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terça-feira, 30 março 2021 06:41

DIREITOS

A primeira vez que apareceu escrito em forma de lei, O Direito, foi no Código de Hamurabi – de onde a lei do talião foi a mais famosa do código.

 

terça-feira, 23 março 2021 13:14

Hortêncio e Marcelo, 70 canções e 70 livros

No mês da poesia, ainda atónitos com a pandemia, com o flagelo e com a extinção de uma geração, duas referências culturais moçambicanas vão aniversariar. Mas isso, todos nós fazemos. Não seria novidade para ninguém. O detalhe está no percurso que palmilham, embalado pela poesia de 70 canções e 70 livros. Abraçar a longevidade, com a jovialidade e elegância aprimorada, a frescura mental intocada, com a cor da sombra da vida, com o talento que supera a pintura na representação das palavras e significados.

 

Do Hortêncio Langa tivemos, sempre, o consolo e o apego que vivem entre os acordes e a concórdia dos tons de um violão. Do Marcelo Panguana colheita de palavras reveladoras do mais nobre dos sentimentos, prazer da leitura e o rescrever da história contemporânea. Semear palavras para colher harmonia e tranquilidade de alma.

 

No sorteio de quem começa primeiro, meu instinto primitivo recorre ao Hortêncio Langa, o legendário músico e compositor, que surgiu para o mundo, uma semana antes do Marcelo Panguana. Na vida, por vezes, isso faz alguma diferença. Na arte, nem por isso. Marcelo Panguana, o cronista e escritor de tantas obras e revelações, encerra o mês da poesia. Estas idiossincrasias repercutem as obras da natureza, do artífice e da própria humanidade.

 

Cada um, a seu tempo e espaço, com a arte que lhes é peculiar, aprendeu a olhar para os céus, no despertar da alvorada e no raiar do entardecer, com a magia que captura nossas emoções e impulsiona nossos espíritos. Com eles, a nossa cultura ganhou e continua a ganhar outras tonalidades e argumentos. Se nunca tivessem existido, não seríamos tão gratos à fantasia dos sons e ao prazer de uma leitura fervorosa e empolgante.

 

Hortêncio chega aos 51 anos de carreira. Marcelo Panguana roça os 32 de estrada. Não são procedentes das mesmas fontes. Todavia, tiveram o amparo e respaldo familiar para se socorrerem da sua arte e talento.

 

Hortêncio Langa é originário de uma família de músicos natos. Seu irmão, Pedro Langa, mentor dos Ghorwane (juntamente com Zeca Lage e Roberto Chitsondzo), nome de um lago na sua terra natal, também me confidenciou, no ido ano de 1978, sobre como a família encontrou na música uma forma de expressar o que não conseguiria fazer de outra forma. Milagre, Hortêncio e Pedro são senhores de inegável percurso em bandas musicais. Hortêncio, em particular, palmilhou algumas tantas. O destaque deve ir para os Rebeldes do ritmo, Monomotapa, Alambique, entre muitas, das quais o próprio Hortêncio tem alguma dificuldade em identificar.

 

Ele iniciou com uma gaita-de-beiços. Gentilmente, oferecida por um auxiliar da sua mãe, ainda nos seus tenros cinco anos. Imagino que ele deve ter soprado, até à exaustão de seus diminutos pulmões, aquelas canções mais populares canções de Mandlakaze. Ou não fosse essa a mística da terra e do berço da intelectualidade e cultura. Porém, foi no Chibuto que ele se juntou à Wazimbo e Miguel Matsinhe, para fazerem os Rebeldes do Ritmo. Era a fase do aprendizado e não se coibiu de usar a viola de lata. Pelas mãos de José Mucavele, outro amigo de adolescência, a sua “Xighoghogwani” ganhou outra sonoridade nesse dedilhar quase erudito.

