Contextualização
Há muitos anos que o exercício da cidadania em Moçambique é ofuscado e condicionado pelo medo que os cidadãos sentem por temerem represálias de diversa ordem, quais sejam: perda de emprego, marginalização, discriminação, intimidação, ameaças, ódio, agressão física, desaparecimento e até assassinatos, que é a situação mais grave, fundamentalmente praticado pelos chamados “Esquadrões da Morte”, “Milicianos digitais”, alguns governantes e/ou dirigentes, algumas elites do Partido no Poder, Polícia da República de Moçambique (PRM), Forças de Defesa e Segurança (FDS). Em certas situações, o medo é alimentado e espalhado através do Ministério Público e/ou Procuradoria-Geral da República e até mesmo pelos Tribunais por via de processos-crimes infundados e fabricados.
Do ponto de vista jurídico constitucional, Moçambique é um Estado de Direito Democrático e de justiça social. No mesmo sentido, a Constituição da República de Moçambique (CRM) define como objectivos fundamentais do Estado, de entre outros, os seguintes: “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”; “o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual”; “a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz”; consagrados nas alíneas c), e), f) e g) do artigo 11 da Constituição da República, respectivamente.
Curiosa e estranhamente, alguns órgãos do Poder Público têm ignorado o formalismo constitucional que consagra o exercício da cidadania, da democracia, dos direitos e liberdades fundamentais como forma de ser, estar e fazer política e cultura de desenvolvimento social e económico de Moçambique. O estabelecimento do medo e terror no seio da população tornou-se o maior trunfo dos dirigentes para se manterem no poder, a todo o custo, mesmo sacrificando vidas de cidadãos inocentes e indefesos que recorrem à inteligência e à lei para que prevaleça a justiça no País.
Há várias evidências e de natureza grave de que a PRM tem sido campeã de violação dos direitos humanos e de abuso de autoridade, com algum destaque para o Serviço Nacional de Investigação Criminal – SERNIC, que, segundo denúncias na imprensa e mesmo nos relatórios oficiais dos órgãos de justiça, até chega a assassinar e raptar cidadãos num esquema de negócios ilegais, qualificando-se como autêntico agente do crime organizado. Outrossim, polícias do Grupo de Operações Especiais (GOE), da Força de Intervenção Rápida (FIR) ou Unidade de Intervenção Rápida (UIR), unidade anti-motim da PRM, também actuam contra os direitos humanos e semeiam medo no povo.
Por sua vez, as Forças de Defesa e Segurança (FDS), não obstante o seu acto patriótico relativamente à guerra em Cabo Delgado contra o terrorismo, têm sido denunciadas como agentes da violação de direitos humanos, matando indiscriminadamente e saqueando os seus bens da população, para além de os intimidar e ameaçar. Aliás, várias organizações da sociedade civil, incluindo a Amnistia Internacional, assim como a imprensa nacional e internacional, chegaram a denunciar e reportar informações que consubstanciam violação de direitos humanos por parte das FDS em Cabo Delgado, no contexto da guerra contra o terrorismo.
Algumas evidências de institucionalização do medo no País
O recente assassinato bárbaro do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, mandatário do Partido PODEMOS, na cidade de Maputo, no contexto das correntes eleições gerais, atendendo às circunstâncias e modus operandi, é mais uma evidência inequívoca, não só da prática da institucionalização do medo em Moçambique como uma forma de gestão do Poder, mas também da materialização da licença para matar a cidadania, a democracia e o Estado de Direito.
Ainda no contexto das eleições, importa aqui lembrar que foi a força policial (GOE) que, uma semana antes das eleições gerais de 15 de Outubro de 2019, assassinou o activista social, defensor dos direitos humanos e pai de família, Anastácio Matavel, no dia 07 de Outubro de 2019, em plena luz do dia, na via pública, na Cidade de Xai-Xai, na Província de Gaza.
Na verdade, do ano 2015 até ao presente momento houve significativos assassinatos, agressões e outros tipos de violações graves contra os cidadãos no pleno exercício da cidadania em defesa do Estado de Direito Democrático, da legalidade, do interesse público, dos direitos humanos e da justiça. Essas violações tiveram lugar, maioritariamente, num contexto de forte crítica ao governo do dia seja pela prática da corrupção, abuso de poder, má gestão do bem público, inércia dos órgãos de justiça, má governação, fraude eleitoral a favor do partido no poder e excessiva interferência do poder executivo sobre o poder legislativo e judicial.
