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“Por ocasião do 25 de Junho de 2024, data em que celebramos 49 anos de independência nacional, através do Decreto Presidencial, o Presidente da República distinguiu 1.093 cidadãos, com Medalha Veterano de Luta Armada de Libertação de Moçambique, Artes e Cultura e Ordem 25 de Junho de 2º grau. Nada contra, no entanto, penso que é imperioso distinguir outras camadas sociais, que não estão cobertas pela Luta de Libertação de Moçambique. São 49 anos que passaram e agradecemos pela libertação, continuarão a nos inspirar, mas devemos olhar para aqueles que hoje, nas escolas, hospitais, na administração pública, nas empresas e mesmo os donos das empresas, que contribuem para o engrandecimento de Moçambique, devem merecer distinção. Essas pessoas devem inspirar os mais novos e a distinção dessas figuras poderá trazer, na minha opinião, o nacionalismo que queremos na Juventude, o patriotismo que parece desfalecer.”

 

“O Nacionalismo é uma ideologia política, uma corrente de pensamento, que valoriza todas as características de uma Nação. Uma das formas pelas quais o nacionalismo se expressa é por meio do patriotismo, que envolve a utilização símbolos nacionais, a bandeira, o hino nacional, etc. Patriotismo é o sentimento de orgulho, amor e devoção à Pátria, aos seus símbolos e ao seu povo. É a razão do amor dos que querem servir o seu País e ser solidário com os seus compatriotas”.

 

In Google

 

“Alguns colegas me olhavam como se eu fosse um animal, ninguém me dava uma palavra, os professores pareciam que não estavam nem aí para mim, nem tiravam minhas dúvidas, mas eu me dediquei tanto que depois eles começaram a me procurar para lhes dar explicações e esclarecer suas perguntas”.

 

In: George Mclauren, primeiro negro na Universidade de Oklahoma em 1948

 

Hoje, quando queremos falar da independência de Moçambique e o sacrifício que alguns tiveram que fazer para libertar, não são poucos os jovens que não entendem isso. Alguns estudiosos dizem haver em África países que foram colonizados e que tiveram a sua independência sem precisarem da Luta de Libertação, porque o colonizador decidiu dar a independência. São casos de países colonizados pela Inglaterra, França e Itália, mas sabemos, hoje, o quanto custou a alguns países essa independência. É o caso de Burkina Faso, onde as empresas francesas domiciliadas naquele País pagavam seus impostos na França.

 

No caso de Portugal, as Nações Unidas tiveram que intervir sem sucesso. Na década sessenta, iniciam as guerras de libertação, em quase todas as suas colónias. Ainda assim, Portugal resistiu e não vergou, mantendo a sua mão de ferro na colonização, até que, em Abril de 1974, os capitães portugueses protagonizam a Revolução, que viria a depor o Governo do dia e, por via do novo Governo, iniciam as conversações para a independência das colónias. Devo frisar que as conversações com o Governo Português, resultante da Revolução de Abril, aconteceram numa altura em que muita gente tinha morrido, quer através de massacres, de confrontos e nas prisões do regime.

 

Isto aconteceu com o exemplo que trago, ao citar George Mclaurin que, em 1948, foi o primeiro negro a ser admitido na Universidade de Oklahoma, sendo que o tratamento a que foi sujeito pode considerar-se uma pequena amostra em relação aos países colonizados. Infelizmente, as nossas escolas deixaram de dar estas lições que, na minha opinião, não precisam ser curriculares. Trata-se de preparação do homem/mulher para a vida em sociedade. As consequências disso, na minha opinião, são visíveis, muitos jovens não têm noção sobre como os moçambicanos ganharam a bandeira e tiveram direito à nacionalidade e Bilhete de Identidade. Para muitos jovens, a nossa liberdade resulta de boa vontade do colonizador.

 

Quando os políticos falam e dizem que, em 1974, havia uma única Universidade em Moçambique, muitos pensam que é pura política. Hoje, Moçambique tem 23 instituições do ensino superior, sendo 11 do ensino público e 12 do ensino privado e o número de estudantes ascende a 28.000. Temos a classe docente de 1.389 a tempo inteiro em todas as instituições, segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Mas para a nossa desgraça colectiva, são parte destes 28.000 que difundem a ideia de que o País está parado e nada se faz.

