio Mundaí* nasceu em Bajone, na província da Zambézia. Na tenra idade, treinava karatê e no bairro vários jovens levavam “txaia”. Dadas as suas habilidades físicas, a família fez de tudo para que Mundaí fizesse parte das Forças de Defesa e Segurança (FDS), ramo que abraçou por mais de 20 anos, até que uma mega oportunidade surgiu – foi seleccionado para fazer parte da Unidade de Protecção de Altas Individualidades (UPAI), mas desta vez na capital do país, cidade de Maputo.
Embora competente, Sérgio Mundaí tinha um vício – bebia bastante. Só que na UPAI o homem era escalado para trabalhar em dias em que não se pudesse envolver numa bebedeira super agressiva e faltar ao trabalho. Mas, mesmo no trabalho, sempre que fizesse parte de uma equipa que levasse um chefão a uma festa, o homem dava uma escapadinha e tomava uns drinks na cozinha, ou mesmo levava e escondia as garrafas.
Sucede que, num belo dia, Mundaí e seus colegas são seleccionados para uma brigada especial, encarregue de transportar oito toneladas de vinho, provenientes das bandas de Abu Dhabi e que entrariam via Terminal da Base Aérea, na cidade de Maputo. Neste dia, todos se questionavam o porquê de não passar pelas alfândegas e pelos oficiais do Terminal de Cargas, tratando-se de uma carga de género. Entretanto, ninguém tinha resposta, apenas se dizia nos corredores que a mercadoria era especial e que não devia ser mexida e nem inspeccionada, daí que o avião que trouxe a mesma aterrou num local especial como na Base Aérea – mas o coração dos homens de grande business no aeroporto sangrava!
Naquele dia, os homens escalados para a missão não sabiam o que iriam transportar, daí que, chegando no local, depois da mercadoria ser descarregada, os oficiais questionaram o que era aquilo – eis que alguém responde dizendo que era vinho! Espantado e ao mesmo tempo satisfeito, Sérgio Mundaí deu um pulo mágico e subtraiu uma caixa, acreditando que se tratava mesmo de vinho e que uma caixinha daquelas não iria fazer falta.
A equipa seguiu ao destino com a mercadoria. No local, os oficiais da UPAI foram dispensados e ficaram os homens da contabilidade a fazer o cálculo do vinho, até que um dos contabilistas se apercebeu que faltava uma caixa e prontamente comunicou os seus superiores que o vinho não estava completo…. Preocupados, os superiores contactaram os homens de Abu Dhabi, informando que a mercadoria não estava completa e eis que os homens responderam dizendo que tinham todas as provas de que eram 8 toneladas de vinho! Encetou-se diligências para se perceber o que havia acontecido.
Do outro lado, convencido de que iria provar uma boa taça de vinho, não é que Sérgio Mundaí se surpreende ao abrir a caixa – eram na verdade maços de notas em dólar – o homem ficou boquiaberto, o que é isso? Dinheiro? Então, aquilo tudo que transportamos era dinheiro e não vinho? Se questionava Mundaí. De imediato, Sérgio Mundaí fecha-se no quarto e começa a contar o dinheiro que passava uns 20 maços em notas de 100 USD cada.
Metido a esperto, Sérgio Mundaí arranjou formas de tirar o dinheiro de casa e esconde-lo. Por outro lado, as diligências decorriam silenciosa e sigilosamente, procurando-se saber quem havia sumido com a caixa de vinho! Não é que, entre os interrogados, um acabou revelando que, no dia do transporte, o colega Sérgio Mundaí havia subtraído uma caixa de vinho. Chamado para responder, Mundaí negou tudo e jurou em nome de todos seus antepassados que haviam perdido a vida que não teria visto e nem levado a tal caixa. Entretanto, o pesadelo só estava a começar!