Aliás, vale lembrar que, nos últimos 10 anos, os cidadãos foram praticamente proibidos, arbitrariamente, de exercer o direito à liberdade de manifestação e com o beneplácito dos órgãos da justiça, mormente a Procuradoria-Geral da República que nunca tomou qualquer posição, enquanto garante da legalidade, para permitir o exercício da cidadania e da democracia, pela efectivação do direito à liberdade de manifestação nos termos da lei, por um lado, e para garantir a responsabilização dos que violam o direito à liberdade de manifestação, por outro.
Igualmente, os cidadãos têm sido vítimas de violação dos seus direitos humanos tão somente pelo exercício da liberdade de expressão, que na prática ficou excessivamente limitada quando se trata de criticar a má gestão do Estado, a má governação, o abuso de poder, a corrupção e violação dos direitos humanos.
Mais do que isso, é que o exercício da liberdade de imprensa e a liberdade de associação, nos termos constitucionalmente consagrados, não escapa a essa violação, limitação infundada e intimidação de quem exerce essas liberdades.
Os jornalistas, órgãos de comunicação social independentes e organizações da sociedade civil são muitas vezes perseguidos pelo regime do dia e muitas vezes silenciados sem qualquer base legal. Até há casos flagrantes de recurso à reforma legal para intimidar ou silenciar os jornalistas, activistas sociais e organizações da sociedade civil. São exemplos disso: a reforma da legislação sobre o branqueamento de capitais e combate ao terrorismo, a reforma do Código Penal e do Código do Processo Penal, a recente reforma da lei eleitoral, que até intimida e marginaliza as atribuições e competências dos juízes e tribunais eleitorais do Distrito; a forma maquiavélica e arbitrária com que se pretendia levar a cabo a revisão da Lei n.º 8/91 de 16 de Julho (Lei das Associações) e do processo da revisão da lei de imprensa (lei nº18/91, de 10 de Agosto), cuja denominação se pretende Lei da Comunicação Social, que está a ser demasiado criticado principalmente pelos próprios profissionais da comunicação social e pela sociedade civil que se sentem marginalizados e traídos pelo conteúdo da proposta de revisão da lei de imprensa, que até procura criminalizar a actividade jornalística como forma de intimidar a liberdade de imprensa.
Muitas das violações contra os críticos do sistema no poder, contra os activistas sociais, jornalistas, órgãos de comunicação social, organizações da sociedade civil e académicos, etc., têm lugar num contexto de forte prática de discurso de ódio contra os mesmos, pelos chamados “Lambe-botas do Governo e Milicianos Digitais”. O discurso de ódio é feito com recurso às redes sociais e imprensa pública, que serve mais ao regime do dia ao invés do interesse público.
Importa notar que hoje, 21 de Outubro de 2024, as crianças não vão à escola por ser dia de “terror” contra o exercício do direito à liberdade de manifestação tanto pelo assassinato do Advogado Elvino Dias e do mandatário do Partido Podemos, Paulo Guambe, como pelas denúncias de fraude eleitoral. Nesse prisma, as crianças já sabem que a PRM e sua UIR e as FDS vão violentar os manifestantes, prendê-los arbitrariamente e até matar, se for o caso. Trata-se, em bom rigor, de um processo de interiorização do medo e terror em tenra idade.
Conclusões
São significativas as evidências e sinais do processo e prática da institucionalização do medo sobre o povo moçambicano, como forma de gestão do Estado. As maiores vítimas são os que pensam diferente e/ou contrariamente ao regime no poder,
A arbitrariedade, o abuso de poder e “gangsterismo Estadual”, muitas vezes com recurso ilegal à força policial e militar, são os mecanismos ou práticas mais usadas para a institucionalização do medo, com a apatia dos órgãos de justiça e de protecção dos direitos humanos, que são fortemente influenciadas pelo poder executivo.
O País só poderá desenvolver, conhecer a paz, boa governação e materialização dos direitos humanos com a eliminação da barreira da instituição do medo que é praticada pelos três poderes do Estado, com destaque para o poder executivo que, actualmente, controla os outros poderes e não é responsabilizado pelas atrocidades e destruição da estabilidade social e sonhos dos moçambicanos de viverem numa sociedade de pluralismo, tolerância, bem-estar, de cultura da paz e do respeito pelos direitos humanos, independentemente da opinião de cada um.