 

Mas é preciso reconhecer que a não valorização das conquistas da nossa independência nacional começa em nós adultos, que não difundimos a nossa história colectiva, se não as conquistas pessoais que, muitas vezes, resultam de locupletamento indevido. É mais fácil exibir-se bens materiais do que exibir-se valores de honestidade, valores de trabalho árduo de solidariedade e de sacrifício pelo bem comum. Hoje, 49 anos depois da nossa independência nacional, quando queremos fazer referência do bem, fazemos recurso à Luta Armada de Libertação nacional, ou seja, depois da nossa independência nacional, não fizemos nada em que nos orgulharmos que seja aglutinador.

 

Depois da proclamação da nossa independência nacional, seguiram-se guerras fratricidas, com destaque à guerra dos 16 anos, a que denominamos a guerra pela Democracia e até temos um feriado a consagrar o seu fim, 04 de Outubro. Mas nessa data não se vê nada de especial, em termos de educação cívica, em termos de consciencialização dos jovens para a data. Vimos, isso sim, barracas abarrotadas de gente que pernoita lá, gente que, apesar de alguma escolaridade, se perguntares a razão da data, pura e simplesmente, diz disparates. Essa é a nossa realidade hoje.

 

Hoje, 2024, 49 anos depois da independência nacional, parece-me que o patriotismo é uma palavra oca e sem sentido para muitos, com excepção para os raros momentos em que a nossa seleção de futebol masculino entra em jogo e ganha. Aí sim, vemos a bandeira nacional a flutuar nos “chapas”, nas motas e bicicletas. Parece o único momento que nos une.

 

Precisamos de mudar este cenário. É importante que mulheres e homens moçambicanos tenham algo que os una, algo que torne as suas vidas conectadas com as vidas de outros moçambicanos, independentemente de onde quer que esteja. É importante que haja um plano comum de desenvolvimento, onde todos nos sentimos parte. Para além dos jovens nacionalistas do 25 de Setembro, precisamos de outros jovens nacionalistas, jovens que falam de desenvolvimento sem tabus e que não tenham medo de ofender quem quer que seja. Precisamos dos heróis de hoje.

 

Se repararam, no dia 25 de Junho de 2024, foram condecorados cidadãos pelo Chefe do Estado, mas quem são esses cidadãos? Claro que são os libertadores da pátria. 49 anos depois, não há gente para condecorar, as condecorações giram em torno do mesmo grupo social? Algo deve mudar e urge que mude.

 

Adelino Buque

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Tem sido assunto candente nos últimos dias, a avalanche crítica por parte de um segmento dos fazedores de difusores de opinião, o facto de alguns membros de organizações da sociedade civil figurarem nas listas de candidatos a deputados a Assembleia da República para a próxima legislatura.

 

Entre argumentos e contra-argumentos, vai se sedimentando uma tentativa de elitização da participação na política activa, uma posição e um espírito pouco dialogante e pouco tolerante por parte da ala castrense de fazedores da política de estômago. Na verdade, a luta para desacreditar as Organizações da Sociedade Civil em Moçambique não é de hoje. Há uma luta titânica para se provar que elas são organizações que defendem interesses externos e agendas ocultas.

 

As narrativas depreciadoras contra as organizações da sociedade civil, não são novas no país e são um fenómeno que tende a solidificar-se e a dominar certos debates de (des) informação. Elas consubstanciam-se na sua forma mais crua de fechamento do espaço cívico e de todas as liberdades a ele inerentes - (liberdade de associação, de expressão, de movimento, de imprensa, de religião, etc). Subentendo eu, que é um lugar propício para o florescimento de uma nova aurora social, política e intelectual fecunda. Fechar o espaço cívico é asfixiar e amputar o direito de sermos nós mesmos e realizar nossos desígnios enquanto cidadãos emprestados à polis.

 

Quando escolhas e opções político-partidárias diferentes tornam-se alvo de repúdio e combate, a nossa civilização decresce degraus qualitativos. O pensar diferente do ordinário e do comumente aceite, não deve ser visto como ultraje a ordem instituída, mas sim como mais um ingrediente para a evolução da interação humana dentro de um quadro social e político.