Deixaram o tempo passar. Num certo dia, em plena hora do almoço, homens armados e a paisana bateram ao portão da casa de Mundaí. No dia, o homem estava de calções e uma camiseta interior jogando conversa com a esposa, os filhos e vizinhos. A instrução era calar, intimidar o homem a falar e, caso não revelasse onde estava o dinheiro que estava na caixa de vinho, lhe tirassem a vida e escavassem toda a casa atrás daqueles maços.
Começou o pesadelo, Sérgio Mundaí foi imobilizado, torturado e baleado em frente dos filhos, enquanto era questionado, onde estava o dinheiro. O homem simplesmente dizia: “eu não sei de que vocês estão a falar”. Depois de minutos sem falar e com tiro alojado na perna, parte do grupo arrastou-o até ao carro, enquanto isso, um grupo sentava-se no seu sofá, servindo seu whisky, apreciando a senhora Mundaí e assistindo televisão com as portas fechadas. O outro grupo levava o homem para um lugar incerto, onde foi assassinado e depois deixado nas bandas de Chiango!
Uma hora depois, o grupo voltava com enxadas e pás atrás dos maços de dinheiro que, entretanto, nunca foram achados e a família de Mundaí teve de fugir da zona com medo de ser apagada! No entanto, não se sabe se foram os chefões que mandaram o grupo para cometer tal façanha, ou foi alguém que acompanhou a história nos bastidores e quis ficar com o garrafão de vinho cheio de maços de USD supostamente descartado. Quem sabe, se Mundaí estivesse vivo, testemunharia, com propriedade, o que de facto estava nas 8 toneladas de vinho enviadas de Abu Dhabi pelo maestro Jean!
*Nome fictício. Facto real e organizado consoante a imaginação do autor.
“Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.” É o que está consagrado no artigo 35 da Constituição da República de Moçambique (CRM), o qual está em harmonia com determinados instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte, quais sejam: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, só para citar alguns. Aliás, determina o artigo 43 da CRM que: “Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos.” De acordo com estes instrumentos legais, o Estado moçambicano tem a obrigação de garantir a protecção dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos seus cidadãos no território nacional e no estrangeiro.
Cidadão moçambicano e jornalista de profissão, ao serviço do Jornal Semanário, Magazine Independente, na Cidade de Maputo, foi vítima de violação do seu direito fundamental de livre circulação, dignidade humana e integridade física pelas autoridades angolanas, no dia 11 de Agosto de 2011, quando se encontrava no Aeroporto de Luanda prestes a entrar para o território angolano em missão de serviço.
Na verdade, Manuel Cossa fora convidado pelo Centro de Formação de Jornalistas de Angola, em parceria com a Gender Links, para participar duma formação de capacitação de jornalistas na área de economia e género em Luanda, entre os dias 12 a 15 de Agosto de 2011, particularmente dirigida a jornalistas da SADC. Na sequência, o referido cidadão solicitou o competente visto à Embaixada de Angola em Maputo para poder entrar legalmente neste País, ao que lhe foi concedido conforme as regras de concessão do visto na altura.
No entanto, o mesmo foi interdito de entrar no território angolano pelos Serviços de Migração Estrangeiros sem nenhuma explicação. A interdição foi feita com recurso a ameaças, maus tratos, incluindo a violação da integridade do seu passaporte que fora riscado como se de criminoso e imigrante ilegal se tratasse, tendo sido repatriado de imediato para Maputo em circunstâncias de muita humilhação, tendo ficado sem alguns dos seus instrumentos de trabalho, com destaque para o seu computador portátil.
Pelo sucedido, Manuel Cossa juntamente com a sua entidade empregadora, o Jornal Magazine Independente, apelaram às autoridades moçambicanas, particularmente o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, para junto ao Estado angolano esclarecer esta situação e reparar os danos sofridos pela violação, mas nada foi feito de que tivesse sido dado a conhecer à vítima, em protecção dos seus direitos.
Ao agir da forma como agiram, as autoridades angolanas puseram em causa não só o direito de livre circulação e dignidade da vítima, como também desprezaram e ignoraram a Constituição da República de Moçambique, na medida em que violaram, arbitrariamente, um passaporte (documento do Estado) legalmente emitido pelos Serviços de Migração de Moçambique sem fundamento que justificasse tais actos. Importa aqui referir que, durante muito tempo, Manuel Cossa ficou numa situação de não saber se podia seguramente viajar para o território angolano.