Para o efeito, compete ao Governo assegurar a administração do País, garantir a integridade territorial, velar pela ordem e pela segurança e estabilidade dos cidadãos, promover o desenvolvimento económico, implementar a acção social do Estado, desenvolver e consolidar a legalidade e realizar a política externa do País. É o que dispõe o n.º 1 do artigo 202 da CRM.
A função constitucional da PRM é a de garantir a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 253 da CRM.
O artigo 261 da CRM determina o seguinte: “A política de defesa e segurança do Estado visa defender a independência nacional, preservar a soberania e integridade do País e garantir o funcionamento normal das instituições e a segurança dos cidadãos contra qualquer agressão armada.”
Por sua vez, o n.º 1, do artigo 262 da CRM estabelece que: “As forças de defesa e os serviços de segurança subordinam-se à política nacional de defesa e segurança e devem fidelidade à Constituição e à Nação.” No mesmo sentido, o n.º 2 deste mesmo artigo dispõe que: “O juramento dos membros das forças de defesa e dos serviços de segurança do Estado estabelece o dever de respeitar a Constituição, defender as instituições e servir o povo.”
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
O Eco da tua voz grafa a verdade de uma biografia que é autobiográfica. Estes volumes são o testamento de que os princípios fundacionais de Moçambique, a despeito dos contextos revolucionários nacionalista, pan-africanista e internacionalista da sua luta pela independência, consagraram centralidade política à mulher e ao homem.
A harmonia entre Janet e Mondlane, retractada nestes textos, elucida na plenitude que a ética intelectual e a liderança política de Mondlane foram moldadas, também, pela parceria com Janet, seu maior amor. O provérbio africano, que diz “Numa família africana, o homem é a cabeça e a mulher é o pescoço”, resume bem essa dinâmica: Eduardo Mondlane liderava, mas Janet, com sua força intelectual, ajudava a direccionar o movimento e universalizava a causa.
Podemos traçar paralelos entre o relacionamento de Janet e Eduardo Mondlane e a emblemática relação de permeio, entre Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Ambos não viveram, apenas, histórias de amor, mas, também, protagonizaram profundas alianças intelectuais que deixaram marcas no curso da história.
Em suas famosas correspondências, Beauvoir e Sartre revelaram como seu vínculo transcendia o romance convencional para alcançar as esferas da reflexão filosófica e do compromisso político. Eram parceiros de vida, porém, acima de tudo, aliados na luta por causas sociais que exigiam coragem, integridade e uma constante redefinição do papel do indivíduo no mundo.
De maneira semelhante, Janet e Eduardo Mondlane estabeleceram essa parceria que ia muito além do romance e laços matrimoniais. Eles foram companheiros de ideias, de luta e de visão revolucionária e, até, messiânica. Janet, ao lado de Eduardo, tornou-se uma figura essencial no movimento pela libertação e independência de Moçambique e, mais especificamente, na emancipação das mulheres moçambicanas dentro deste contexto. Sua experiência cristalizava a centralidade da mulher na luta armada e a relevância dessa paridade.
Diferente de Simone de Beauvoir, que, apesar das pressões da sociedade, teve aceitação nos círculos intelectuais de Paris, França, Janet Mondlane enfrentou desafios bem maiores e mais complexos e subjectivos. Ela se inseriu em um movimento onde a maioria dos combatentes era iletrada e nutria uma visão clara e compreensível do “branco” como o inimigo a ser combatido. Num contexto de colonialismo e opressão racial, Janet, sendo uma mulher branca e estrangeira, representava, aos olhos de muitos, uma figura difícil de se assimilar no processo de luta de libertação nacional. O dilema de uma outra luta , dentro da esfera da própria libertação.
Essa resistência se manifestou, claramente, nos eventos de 1968, no Instituto Moçambicano, onde a insatisfação e o desconforto, com a liderança de Janet, transbordaram. Esses acontecimentos não eram, apenas, uma reacção a questões administrativas, mas, também, um reflexo desse sentimento latente de desconfiança e de rejeição à ideia de que uma mulher branca pudesse ocupar um papel central numa luta anticolonial. Entretanto, ao longo do tempo, Janet provou, por meio de suas acções, dedicação e inteligência, que seu compromisso era genuíno e profundo.