 

Na família e na sociedade eles beberam do melhor que a transição cultural e política poderia conferir. Filhos de enfermeiros que tiveram a perspicácia e a força telúrica de moldar seus talentos. Hortêncio se transferiu para o Maputo, ainda na juventude, para prosseguir seus estudos. No inevitável Chamanculo, eles reeditaram o trio de Chibuto. Recriaram os rebeldes com a capa de Geyser. Mas, este trio evolui e integrou um dos melhores solistas que este país alguma vez criou. Jaime Machatine, Jaiminho, do Monomotapa, começou como baterista e depois se converteu em viola solo, já noutras latitudes e ambientes. Deixou este mundo sem honra e nem glória.

 

Hortêncio Langa continua detentor de uma magnífica voz e de canções com invulgar simplicidade. Nessa imaculada carreira musical, Hortêncio fez ainda parte da tuna académica da Associação Académica de Lourenço Marques, tocando viola e bandolim. Esteve na tropa colonial, cidade de Nampula, no começo dos anos 70, e integrou o Grupo 2, tocando de forma esporádica com a banda Alta Dimensão, que integrava o mítico João Paulo. Ele virou e honrou Moçambique, dedilhou sua guitarra em palcos de Cuba, Jamaica, e Guiana, para além das Europas. Com João Cabaço, esse monstro musical, Hortêncio atingiu o apogeu da carreira. Necessário fazer referência à Arão Litsure, pois, existiu um Trio Hortêncio-Arão-João. Antes Arão e Hortêncio foram um Duo.

 

O Marcelo Panguana tem outros atributos. Cronista, poeta, autor de contos e jornalista. Não é originário de Mandlakaze, mas de Lourenço Marques. Marcelo tem uma lista longa de publicações. Isso lhe valeu prémios de reconhecimento na Itália e no Brasil, com destaque para a medalha de ouro da Fundação Roberto Marinho. Foi, igualmente, prémio literário Rui de Noronha, e menção honrosa no prémio Sonangol de literatura, em 2011, com a obra “O filho do planalto”.

 

Quem olha para aquele corpo franzino e a irreverência de um arrojado escritor, jamais poderá acreditar que ele transporta tamanha longevidade. 70 caminhadas por tantos livros e textos avulsos. Diz-se que Marcelo escreve desde que conheceu as primeiras letras do alfabeto. Não sei quais devem ter sido seus escritos originais, mas, a página literária “Diálogo” do Diário de Moçambique, foi onde começou a amadurecer a sua escrita e ousadia para se afirmar. O primo Marçal achava que a tropa o assustou e lá fez seus primeiros textos mais conseguidos. No Maputo, integra a “Charrua” e esse homogéneo grupo de jovens que assegurou a continuidade da literatura Moçambicana.

 

Mas o Marcelo Panguana deveria ser um alquimista. Estudou química no longínquo 1971, tendo interrompido para integrar o serviço militar. Este alquimismo não o abandonou e, uma vez mais, em 1976, volta a matricular-se num curso de refinação de petróleos. Sonhava já com o gás de Panda e de Palma.

 

Mas, Marcelo Panguana, também, se assumiu como crítico literário. Aquilo que mais e melhor ajudaria a literatura deste país. Não imagino que o faça por força de vontade, mas, esta crítica fica implícita nos seus livros. Aí, ele faz questão de criticar as obras, e de valorizar cada um dos escritores moçambicanos. Parece, e bem, que, como São Tomas de Aquino, se imagine que todos ainda seremos muito poucos, para levar para a frente esta tarefa de escrever e recriar a história e a fantasia de Moçambique.

 

Nessa longa lista de livros quis saber qual era o seu livro preferido. Gentilmente, diz que os filhos são todos iguais e merecem, dos pais, o mesmo tratamento. Mas, são os leitores que o devem fazer. “As Vozes que Falam de Verdade”, contos editados pela Associação de Escritores Moçambicanos, em 1987, simbolizam a sua aparição em livro e, talvez por isso, Marcelo fale sempre deste livro com um carinho especial. Na analogia de pais e filhos, este foi o seu primeiro filho. Mas, as opções terão de navegar entre a “Balada dos Deuses”, “Estórias de Reconciliação”, “Fazedores da Alma”, “O Chão das Coisas”, “Os Ossos do Ngungunhana”, “Como um Louco no fim da Tarde”, “Leona, a Filha do Silêncio”, “O Filho do Planalto”, “Conversas do Fim do Mundo”, “O Vagabundo da Pátria” e “Escrever a Terra”, seu último livro publicado. Contudo, diz ter um carinho especial por “Leona, a Filha do Silêncio” e por “O Chão das Coisas”.