 

Tivemos num passado recente, alguns académicos e comentadores/ analistas políticos que decidiram emprestar seus conhecimentos à política activa, apresentando-se com cores e ideias de outros partidos e agremiações políticas, tentando dar seu contributo ao debate de ideias em prol de um Moçambique mais heterogéneo e pluralista. E se não constituiu problema o facto de académicos terem enveredado pelos pergaminhos da política, não deveria sê-lo agora; pelo menos não na dimensão que se pretende dar ao fenómeno que está ecoar a onda de activistas que decidiram emprestar seu saber e seu conhecimento a política activa.

 

Socorro-me da definição clássica de Aristóteles, segundo a qual o Homem é, por natureza, um animal político e social. Político porque vive inserido na polis e faz parte dos processos de discussão e tomada de decisão – passa de simples indivíduo e torna-se um cidadão, por inerência a vida dentro da polis. Social porque uma vez inserido numa sociedade, ele desenvolve laços naturais de socialiabilidade que por seu turno também a impingem a se distanciar da mesma. Mais tarde, esta dinâmica é mais desenvolvida e explicada por Immanuel Kant com a sua ideia de Insociável Sociabilidade - conceito que descreve a tensão entre o indivíduo e a sociedade. Por um lado, os seres humanos têm uma inclinação natural para a cooperação e a vida em comunidade. Por outro lado, também possuem características egoístas e competitivas. Essa tensão entre o desejo de se unir e a necessidade de se proteger cria um ambiente propício para o desenvolvimento cultural, tecnológico e social.

 

Com isto, quero deixar o meu entendimento e o meu contributo em torno do espaço político activo. Não nos enganemos nem tentemos equivocar-nos que o exercício político activo é apanágio de alguns, supostamente mais experimentados, capacitados e dotados. Tampouco, deixemos de sonhar a ideia de termos um debate político aberto, vibrante e profícuo, nem uma Assembleia da República mais pluralista, de discussão de ideias progressistas, e não apenas um lugar para apupos, assobios e palmas.

 

O espaço político pertence a todos nós sem excepção; abarca o activismo social e o exercício político activo; Ele existe em si, e é alimentado por indivíduos que se doam apaixonada ou desapaixonadamente, interessada ou desinteressadamente, e perseguem um ideal comum ou individual; uns por egoísmo e outros por altruísmo. É uma conquista secular para a humanidade e relativamente nova para nós enquanto país; deve ser cultivada, respeitada e preservada por todos e por cada um de nós.

 

Se académicos, podem emprestar-se a política e colocarem sua ciência a serviço da sociedade, entendo eu, que outros actores que possam agregar valor ao debate, a discussão e a construção de um Moçambique próspero e inclusivo sejam igualmente bem-vindos.

 

A política não pode nem deve ser elitista.

 

Disse!!!

 

Por: Hélio Guiliche

terça-feira, 11 junho 2024 13:35

MAGID OSMAN, 80 ANOS

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Abdul Magid Osman faz hoje 80 anos. É um dos nossos melhores. Não tivesse outros motivos para o celebrar, haveria de assacar as razões da amizade que nos ligam há anos. Mas acontece que o Magid é muito mais do que um amigo, é um dos moçambicanos exemplares, uma daquelas personagens que a nossa distracção ou a nossa abulia colectiva se atreve a abandonar no limbo do esquecimento ou do descaso. Parece uma patologia da nossa nacionalidade: esta reiterada arte de deslembrar.

 

Ele foi um desportista emérito, tanto no futebol de salão como (ou sobretudo) no atletismo. Excelente nos 110 metros barreiras. Ele foi dos primeiros e raros quadros deste País quando acedemos à Independência. Formara-se em Economia e Finanças no Instituto Superior de Economia em Lisboa. Ele foi o ministro das Finanças que fez a transição entre a I e a II República, entre a economia centralmente planificada para uma economia mais liberal (o que em termos políticos correspondeu a uma transição). Provavelmente, ainda estamos a viver as dores dessa transição imperfeita. Antes fora secretário de Estado e, subsequentemente, ministro dos Recursos Minerais. Ele foi um alto funcionário das Nações Unidas (PNUD).Ele criou o BCI. Ele foi administrador não executivo do Mercantile Bank na África do Sul. Ele criou a Épsilon. Ele foi um dos fundadores e presidente da Biofund. Ele foi Presidente do Conselho de Administração do Banco Único. Ele esteve no Conselho de Administração da GALP Energia. Ele é um dos mais reputados economistas moçambicanos. Ele é um intelectual público. Pensa políticas públicas. Um grande intelectual. Preocupado sempre com o nosso destino comum.