A relação da Janet e Eduardo Mondlane constitui a dimensão romântica da fundação da ainda complexa história revolucionária moçambicana. A ascensão de Eduardo Mondlane ao cargo de Presidente da FRELIMO, nas eleições de 25 de Junho de 1962, em Dar es Salaam, Tanzânia, marca o início de sua experiência maior na história internacional da época, cujo florescimento intelectual de sua personalidade acontece, desde Agosto de 1951, em confidencialidade de consciência com a Janet Era, nos Estados Unidos da América.
Essa confidencialidade chega-nos de sua carta na qual Mondlane partilha com a Janet, em Setembro de 1951, a sua consciência intelectual sobre a história política, económica e social de Moçambique. Lê-se:
[…] não é preciso obrigar uma pessoa esfomeada a [ir] trabalhar em qualquer sítio para ganhar ordenado. Uma pessoa esfomeada trabalhará até no inferno […] se souber que, se trabalhar o suficiente, terá algo para comer. É uma questão de escolha entre a fome e a degradação. Penso que todos os seres humanos normais iriam escolher a última.[1]
Como companheira romântica e intelectual de Eduardo Mondlane, e por esta presença na história da fundação da FRELIMO, é justo reconhecer que esta presença da Janet Mondlane, senão ela mesma, em abono da verdade histórica, é a fundadora do movimento político emancipacional feminista moçambicano. O Instituto Moçambicano, por ela fundado e dirigido, em 1963, é a ilustração histórica da sua presença fundacional, não sendo por acaso que tenha sido sob a presidência de Eduardo Mondlane que o discurso da emancipação das mulheres, de início, caracterizou a ideologia da libertação da FRELIMO.
Com efeito, Janet pode ter interiorizado do pensamento de John Stuart Mill, que exercia grande influência no contexto intelectual do período. Na verdade, a preocupação de John Stuart Mill com a justiça social inspirou movimentos progressistas e políticas voltadas para a distribuição de rendimentos e criação de oportunidades, como o 'welfare state', reflectindo-se também nas suas acções e visão no contexto moçambicano. A partir do seu livro ‘Sobre a Liberdade’, se entende a apologia ao tratamento da mulher como pessoa com todos os direitos.
Ao encabeçar todo este processo biográfico e autobiográfico, Janet mostra-se como a médium que, operando através das cartas da vida de Eduardo Mondlane e de ambos como companheiros, retorna o seu espírito, sob a metáfora de “Eco da tua voz”. Esta especialidade mediúnica da Janet Mondlane, a história reservou, na ausência de Eduardo Mondlane, unicamente a ela, não pela competência adquirida de sua biógrafa-mor, mas sim por ela ser a única pessoa em que o espírito de Eduardo Mondlane se corporificou e se apossou.
Por essa biografia que, em essência, é uma autobiografia, Janet Mondlane, muito para além de cumprir uma vontade, ela exerce uma mediação, que é uma dialéctica de amor e possessão pelo homem e sua história fundacional de um povo e nação. Aqui vale a pena ler a forma como ela epitomiza Eduardo Mondlane:
A existência de Mondlane foi um milagre porque, sob o ponto de vista lógico, não se compreende como é que um pequeno rapaz africano nascido com uma herança de opressão e de pobreza podia estar tão determinado a ter uma formação académica e, posteriormente, libertar o seu povo ao ponto de dar a sua vida por esse povo[2].
Janet documentou, ainda, que foi a personalidade extraordinária ou “especial” de Mondlane a condição que tornou possível a sua apropriação ou, melhor, adopção inicial pelo Rev. Sr. André Clerc e depois institucional pela Missão Suíça na África Austral, como a pessoa identificada para realizar a missão de formação de uma liderança africana no contexto histórico mundial da época de meados do século XX. Dentre várias menções, citemos as seguintes:
Quando mais novo, sempre demonstrou um verdadeiro espírito de abnegação. […] Mondlane é uma pessoa muito dotada. Embora tenha iniciado a vida estudantil tarde e em circunstâncias muito difíceis […].
[…]. A minha opinião sincera é que estou a dar apoio a uma das pessoas mais dotadas e capazes que podemos encontrar aqui.
Se as circunstâncias e Deus o permitirem, a minha intenção é ver Mondlane formado, e bem formado, para ser um Líder da Juventude para todos os jovens de Lourenço Marques, dando início a uma coisa noiva que nós, como missionários, não podemos fazer. […] Gostaria de acrescentar que EM conquistou a confiança das principais missões que aqui trabalham[3].