 

Marcelo Panguana escreve com a regularidade de um tempo que foi nosso. Esse tempo único e inquestionável. Entende a exiguidade e as carências, a ausência de estímulos, os egoísmos e as artimanhas do mercado livreiro, ainda assim, ele coloca o seu humanismo e solidariedade, para partilhar tudo o que tem para ajudar o próximo. Para celebrar o 70º aniversário, ainda nos poderá surpreender com mais alguma obra. A literatura agradece e os leitores terão a oportunidade de o felicitar de forma dupla. (Jorge Ferrão)

As Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Moçambique são relativamente novas e as suas primeiras aparições e intervenções datam dos primórdios dos anos 1990. Paulatinamente o seu escopo foi se alargando e sua influência se estendendo para áreas relevantes e demandadas a nível da sociedade. E quanto mais elas foram crescendo e ampliando seu raio de influência, mais problemática e discutida foi ficando a sua aceitação. Elas vem reclamando por mais espaço de actuação e, paradoxalmente tal espaço lhes é progressivamente negado.

 

O espaço cívico é entendido como um espaço onde todos indivíduos/ cidadãos  da polis realizam livremente os seus desígnios, um espaço do rendezvous geracional de ideias e pensamentos. É um espaço que simboliza os valores mais altos da democracia, dos direitos humanos e sugere igualmente a materialização dos contratos social e político que celebramos uns com os outros.

 

Alguma literatura explica a natureza naturalmente social do homem – traço distintivo dos outros animais (Onde está o homem, há sociedade; Onde está a sociedade, existe o Direito). Recorrendo a clássica definição Aristotélica, o homem é um animal eminentemente político e busca sua realização dentro da sociedade. Na mesma sociedade ele associa-se umas vezes e desassocia-se outras vezes, construindo formas de associação que melhor respondem aos seus anseios sem no entanto perder a sua sociabilidade e politicidade. Aqui podemos por analogia buscar a hierarquização social e política, e consequente legitimidade de certos grupos dentro da sociedade, entendendo como algo natural derivado das habilidades inatas ou adquiridas e talentos, e não como algo divino.

 

Com a geração contratualista, a reflexão maior gira em torno da reflexão da saída do homem do estado de natureza para a sociedade civil. A natureza humana começa a ser discutida filosófica, sociológica e antropologicamente para tentar explicar o comportamento do homem dentro e fora da sociedade – De Jean Jacques Rousseau, passando por John Locke  e o Barão de Montesquieu encontramos abordagens distintas e igualmente ricas sobre o contrato social implícito onde cidadãos livres movidos pelo medo da morte violenta, insegurança e pela desconfiança mútua aderem ao estado social e civil por via de um contrato implícito e por vezes explícito. Mais tarde, vendo suas liberdades pouco seguras e receando a traição e não cumprimento de acordos aderem ao pacto social por meio da outorga das suas liberdades, dos seus direitos e cumprindo com deveres. A figura e imagem do soberano emerge como resultado deste contrato social e político. Francisco Soares (1548-1617) afirma que “não foi conferido ao homem o poderio político  sobre seus pares, de modo que esse domínio não haveria de ter fundamento diverso do consenso, através do qual a multidão se reúne em um só “corpus politicum” (Del Vecchio, 1979:84)

 

Numa fase mais avançada, com o esplendor das leis em Montesquieu no seu “O Espírito das Leis”, a sociedade dá um passo qualitativo e regulamenta a sua acção criando bases legais para a regulamentação dos comportamentos e acções, criando um corpus politicum  com competências separadas – nasce assim o Estado de Direito com bases da separação de efectiva de poderes (os três poderes do Estado – Executivo, Legislativo e Judicial).