 

Reputo-o, sobretudo, nesta última qualidade. A de intelectual, a de pensador. Ele se indaga, ele nos indaga, ele se interpela, ele nos interpela. Conversar com o Magid – socorro-me a um famoso ensaísta recentemente perecido – é melhorar o silêncio. É fascinante escutá-lo. A sua conversa, o seu método, a sua pedagogia. Há interlocutores cuja conversa vale o nosso silêncio ou pelo menos a inteligência da nossa interposição. Magid é um deles. Um sábio.

 

Cultivo, cultivamos, com o Magid, uma bela e velha tertúlia. À nossa pândega (à falta de melhor termo) curamos chamar Vergelegen, um vinho de que somos adictos. O Deus Baco sabe da nossa folia e nos tem penitenciado da depressão, da prostração, da melancolia. Porque às vezes, muitas vezes, somos confrontados com a desesperança, a ausência de rumo, a ameaça do infuturo, a incerteza. Vivemos tempos aziagos.

 

Não me lembro de uma conversa, de um almoço, de um jantar onde o Magid não se ativesse ao País. A Pátria antes de tudo, a Pátria doí-lhe as entranhas, a Pátria é urgente e visceral nele, ele sofre com a Pátria, ele não vive para além da Pátria. Magid Osman é indefectivelmente patriota. Não é necessariamente ufano. É um crítico. Mas quem disse que praticar a contradita é divergir da Pátria? Penso, aliás, que a benquerença patriótica nos impele ao exercício  da réplica, da disjuntiva. Bem sei que há por aí muitos defenestradores do espírito da liberdade. Mas acredito, como o Magid, numa sociedade aberta. Bem sabemos nós dos seus inimigos...

 

Ao longo destas décadas de amizade aprendi a escutá-lo e a intentar a replicação. Também convergimos e muito. O Magid é um romântico, um pouco quixotesco talvez, alguém que acredita, um utópico. Um lírico, diria eu. Ele sempre encontra motivos para acreditar. Onde nos vemos impossibilidades, ele vislumbra um postigo. Certa vez, perante uma mensagem de fim de ano seca minha, ele reclamou que lhe faltava esperança. E acrescentou palavras que nos serviam de lenitivo.

 

Magid é também um amigo magnânimo. Ele cobre de generosidade os seus amigos.  Dá-se-nos em transbordante altruísmo. A amizade é uma insígnia para ele, uma divisa. Exerce-a com prodigalidade. Provavelmente, o mote da sua vida. Os amigos são a sua família. Trata-os como trata os seus. Um homem de uma grande humanidade. Um homem de uma grande bondade. Um ser superior. Um grande senhor. Um senhor nobre. Majestosamente nobre. Nobilíssimo!

 

Ele sabe reconhecer e reconhecer-se na inteligência e na cultura dos outros. Ele admira quem o é. A sua devoção ao conhecimento e à cultura é uma das marcas distintivas da sua personalidade. A argúcia na argumentação, a perspicácia na análise, a sagacidade no raciocínio. A abertura e o espírito livre. A humildade e a sapiência. Estas são as epígrafes de Abdul Magid Osman. Tudo isto com afeição. Tudo isto com dilecção.

 

Devo-lhe uma amizade irrepreensível, uma comunhão de ideias e de sonhos, uma solidariedade sem limites. Devo-lhe muito do que sou. Devo-lhe eu, devemo-lo todos aqueles que com ele temos tido a felicidade de conviver e de fazer parte do seu círculo de amigos. Somos, também, por isso, a sua família.

 

Nunca ouvi uma palavra de censura ao amigo Magid. Ouço palavras em seu abono: aclamação, aplauso, reconhecimento. É o que oiço dos seus amigos. Isto significa que não haja quem se amofine? Haverá, por certo. É, no entanto, daquelas personagens que nos lembram os antigos: digno, elegante, justo. Decente. Um tipo de alta categoria, de uma estirpe rara. Magid é de uma correcção, de uma honestidade, de uma lealdade ímpares. É um homem bom. Probo. E isso já não se diz a muitos ou com esta intelecção.