Em carta aos amigos, escrita pelo casal Darrel e Mildred Randall, depois de Eduardo Mondlane sair da Wits University e nos esforços coordenados para a continuação de seus estudos universitários nos EUA, lê-se:
Não podemos prever o que Eduardo Mondlane virá a ser no futuro. Mas estamos convictos de que Deus lhe deu uma maior capacidade intelectual do que aos outros jovens africanos que conhecemos, e África precisa imenso de líderes do seu calibre[4].
Inquestionável destacar o papel fundamental de Janet Mondlane como uma parceira tanto emocional quanto intelectual de Eduardo Mondlane. Ela não foi apenas um apoio silencioso para Eduardo; sua contribuição foi tangível, directa e decisiva na história revolucionária de Moçambique. É por esse motivo que, dentre as figuras históricas que podem ser consideradas Mães da Nação moçambicana – como Josina Machel, Marcelina Chissano, Graça Machel, Marina Pachinuapa, Celina Simango, entre outras – Janet Mondlane merece igual destaque e reconhecimento. Apesar de seu nome nem sempre ser lembrado ao lado dessas heroínas, seu papel foi igualmente transformador.
Janet não só ajudou a orientar e promover eventos que visavam aumentar a consciencialização sobre a luta de libertação de Moçambique, como promoveu a educação e a ascensão das mulheres combatentes. Ela tem de ser recordada como promotora do activismo e engajamento social na busca pela justiça. Ela é uma escritora nata e, como Mondlane dizia, uma repórter com quem partilhou o mesmo tecto.
[1] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950. Cartas seleccionadas e editadas de Eduardo Chivambo Mondlane. Fundação Eduardo Mondlane, 2012, p. 32, 33-34.
[2] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 20.
[3] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 129-130. Cf. Carta de André Clerc para Director da Jan Hofmeyr School, de 15 de Setembro de 1947.
[4] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 249.
Os suspeitos do costume voltaram a dominar as eleições gerais em Moçambique. Em primeiro lugar, a abstenção, a beirar os 60 por cento; em segundo, a tinta indelével da fraude, qualificada pelo Director do Centro de Integridade Pública (CIP) e presidente do consórcio nacional de observação eleitoral ''Mais Integridade'' como magia que ocorre da noite para o dia; e, resultado final, a Frelimo e seu candidato presidencial Daniel Chapo são os virtuais vencedores, com maioria qualificada que lhes confere poder executivo e parlamentar absoluto na legislatura 2025 - 2029.
O repórter e redactor da ''Carta de Moçambique'', Abílio Maolela, compulsou os editais de apuramento intermédio das 11 províncias do país (incluindo Maputo-Cidade). Bravado, o coordenador da edição diária da ''Carta'' aplicou uma visão de túnel sobre o substantivo feminino abstenção, esse (não) ser intocável pela mão humana; imanipulável pela inteligência artificial; insípido ao palato humano todavia demolidor como um soco do ''smoking'' Joe Frazier, no estômago de um sonhador e pacato cidadão; e invisível a olho nu mas capturável pela ''lupa'' de uma máquina calculadora.
Nao foi um agradável passeio no parque da aritmética e estatística, pois os dados que Maolela apurou derrubam todas as narrativas optimistas e sonhos de uma votação massiva.
As sétimas eleições gerais (presidenciais e legislativas) e quartas das assembleias provinciais (incluindo dos governadores), realizadas na quarta-feira, 9 de Outubro, foram ensombradas pelo elevado índice de abstenção. Mais uma vez!
Mai de mais de nove milhões e 500 mil (9.549.879) eleitores não foram às urnas escolher o novo Presidente da República. Tal se traduz numa maioria de 56,74% do total de cidadãos eleitores inscritos em todo o território nacional, acima de dezasseis milhões e oitocentas mil pessoas (16.829.847).
Vale lembrar que os órgãos eleitorais recensearam, para estas eleições, um total de 17.163.686 eleitores, 333.839 deles inscritos no estrangeiro.
O vento sopra do Norte
Na província de Maputo, os editais do apuramento provincial denunciam que mais de dois milhões de eleitores (2.338.886) não foram votar. O maior círculo eleitoral do país recenseou um total de 3 milhões e 200 mil eleitores (3.265.572). Ou seja, 71,59% destes gazetaram às urnas, tornando-se na maior taxa de abstenção destas eleições gerais e das assembleias provinciais.