 

Um pouco por todo o mundo o espaço cívico vem sofrendo sucessivas e progressivas ameaças e atentados que paulatinamente contribuem para o seu fechamento e deterioração. Este fenómeno não é novo e tampouco isolado, e é mais visível em países com regimes com tendências autoritárias e ditatoriais. As Organizações da Sociedade Civil, admiradas por uns e odiadas por outros, são também consideradas como sendo o braço de apoio à governação, vem travando uma luta para a edificação de uma sociedade mais justa, mais participativa, mais transparente e mais inclusiva. E dada a sua alta exposição em eventos e acções por vezes confundidas como sendo apanágio único do executivo e do poder do dia, sua legitimidade e mandato acabam por ser questionadas, e suas acções as vezes combatidas.  

 

É meu entender que, a governação é uma vasta área e que espaço cívico é apanágio de todos e de cada um de nós, por isso, defendo afincada e desapaixonadamente neste artigo que, para que  ele seja aberto e que represente o reencontro dos ideais supremos da democracia e do Estado de Direito é necessária uma maior aceitação de actores e players que muito podem contribuir na vastidão da acção de governação.

 

Estudos recentes sugeriram a possibilidade de ocorrência de dois eventos nefastos a médio prazo: o primeiro era a então incipiente flagelação das OSC e o segundo eram os ataques públicos (desde físicos aos verbais) aos representantes e membros das OSC, e tal se efectivou e vem se consubstanciando.  

 

O afunilamento e fechamento do espaço cívico em Moçambique começou a ganhar corpo e foi se cimentando paulatinamente nas duas últimas décadas (sendo que cada década caracterizou-se por distintas acções de governação). Ataques, raptos, ameaças e assassinatos geraram uma grande onda de consternação entre as diferentes franjas da sociedade a nível nacional e internacional. O medo generalizou e muitos analistas e activistas enfrentaram a desacreditação do seu trabalho através da criação e difusão de narrativas depreciativas. Este exercício paulatino e sistemático de desacreditação primeiro silenciosa e depois barulhenta contra as OSC e seus membros lançou um debate sobre a relevância e irrelevância das organizações da sociedade civil, sobre a sua legitimidade, sobre o seu mandato, e sobre o seu raio de actuação, ou seja, a quem elas realmente servem e quem as empoderou.

 

As narrativas contra a sociedade civil são uma arma muito perigosa e eficaz, principalmente em sociedades como a nossa com níveis de educação baixos e uma crítica pouco ou nada elaborada. Não estamos diante de um fenómeno isolado em Moçambique, mas diante de uma estratégia usada em várias partes do mundo.

 

A dificuldade em lidar com ideias e posições diferentes faz com que uns se sintam mais donos da verdade e donos da razão que os outros. A vontade de fazer vingar determinadas ideias em detrimento das outras, cria fricções e atritos. E nisto emerge uma negatividade baseada no ódio e na violência gratuita

 

Mais de 45 anos após a conquista da independência, os fantasmas do passado nos perseguem e, devido a intolerância de uns e não pluralismo de outros, corremos o risco repetir a história mas com contornos e actores diferentes.

 

Amartya Sen no seu livro “Desenvolvimento como Liberdade” afirma inequivocamente que a condição primária para o desenvolvimento é a existência de liberdades. E mais adiante desenvolve a abordagem das capacidades, onde a chamada “liberdade negativa” (ausência de impedimentos) é contraposta à “liberdade positiva”  (condições reais de exercício de um direito). E aqui nesta positivação das condições reais, entendo que devemos como sociedade promover mais as liberdades políticas, económicas, sociais, as garantias da transparência e a proteção da segurança. Assim daremos um passo qualitativo rumo a uma maior edificação de um Estado, instituições credíveis e livres de amarras ideológicas.

 

POR: Hélio Guiliche (Filósofo)

quarta-feira, 24 fevereiro 2021 14:43

Juma Aiuba era um exímio cronista

Vai fazer falta a ironia, a irreverência (mesmo que, por vezes, tida como impúdica) deste exímio cronista. Juma Aiuba cumpriu com coragem uma missão espinhosa: criticar a hipocrisia viciada de muitos dos nossos costumes. A sua escrita foi uma contundente caricatura de alguns funcionários da maledicência que foram pagos e promovidos para inventar ódios e diabolizar os que têm a ousadia de pensar diferente.