 

Há anos que o desafio a escrever. O Magid tem um pensamento fino, uma interlocução viva e inteligente, com ironia e sem soberba. Tem uma trajectória belíssima, tem mundo. Ele está bem à conversa com um estadista ou com alguém sem pergaminhos. Vi muita gente humilde devotar-lhe amizade e anuir em seu favor. Reitero: ele é um ser único. Um livro do Magid poderia ser um testemunho capital sobre o nosso tempo. Sobre o destino de Moçambique e sobre o estado do Mundo. 

 

O País deve-lhe muito. Como economista. Como homem público. Como moçambicano preocupado com o destino dos outros moçambicanos, de todos os moçambicanos. Como empreendedor. Como pensador. Como intelectual. O País deve-lhe uma homenagem, uma honraria – prerrogativa para os melhores. Essa distinção é uma franquia que nos fica bem. Temos que aprender a fazê-lo. Longe da contenda política. A nossa sociedade não se pode resumir à altercação entre partidos ou ao monopólio daqueles que ditam a condição dos paladinos da Pátria.

 

Temos que ser audazes e poder dizer sem medo, ousar proclamar, apregoar ou conclamar os nossos melhores. Abdul Magid Osman é um desses moçambicanos intrépidos, personagem ou intérprete do devir moçambicano, protagonista do nosso tempo, cuja vida e exemplo põem-no numa craveira que faz dele inspiração e bitola como cidadão distintíssimo. Aqui lhe deixo, neste dia 11 de Junho, dos seus 80 anos, o meu breve tributo, este louvor canhestro de quem se reconhece na láurea da sua amizade.

 

Elciego, País Basco, 11 de Junho de 2024

terça-feira, 04 junho 2024 11:21

ZAIDA: TSOVA, KURUFELA!

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Nasceu Zaida Mucavel, atingiu a imortalidade como Zaida Chongo. Ou Lhongo, como alguns grafam o apelido que lhe advém do casamento com Carlos Chongo. Nascera a 17 de Junho de 1970 e o seu ocaso aconteceria a 4 de Junho de 2004. Fez a passagem com a idade de Cristo e deixou o seu rastilho de génio no mesmo páramo que a recebeu prematuramente. Mais do que um nome, é um mito. Uma das lendas que fazem a nossa pobre mitologia. Recordo-a sobretudo como a mais iconoclasta das cantoras moçambicanas. A sua rebeldia encantava-me. Ela tinha mandiga no corpo e naquela voz maviosa. Vê-la no palco, nas suas coreografias provocadoras, era fascinante. Era assombroso. Aquela sua figura indómita, aquela sua paixão revolucionária, aquela sua subversão. Era uma rebelde com causas. Um talento espantoso. Uma artista sublime. Um daqueles raros cometas.

 

Zaida cantava o quotidiano. O dia a dia. Os problemas aparentemente corriqueiros dos seus iguais. Era despretensiosa e, no entanto, libertária. Era uma mulher livre que lutava para nos libertar. De quê? Dos  preconceitos. Perseguia e lutava pelos direitos das mulheres. A sua crítica social era acutilante. Provavelmente, o que ela cantou persista ainda hoje e, se calhar, com maior expressão. Vivemos mergulhados em contradições insanáveis, a nossa sociedade está cada vez mais enferma. Zaida é, por isso, actual, terrivelmente actual. Permanece cortantemente actual. A sua crítica severa ressoa. Era um verdadeiro tratado de sociologia. Escrutinava as tensões sociais, as relações problemáticas na sociedade. As relações sociais. Cantou o amor. Cantou a mulher. Cantou os homens. Cantou as anomias da sociedade. As nossas complicações, os nossos distúrbios, os nossos tumultos.