Os eleitores da Zambézia, o segundo maior círculo eleitoral do país, aliaram-se aos de Nampula, influenciando a negaão geral ao voto. Quase dois milhões de eleitores (exactamente 1.906.550) não foram votar, o que representa uma taxa de abstenção de 66,59%, em relação ao total de inscritos. Na segunda província mais populosa de Moçambique, os órgãos eleitorais haviam recenseado quase três milhões (2.862.978) de eleitores.
Na martirizada província de Cabo Delgado, os órgãos eleitorais reportaram a ausência, nas urnas, de 925.570 pessoas, correspondentes a 65,79%, de um total de 1.403.554 eleitores recenseados para o escrutínio de 9 de Outubro.
No Niassa, 585.070 eleitores (67,08%) decidiram ficar em casa, de um conjunto de 872.186 recenseados para votar. Enquanto em Inhambane a abstenção foi de 56,80%, com 569.504 eleitores a optarem por outras actividades que ir escolher o novo Chefe de Estado. Nesta província foram recenseados 1.002.723 eleitores.
Gazetas até no ''Frelimistão''
Na província de Manica, de um total de 1.128.189 inscritos, 557.625 eleitores (49,43%) escolheram não foram votar. Na província de Gaza, considerada “bastião” da Frelimo, ficaram em casa 595.922 eleitores (49,73%), de um total de 1.198.262 eleitores.
Gaza tem sido uma das províncias que a narrativa jornalística cognominou de ''Frelimistão'', por se registar (a)normalmente votação acima dos 90% em favor do partido da cor vermelha, números largamente contestados pela oposição e pela sociedade civil, que consideram ser fabricação dos órgãos eleitorais para beneficiar o partido no poder.
A província de Tete é também parte do Frelimistão''. Desta vez, 633.982 eleitores (40,72%) não se deslocaram às Assembleias de Voto, de um total de 1.556.938 eleitores recenseados. Reduto tradicional da oposição mas que a onda vermelha tem erodido nos pleitos eleitorais recentes, em Sofala 622.556 eleitores (48,14%) também decidiram ficar em casa, de um universo de 1.293.158 recenseados.
A excepção chamada Maputo
As taxas mais baixas de abstenção das eleições de quarta-feira, de acordo com os editais de apuramento provincial, registam-se na província e Cidade de Maputo. Na Cidade de Maputo, a taxa de abstenção fixou-se em 37% e, na província de Maputo em 35,92%. Na capital do país, estavam inscritos 676.757 eleitores, e apenas 250.366 eleitores não foram votar. Na província de Maputo, os órgãos eleitorais recensearam 1.569.530 pessoas, mas somente 563.848 não foram votar.
Depois de se fatigar nos editais de apuramento intermédio destas eleições, Abílio Maolela foi aos arquivos mais frescos da história eleitoral de Moçambique. Estes reavivaram-lhe à memória que a taxa de abstenção foi de 48,6% em 2019, nas sextas eleições presidenciais e legislativas e terceiras das assembleias provinciais (as primeiras que elegeram os governadores das províncias). Naquele ano, apurou, estavam inscritos 13.162.291 eleitores, mas somente 6.766.416 foram votar.
Apesar de não termos tido acesso aos editais do apuramento na diáspora, os seus números e estatísticas são insignificantes para mudar esta esmagadora verdade: o fantasmagórico ''partido da abstenção'' mantém sua hegemonia.
Um ''pornográfico'' relatório preliminar
Em Relatório Preliminar sobre a votação, divulgado na quarta-feira, o Consórcio Eleitoral Mais Integridade conta uma história digna de um filme de terror, caraterizado por actos de roubo, inutilização e compra de votos de candidatos e partidos da oposição (PODEMOS, Renamo e MDM) a favor da Frelimo e seu candidato Daniel Francisco Chapo, tendo como protagonistas os Membros das Mesas de Votos.
Segundo o “Mais Integridade”, na noite eleitoral de 09 de Outubro de 2024, para além dos já conhecidos e famosos casos de enchimento de urnas, houve também anulamento de votos pelos Presidentes das Mesas, sendo que os casos mais significativos registaram-se nas províncias de Sofala, Zambézia, Nampula e Tete.