Mia Couto

quarta-feira, 03 fevereiro 2021 11:18

O Poeta Não Morre – Amanhã Será Um Novo Dia

Redigi um texto emotivo e demasiado espontâneo quando Calane da Silva, nosso professor, aniversariou os três quartos de séculos, dessa generosa longevidade, marcantes passagens e vivências culturais. Têm sido anos intensos e profícuos de inevitáveis intervenções em prol do fascinante mundo das artes e letras e do jornalismo. Calane aniversaria, no mesmo dia que o artista plástico Naguib. A vida fez deles irmãos consanguíneos de sonhos, imaginação e fantasia. A complementaridade do signo libra que confere impulso emocional e tatua as identidades através das distintas épocas históricas.

 

Com ambos desenvolvi e privei, nos últimos anos, uma relação que perpassa a amizade ou convívio fraternal. Tornou-se viral e se situava nesse plano de múltiplas excentricidades e cumplicidades. Calane acreditava que ainda poderíamos agregar valores às crianças e jovens. Sentia que o capitalismo selvagem, dos novos tempos, os excluirá, sem apelo e nem agravo. Essas gerações bebiam o pecado do descaso e omissão. Educação poderia ajudar, defendia Calane. Educar gerações não significava, tão somente, ingresso. Teria de ser acesso. Crianças e jovens são minha matéria-prima e, confesso, continuo céptico sobre o futuro de muitos, até sobre o presente de poucos.

 

Retomar as cumplicidades, neste pequeno texto, não pode e nem deve, em nenhuma situação, ser entendido como uma homenagem ou louvor à sua obra e memória. Antes, tem de ser interpretado como uma forma de desmascarar a omissão e a displicência que acompanham os criadores artísticos e os talentos que criam e recriam este mosaico étnico, racial, social, cultural e, estranhamente, literário do país.

 

Calane era um samoriano convicto, porém de coração dilacerado pelos sucessivos falhanços de fazer uma nação reconciliada e com valores. Também Samora, deixou um país à beira do caos e do opróbrio. Mas, Calane era também um monoteísta. Com sangue miscigenado hindu e português, ADN africano, ele nasceu católico e professou a religião de forma convicta e leal. Lealdade que tipificou sua vida e amizades. As relações e matrizes cruzadas que fizeram dele um muçulmano reconvertido. Mas, a sua espiritualidade o transformou em espírita. Procurava a pureza do altruísmo e a força e poder da luz e do sol. Parte como líder espírita de um grupo que criou e, quem sabe, experimentará outras esferas espirituais, nos próximos anos, sentado à direita do Pai.

 

Quis fazer um texto sem recorrer, forçosamente, às suas características, gostos e vontades. Um texto de reencontro com Craveirinha e Gulamo Khan, Ricardo Rangel e Fanny Pfumo, com Malangatana e tantos outros, com quem ele conviveu e foi feliz. Este texto, então, seria uma espécie de penhorado agradecimento por tantos caminhos e obras que ficarão como legado.

 

Decidi rever um texto que ele compartilhou, o qual eu deveria ler, obstinadamente e sem tréguas. Marcelo Rubens Paiva, brasileiro, que Calane não conheceu, mas que respeitou, como respeitou a todos com a mesma simplicidade e cordialidade. Numa das passagens, o texto recordava “Apesar de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, estarão sempre entre o céu e a terra e continuarão emocionantes e lindas”.

 

Temo que, com a sua ausência, esse amor com as cores de arco-íris, continuará tão infinito e contagiante. Sem limites. Imaginativo e apaixonado pela fantasia, pedia, sempre, que observássemos tudo com olhares apaixonados, como se tudo fosse tão lindo e fascinantemente rejuvenescido.

 

Calane era, pois, essa espécie de Júlio Verne. Esse novelista e poeta francês, cujo nome original foi adulterado, Jules Gabriel Verne 1828-1905. Júlio Verne foi dramaturgo, poeta e ensaísta, cuja obra se configurou como a mais traduzida em toda a história. Fazia predições, em seus livros, sobre o aparecimento dos novos avanços científicos. Sonhou em passar 40 dias no fundo do mar e a ciência criou os submarinos. Invejou a liberdade dos pássaros e imaginou que o ser humano voaria e, até, transportaria carga, algo que os pássaros não conseguem fazer. A aviação deu azo a estas predições. Calane era um pouco este arquitecto das palavras que não deveriam ser esquecidas nos gabinetes e nem nos cacifos ou estantes.