 

Iniciara como bailarina no grupo de Carlos Chongo. Mesmo quando se transfigurou em ícone da música, não deixou de encantar com a sua ginga, a sua candura na dança e o seu dom provocador. Tinha panache. Era elegante. Era bonita. Tinha um sorriso bonito. Não era exibicionista, expressava a sua arte, o seu génio. Das parcas biografias sobre Zaida reza a história que ela filha da vasta prole de Amélia Cossa e Jaime Mucavel. O seu nome de baptismo era por isso Zaida Jaime Mucavel. Nascera em Boane (Mahubu) a 17 de Junho de 1970. O pai tocava xizambi, um instrumento tradicional, em forma de arco. Dos filhos de Amélia e Jaime, apenas Zaida cantou e dançou.

 

Zaida foi muito popular. A sua morte e o seu funeral foram momentos de grande comoção nas ruas. Só quase 20 anos depois um outro músico, também extremamente popular, iria ter do público semelhante afectividade. Nós amámos a Zaida, nós admirámos a Zaida, nós queríamos a Zaida. Como nenhuma outra cantora. Lembro-me de ver os populares a cantarem à passagem do seu féretro. De ouvir a sua voz prolongada na dor e no desespero de muitos. Muitos que eram simples, iguais. Deixaria para o futuro: “Zabelane”, “N´dzuti”, “Sibô”, “Toma que te dou”, “Drenagem”, “Alfândega”, “Ma take away” ou “Sifa Sihlile”. Não foi consensual. Os geniais nunca o são. A arte divide. A grande arte não busca a mesma avença de todos. A grande arte contesta, duvida, indaga, interroga. Lembro que um grande poeta meu amigo achava-a um kitsch, algo ridícula, a roçar a libertinagem. Eu discordava dele. Para mim, Zaida era genial, tinha o dom, o engenho, a aptidão. Era uma rebelde, uma revolucionária.

 

Tinha uma candura, era tão catita a cantar, o seu sorriso quase infantil, algo maroto, algo inocente, o seu encanto e a sua desenvoltura, o seu estilo despojado, a sua doçura irreverente. Estava à frente do tempo, muito à frente. Cantou a nossa tragédia, a tragédia dos moçambicanos e a sua morte não foi o desmentido da mesma. Foi uma espécie de ironia trágica que cobriu o seu destino. O reiterar desse fatalismo. Os deuses são caprichosos.

 

Passam hoje 20 anos que ela que se apartou dos vivos. Tudo nela foi precoce: o talento, o palco, o brilho, o casamento. O sucesso. O apogeu. O ocaso. Eclipsou com a idade de Cristo e subscreveu provavelmente um aforismo grego. Os deuses amam os que partem cedo. Chamaram-na cedo demais. Queriam-na por perto. Provavelmente para ter o privilégio da sua playlist: de “Quiribone” a “Sibo” passando por “Drenagem” ou  “Toma que te dou”. Zaida brilha ainda hoje no firmamento, naquele páramo para o qual a levaram.

 

Zaida, tsova, kurufela!

 

Lisboa, 4 de Junho de 2024

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Depois das celebrações dos 50 anos do assassinato e desta nova Páscoa de Amílcar Cabral, abraçamos, com a mesma êxtase e fraternidade, o seu centenário natalício. Amílcar Cabral, possivelmente um dos mais celebrados líderes das lutas pela libertação e independência dos países africanos de língua portuguesa, nos convoca, serenos e incertos, em seu centenário, imbuídos desses nobres ideais e do sentimento patriótico de servir o povo, de lutar pela igualdade e por um amanhã melhor, sem ambiguidades. Esse era o cerne de seu pensamento e pelo qual ele dedicou sua vida e derramou seu sangue.

 

Reverenciado, enaltecido e glorificado como um dos mais carismáticos líderes da sua época, Amílcar Cabral era confesso admirador e amigo de Eduardo Mondlane, nosso herói nacional, muito embora, nem sempre, estivessem de acordo sobre as estratégias de luta e fundamentos da luta. O importante é que, após essa longa jornada, Eduardo Mondlane conseguiu retornar à sua aldeia como um combatente pela libertação e pelo progresso de seu povo, enriquecido pelas experiências muitas vezes perturbadoras do mundo contemporâneo. Ele ofereceu um exemplo frutífero, enfrentando todas as dificuldades, resistindo às tentações e rompendo com os compromissos de alienação cultural e política, ao mesmo tempo em que se reconectou com suas raízes, identificou-se com seu povo e dedicou-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram, afirmava.