Nos termos do disposto no artigo 55 da Constituição da República de Moçambique e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de que Moçambique e Angola são parte, todos os cidadãos gozam do direito de livre circulação no interior e exterior do território nacional, desde que não estejam judicialmente privados desse direito. Quanto a Manuel Cossa, não existe nenhum registo de privação de circulação. Pelo que os actos das autoridades angolanas constituíram, entre outros, violação do seu direito de livre circulação em Angola, uma vez que tinha todos os requisitos legais para o efeito.
Assim, no ano de 2012, Manuel Cossa recorreu ao Tribunal Administrativo pedindo o reconhecimento e protecção do seu direito fundamental de livre circulação, integridade física e dignidade humana e, em virtude disso, para que o Estado moçambicano fosse condenado a tomar todas as medidas necessárias para interceder junto ao Estado Angolano com vista à reparação dos danos causados à vítima e a pagar a devida indemnização por perdas e danos derivados das violações em causa.
Após oito anos de batalha judicial, em Novembro de 2020, o Plenário do Tribunal Administrativo, através do Acórdão n.º 75/2020, negou provimento ao pedido de Manuel Cossa e deu por encerrado o caso, alegando que, na sequência do sucedido, houve correspondências entre o Estado moçambicano e o Estado angolano, através dos quais, o Ministro das Relações Exteriores, em nome do Presidente da República de Angola, apresentou desculpas ao Governo Moçambicano, no quadro do poder discricionário dos dois Estados à luz dos artigos 47 e 48 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que permitem o pedido de desculpas como forma satisfatória de resolução do problema.
Todavia, nunca houve pedido de desculpas formais, nem por outra forma, para com a vítima, ao qual nunca foi dado a conhecer resultado de quaisquer correspondências, nem de que forma terá o Estado moçambicano garantido a reparação dos direitos violados pelas autoridades angolanas. Em bom rigor, no presente processo, o Ministério Público promoveu a improcedência do pedido nos termos decididos pelo Tribunal Administrativo.
Esta cidadã moçambicana, residente na Matola, Província de Maputo, no ano de 2011, foi vítima de amputação brutal do seu dedo polegar esquerdo, acto perpetrado por um dos agentes da polícia sul-africana no posto fronteiriço de Libombo na Província de Mpumalanga, território sul-africano, bem próximo da fronteira de Rassano-Garcia, alegadamente por estar a transportar e vender cabelos artificiais. O autor deste acto violento ficou impune e à vítima não lhe foi concedida uma assistência legal condigna e em tempo útil para a devida reparação dos danos causados, não obstante ter havido denúncia ao Estado moçambicano para o devido apoio jurídico e o caso ter sido bastante noticiado e debatido na imprensa. O autor deste artigo não encontrou informação clara, no domínio público, sobre o desfecho final do caso pela intervenção do Estado.
Desde o ano de 2008 que os casos de xenofobia contra os cidadãos moçambicanos, entre outros africanos, têm intensificado. No entanto, escasseia informação detalhada no domínio público que demonstra a prática de esforços eficazes do Estado moçambicano junto ao Estado sul-africano em defesa dos moçambicanos vítimas de acções de xenofobia na África do Sul.
No contexto do famigerado caso das dívidas ocultas e do libelo acusatório da justiça norte-americana sobre este processo, no dia 29 de Dezembro de 2018, as autoridades sul-africanas detiveram, no seu território, o antigo Ministro das Finanças e Deputado da Assembleia da República, Manuel Chang, a pedido das autoridades americanas para a consequente extradição do mesmo para os Estados Unidos da América. Desde então, o Estado Moçambicano, fundamentalmente através da Procuradoria-Geral da República (PGR), tudo tem feito para garantir a defesa de Manuel Chang, que não é Cossa, com vista a ser extraditado para Moçambique.