 

Em tudo que já foi dito e, eventualmente, será escrito, retomo suas duas últimas aparições públicas na Universidade Pedagógica do Maputo. Aqui estudou e se converteu em professor, mentor e guia de centenas de estudantes pelo país afora. A UP-Maputo era o seu predilecto projecto de unidade nacional que a independência trouxera e o cativará infinitamente.

 

A UP-Maputo decidiu homenagear o Professor e médico Fernando Vaz. Completava só noventas Primaveras, exuberantemente, dedicadas à sua medicina, cirurgia médica e compaixão para com seus pacientes. 90 Anos de formação e educação de profissionais de saúde. Calane da Silva usou e abusou da graciosidade de sua voz e fez as honras da casa. Deixou que as palavras se transformassem em armas que libertam as ideias progressistas. Pelas suas palavras e abraços, agora tão raros, foram revistos os momentos azuis de uma revolução que agora virou vermelha. Ali estavam a sua Xicandarinha e Malanga, fervilhando as memórias da Lenha do Mundo, de Fernando Vaz e de todos nós.

 

Meses mais tarde, replicou a dose durante as celebrações dos 150 anos de Mahatma Gandhi. Cerimónia inusitada e de rara beleza espiritual e intelectual. Um momento indescritível e de contagiante emoção. Calane vestiu-se de branco, encarnou Gandhi, gesticulou a pureza da paz, liberdade da palavra e reconciliação. Exercitou Yoga e fez meditação transcendental. Espalhou seu perfume poético e fez acreditar num amanhecer sem ódios, sem tiros, na mão plena de bondade e no coração altruísta.

 

Por instantes, sentimos que Gandhi estava ali, visitando Moçambique, falando da sua luta pacífica, no dom da bondade. Ghandi visitará Moçambique e os privilegiados desfrutarão dessa bênção. Nunca mais voltamos a fazer yoga e nem meditamos. Alguns, quem sabe, ainda devem fazer. Inesquecível Calane. Todos nós, com uma peça de roupa branca, sem muita certeza das cores do nosso sangue e vontades.

 

Ao Calane, ficou essa enorme dívida educacional, literária e jornalística. Um penhor que só o tempo saberá pagar e retribuir. Aqui fica, então, esse pedido de desculpas pelas nossas incapacidades, fraquezas e omissões, por não sabermos reconciliar o país, não sabermos transformar os sonhos das crianças e jovens, pela incapacidade de proporcionar um novo amanhecer para todos, ávidos de oportunidades e respeito pela diversidade. Uma pátria de valores e liberdades respeitadas. Também, devemos por não termos sido céleres e mais assertivos para lidar com esta traiçoeira pandemia, covarde e assassina, Covid-19, que rouba de nós, o melhor de nós mesmos. Perdoe-nos por ter-te desacompanhado e te deixado no meio do povo para o qual você sempre viveu.

 

Neste momento da Páscoa, fica, apenas, essa vontade de reler no poema dos olhos das crianças, o amor e a reconciliação, acreditar que essa maldade vai desaparecer. Queremos essa luz esplêndida em nossos corações, para que amanhã seja um outro e novo dia. 

Não é para gerar polémica! Vivemos um período muito conturbado causado pelo triunfo momentâneo de um vírus mutante, que conseguiu juntar 3 em 1: a agressividade (virulência) do HIV, a transmissibilidade do vírus da gripe comum e  o factor novidade, que implica que ninguém tenha ainda desenvolvido imunidade natural ao mesmo. Um cocktail mortífero para uma doença transmitida por um organismo tão pandémico como o SarsCoV-2.