 

Amílcar Cabral foi um dos maiores e mais críticos pensadores do século XX, de acordo com muitas correntes de pensamento e escritos. Um pouco por esta razão, ele continua presente nas cátedras, citado em diferente bibliografia e eternizado em telas. O seu pensamento continua subjacente em duas correntes principais, sendo a primeira a que se consubstancia no facto de, através da sua prática e acção revolucionárias ter dado um passo significativo no sentido de renunciar à condição de subalternidade e de dependência a que o colonialismo português o tinha votado, a ele e ao seu povo, enquanto colonizados.

 

A segunda corrente, eventualmente, a mais estudada pela academia mundial era o seu pensamento crítico, ao não se ter conformado com alguns dos paradigmas do pensamento social vigentes na época, inclusive os das ciências sociais. Estas reflexões de Amílcar, que se distanciaram das lideranças subsequentes, pós-independência, encontram expressão nos dois volumes das suas obras, nomeadamente “A Arma da Teoria”, de 1980, para o primeiro, e “A Pratica Revolucionaria: Unidade E Luta II”, de 1977, para o segundo.

 

Para alguém que não teve a oportunidade de o conhecer fisicamente, e sem nenhuma aparição em Moçambique, diferente de Julius Nyerere, Agostinho Neto, Keneth Kaunda, todos eles já centenários, não o pode conceber dissociado e distanciado de Eduardo Mondlane, Paulo Freire e tantos outros. Num eloquente discurso na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos da América, onde Mondlane se formou e foi homenageado, Amílcar afirmou “[…] quisemos demonstrar a nossa amizade militante e solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo […]”

 

Faz, pois, sentido que os nossos países e, sobretudo, os jovens retomem a estes testemunhos, desse tempo, cujos pensamentos continuam presentes. É fundamental revisitar as personagens que fizeram e fazem nossa história, sociedade e cultura e, principalmente, os cultores que assumiram protagonismo e falaram em nome de tantas gerações.

 

Defendo, vezes sem conta, que estes tempos exigem que se faça algo contra o esquecimento, contra o vexame do alheamento e, sobretudo, contra a indignidade do desconhecimento e essa amnésia colectiva que aos poucos se apodera de todos nós.

 

O centenário de Amílcar Cabral representa uma extraordinária oportunidade para revisitarmos seu caminho, explorando seus pensamentos, atitudes, valores, aspirações e inquietações. Desde sua participação na Casa dos Estudantes do Império até a clandestinidade na metrópole, passando pelas associações de estudantes africanos e enfrentando prisões arbitrárias e massacres, devemos reverenciar os jovens que, diante de todos os perigos, expressaram e demonstraram com bravura um amor ilimitado e um dever patriótico incomum para com Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe.

 

Amílcar Cabral, esse engenheiro Agrónomo, líder da revolução da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, continua tão presente e consequente pelo seu pensamento político e libertador, sua visão cultural e pelo pragmatismo com o qual conduziu os destinos da luta de libertação nacional, mas, também, pela utopia do seu sonho e querer. Essa utopia que o posicionou como exímio conhecedor e detentor de reflexões políticas e revolucionárias muito para além do seu tempo e espaço. Permanecem célebres suas análises e memórias sobre a essência desse colonialismo, a forma inglória com não foi entendido o clamor dos povos e, sobretudo, a maneira como se oprimiu povos africanos e se estendeu essas práticas fascistas para o seu próprio interior. Por essa razão, as recentes celebrações do 25 de Abril, 50 anos da revolução dos cravos, simbolizam e seriam consequência directa das próprias lutas de libertação nas colónias do ultramar.

 

Amílcar Cabral afirmava que a política é repleta de contradições, destacando a necessidade de diálogo aberto e discussão franca sobre questões que conduzem às melhores soluções para o futuro. Para ele, a política também era um exercício de diálogo contínuo. Essa contradição intrínseca encerrava a essência do diálogo e justificava a luta pela dignidade de seu povo, pelo resgate de seus valores morais e pelos direitos fundamentais e pela paz para os povos africanos.