Dos variadíssimos esforços que estão a ser levados a cabo pelo Estado moçambicano desde o ano de 2018 até ao presente momento para a defesa de Chang na África do Sul, destaca-se a informação, ainda que não detalhada, de gastos de muitos milhões de meticais para pagar honorários dos advogados constituídos a favor de Chang e outras despesas relativas a este caso. Aliás, o Estado tem elaborado vários documentos e comunicados de imprensa que demonstram o seu vigor e interesse directo em defender Chang no estrangeiro.
Tendo por base os casos supra descritos, parece que os cidadãos moçambicanos não têm igual tratamento, em termos de protecção dos seus direitos no estrangeiro, pelo seu próprio Estado que revela escolher a quem garantir pronta protecção dos direitos além-fronteiras. Afinal, que critérios estão a ser postos em prática para a efectiva garantia de defesa dos moçambicanos no estrangeiro ou cujos direitos são violados por autoridades estrangeiras?
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
É verdade! Depois desse mar todo de amor que despejavam sobre mim, sem que eu desse conta do tesouro que isso representa, escolhi a reclusão da solidão, que na verdade é um jardim sem limites, porém desprovido das flores que eram vocês as sete, na mesma intensidade, cada uma no seu tempo. Agora vivo das vossas lembranças. Do vosso cheiro que ainda me percorre sem parar em todas as veias do meu sentimento. É como se ainda me pertencessem, como se ainda, na profundeza das noites, fosse sentir o vosso peito macio tocando-me nas costas.
Cheguei a conclusão, sem que para tal fizesse qualquer exercício mental, que vocês as sete amavam-me da mesma maneira, no sentido de que o que mais queriam de mim era a minha felicidade. Eu era o vosso mote. Partiam com esperança e anseio para diversas searas como os pássaros que saem dos ninhos a procura de provento, eu era a vossa rampa e porto de retorno. Ao regressarem, cada uma no seu tempo, eu era o poiso onde assentavam o corpo suado. Desejoso de mais uma noite de amor.
Mas mesmo assim, com a vida levada em órbita, foram percebendo em cada momento do nosso convívio, que afinal serei uma decepção, eu também senti isso. Sabia da minha incapacidade de amar. Tinha consciência do meu imerecimento do amor. Do vosso grande amor que até hoje não abandona os meus pensamentos. E vocês as sete lutavam pelo ajuntamento de ouro para mim, e eu levei esse ouro e coloquei-o no focinho dos porcos, e depois virei-vos as costas sem me preocupar em levar nada, desvalorizando o vosso suor vertido. Em vão.
Hoje quando me lembro dos vossos olhares dormentes na ressonância do sexo que faziamos em cascata, sinto que nunca fui pessoa para ser amada por nenhuma de vocês as sete, mas isso corta-me o coração aos pedaços, sobretudo porque nunca se esqueceram de mim, depois destes anos todos que passaram. Jamais se riram dos meus fracassos enterrados nas bebedeiras absurdas. Antes pelo contrário, vocês as sete querem que eu volte a ser feliz, como quando o meu coração estava nas vossas mãos. Sei disso através das pessoas com quem comentam em ocasiões, querendo saber como estou.
Eu já não falo de vocês, limito-me a agradecer os momentos intensos que me ofereceram. De graça. Sem o merecer. Sinto-me feliz por saber que os vossos caminhos estão cheios de luzes. Então peço a Deus que coloque mais petróleo nos candeeiros pendurados nos postes da vida prenhe que merecem, para que não se apaguem. E a mim, deste lado, no meu celibato, o que me resta neste fim de estrada, é fingir que sou um cantor de blues, isso torna-me vital.
Obrigado, minhas sete ex-mulheres, pelos laivos de felicidade que experimentei convosco. Depois disso tornei-me um vagabundo, que mesmo assim ainda acredita no futuro. E acredita também que no dia da minha morte, vocês as sete não se esquecerão de levar flores para embelezar a campa deste vosso ex-marido que não presta para nada.