 

Se nós ajuntarmos o quarto factor, o da comunicação prolífica devida à omnipresença das redes sociais, como fruto de um milagroso desenvolvimento em exponencial das TIC´s, teremos a componente social importante para poder gerar a catástrofe. De facto, a existência de uma miríade de plataformas digitais, a internet rápida e o fabrico em série de smartphones faz com que qualquer pessoa, em qualquer momento e lugar, possa se tornar num “jornalista”, num fazedor de opinião. Aqui surge o primeiro grande desafio: todos dispomos de meios potentes de jornalismo, mas não das ferramentas éticas para exercer essa nobre profissão.

 

Assistimos muito recentemente, ao abuso ad nauseam da plataforma Twitter, para destituir ministros e conselheiros, emanar ordens presidenciais e discursos profanos e incitar ao assalto a símbolos democráticos, numa importante e próspera nação ocidental, o que prova que o risco de abuso das redes sociais pode até vir de pessoas que, à partida, deveriam ter o tal kit ético.

 

A influência e abrangência deste meio de comunicação rápida são muito grandes. Quando comecei a me interessar com política a sério, na década 70 do século passado, entendi que sempre que houvesse golpes de estado na África e América Latina, as prioridades eram a ocupação do palácio presidencial, do edifício da rádio e do estado maior general do exército. Aqui, via-se claramente que o “quarto poder”, era mais forte que o segundo e o terceiro (legislativo e judicial). A rádio aparecia como a melhor forma de chegar às pessoas, de lançar o discurso, influenciar o pensamento. Nos tempos da Internet 5G (nós em Moçambique ainda nos contentamos com 3G ou 3,5G por enquanto), é muito natural que os governos em tempos de crise, desliguem a Intenet para dificultar a comunicação entre as pessoas. Vimos isso em África, mas também na Europa e na Ásia.

 

O segundo desafio vem de outro tipo de abusadores das redes: pessoas que de forma deliberada, sentam-se e inventam os famosos “memes”. Estes, são pequeníssimos textos (chamemos-lhe textículos), alguns deles com um conteúdo humorístico muito apurado, mas infelizmente, quase sempre todos estão direccionados para expressar aquela repulsa social que existe ente grupos (ou para com grupos) e que de alguma maneira acabam reflectindo os problemas sociais em ebulição. São memes homofóbicos, contra as marhandzas, contra os Xingondos, os Makuas, os manhembanas, os machanganas e por aí, trazendo ao de cima aquilo que talvez devesse merecer lugar de prioridade nos nossos programas sociais.

 

O problema da comunicação rápida do tipo mensagem de WhatsApp é o efeito psicológico de “não pensar muito, não se bater a cabeça” que ela gera. Na verdade, a mensagem curta, com resposta rápida e muitas vezes lacónica do estilo “gosto”, actua no nosso cérebro com injecções abundantes de dopamina, própria para as acções de motivação/recompensa, igual ao cão que deve ser dado um biscoito cada vez que acerta no gesto num treino.

 

E isto, para além de estimular o prazer, vicia.

 

Assim, podem estar viciados de postar memes os que diariamente abusam das redes sociais, aproveitam-se da situação de calamidade pública em que nos encontramos no país e passam o tempo todo a enviar mensagens de perigos diversos, de incertezas científicas justificadas sobre a pandemia, de problemas técnicos com a(s) vacina(s) a serem desenvolvidas em diversos laboratórios no mundo  e de supostas mortes de personalidades públicas.

 

De repente, em pouco menos de um ano, habituais analfabetos técnicos e desléxicos titubeantes, têm um amplo domínio da microbiologia, da virologia, da saúde pública, do sequenciamento genético dos vírus e mutações, da farmacologia dos testes de vacinas e da estatística demográfica e multivariada. Este é o grande desafio das redes sociais neste momento da pandemia. Diariamente somos fustigados com GigaBytes de informação digitalizada, circulando de um grupo para o outro das redes e misturando a notícia, o alarmismo, o sensacionalismo e a morte.

 

Tenho dúvidas que esta mistura ajude-nos a combater o vírus. Mantenhamo-nos vigilantes contra esta doença da CoviD-19 que está sendo transformada, também, em doença do pânico.

 

Rogério José Uthui, 25 de Janeiro de 2021.

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