 

Amílcar Cabral considerava que a essência de sua luta residia na busca pela possibilidade e realização da construção de pontes e consensos. Por isso, participou em sessões das Nações Unidas, visitou universidades, corporizou a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) e criou as primeiras assembleias populares nas zonas libertadas. Sob sua liderança, mais de 80% da Guiné-Bissau se libertou, até ao começo dos anos 70. A luta de libertação, afirmava, só poderia ser pela dignidade dos povos do seu país, a liberdade e a possibilidade de poderem usufruir dos mesmos direitos e recursos.

 

Continua célebre a sua afirmação segundo a qual “[…] a história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas, ensina-nos, igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir, definitivamente, a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada […]”. Portanto, apelar à indestrutível resistência cultural, assumiria uma das formas de contestar, com vigor, o domínio estrangeiro.

 

Para Amílcar Cabral, e por vezes em rota de colisão com seus próprios camaradas, os movimentos de libertação deveriam saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão, a nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação era, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.

 

À semelhança de Frantz Fanon, autor da célebre obra “Os Condenados da Terra”, de 1961, o colonialismo foi um sistema que construiu e perpetuou estereótipos, destruindo valores e moral. Acredito que Amílcar estudou Fanon e Albert Memmi, manifestando em diferentes discursos uma grande preocupação e desilusão, evidenciadas pelas várias experiências de governação em África após 1960. Dizia Cabral que após a independência, tudo deveria ser feito para que as pessoas passassem a viver melhor que antes, que essa era a forma de legitimação desse exercício e sacrifício libertador. Se depois das independências as pessoas passassem a viver pior, então, não valia a pena ter lutado pela independência.

 

Amílcar Cabral, descrito por Paulo Freire como um pedagogo do anticolonialismo, defendia três eixos fundamentais na governança dos países africanos após as independências conquistadas por revolucionários: a necessidade de governar com decência, honestidade e patriotismo. Estas são questões de grande relevância na contemporaneidade.

 

Nesta breve e desproporcional retoma ao pensamento de Cabral, resgatando sua memória e dignidade, amor pelo continente, esquartejando os tremendos desafios e a complexidade dos tempos, batemos de cara com as vicissitudes, experiências das lutas pela emancipação, equações para o desenvolvimento económico, afirmação da identidade, congregação dos ideais de nação e institucionalização de novas regras de convivência social, e damos conta que Cabral esta desaparecido. Precisa de ser resgatado. Nem que seja por um dia.

 

A gestão dos novos poderes políticos, permaneceu como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinido por lógicas e soluções reconciliatórias. Entre a misoginia, os sonhos políticos e as virgindades discursivas até as ambiguidades, assimetrias e desigualdades, esses países foram construídos primeiro como estados socialistas, depois como sociais-democracias, mas logo foram forçados a converter-se em sistemas pluralistas, multipartidários e de economia aberta.

 

As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconómicas e institucionais e as clivagens culturais e políticas locais, ditam os vectores e modelos macroeconómicos de desenvolvimento que, em larga medida, servem os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconómica e tecnológica.

 

Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane poderiam não ter pensado no antídoto para estas situações, nem mesmo teriam respostas para fazer face a ferocidade do capitalismo global, do neoliberalismo, onde os países, como o nosso, se apresentam desprovidos desses recursos tecnológico e científico, com as instituições fragilizadas, e que se tornam presas fáceis. Os condicionalismos fazem com que as lideranças não se assumam e que os destinos nacionalistas permaneçam sonhos adiados. Agora, mudamos os termos e já são outros conceitos de endogeneidade, desenvolvimento tecnológico, digital e ambiental.

 

Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como Estados de descontinuidades e processos políticos, económicos, sociais e culturais inacabados. Os líderes de ontem nem sequer acreditam que viramos palco dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação, gerando tensões, conflitos sociais e terrorismo.

 

Cabral, esse multilateralista nato, não acreditaria, nem no pior dos seus sonhos, que as respostas de ontem continuam perguntas, ainda, de hoje, e que as incertezas se perderam com o tempo. Amílcar e Mondlane deitariam lágrimas de tristeza constatando que 50 anos depois do movimento das independências, estas terras continuam convivendo com graves crises económicas e sociais, políticas e militares. Esta população de 24 anos ou menos, procura pelos seus próprios ventos de mudança, para desfrutar do potencial e das oportunidades. “Amo Africa e quero um dia regressar”. 

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