Por exemplo, na EPC Josina Machel, no distrito de Marromeu, província de Sofala, a delegada do PODEMOS encontrou mais de sete votos em branco e mais de quatro votos do candidato Venâncio Mondlane, que tinham sido qualificados a favor do candidato do partido Frelimo, Daniel Chapo.
Na EPC 10 de Maio, no mesmo distrito, o “Mais Integridade” afirma que um dos presidentes de Mesa usou, de forma sistemática, tinta de carimbo para anular os votos a favor candidato Venâncio Mondlane, enquanto na EPC de Mazi Ntunga, um dos presidentes da Mesa agrediu fisicamente o secretário e um dos escrutinadores por reclamarem o facto de o presidente estar a anular os votos a favor dos partidos da oposição.
“Na EPC Nhamiasse (Morrumbala-Zambézia), para além dos MMV terem votado mais de uma vez, durante a contagem nem sempre marcavam no quadro negro os votos atribuídos ao PODEMOS e à Renamo. Na EP1 Napote, (Gilé - Zambézia), votos considerados nulos foram transformados em votos a favor do partido Frelimo”, narra o Relatório.
Na EPC de Tacuane (Lugela-Zambézia), antes do início da contagem, no tempo dedicado ao descanso, o presidente da Mesa foi encontrado a abrir a urna e acrescentar boletins de voto pré-marcados; e na EPC de Marrupa-Sede (Marrupa-Niassa), a contagem foi paralisada durante largos minutos pelo facto de um dos escrutinadores ter sido encontrado com mais de dois dedos pintados com tinha de carimbo, que usava para invalidar os boletins de voto favoráveis ao PODEMOS.
Um dos casos mais gritantes narrados pelo Consórcio “Mais Integridade” ocorreu na EPC de Chamissava, no Distrito Municipal de KaTembe, na Cidade de Maputo, onde, dos 230 votos que o PODEMOS tinha obtido na eleição legislativa e marcados no quadro negro, apenas um foi registado no edital oficial publicado pela Mesa.
''Magia'' da noite (eleitoral) para o dia (seguinte)
Tal qual a noite é escura e o dia é claro, as eleiões gerais em Moçambique geraram um fenómeno: há a noite eleitoral e há o dia seguinte, com(o) realidades completamente distintas. Em conferência de imprensa concedida na quarta-feira, o Director do Centro de Integridade Pública, uma das organizações da sociedade civil integrantes do consórcio, assumiu ser inexplicável o que aconteceu na noite do dia 9 de Outubro.
“Temos magia, em Moçambique, porque aquilo que a gente viu a ser contado e aquilo que os editais diziam, no dia seguinte, eram coisas totalmente diferentes. Perante esse cenário, é muito difícil o consórcio vir aqui dizer que nós fizemos contagem, baseada nos editais porque a maior parte tem resultados martelados”, defendeu Edson Cortez.
“Mais uma vez, como país, realizamos eleições fraudulentas, que não reflectem aquilo que foi a vontade dos eleitores. Em certas urnas, havia mais gente que só ia votar para as eleições presidenciais e se esquecia do boletim de voto para as eleições legislativas. Isso mostra enchimento de urnas”, sublinhou, apelando à Procuradoria-Geral da República a olhar para os vários ilícitos eleitorais, no lugar de se preocupar apenas com um candidato.
Segundo a plataforma, que contou com 1.900 observadores, distribuídos por mais de 1.500 locais de votação nos 161 distritos do país, cobrindo um total de 3.106 Mesas, a noite eleitoral foi marcada também por falta de iluminação, assim como por cortes sistemáticos de energia eléctrica.
Por exemplo, as Escolas Secundárias de Pebane (Zambézia); a EPC de Chanica (Mandimba-Niassa); a EPC de Thungo (Lago-Niassa); a Escola Básica 16 de Junho (Mecula); a Escola Secundária de Entre-lagos, (Mecanhelas,); e a EPC de Mucujua (Monapo) tinham problemas de iluminação, enquanto a EPC de Chinga (Murrupula) registava cortes frequentes de energia. “As lanternas disponibilizadas pelo STAE não ofereciam iluminação suficiente para operações de qualificação de votos, o que originou novas interrupções devido a discordâncias na qualificação dos votos”, sublinha.
O espectro da maioria absoluta
Os resultados oficiais indicam uma vitória por maioria absoluta de Daniel Chapo e da Frelimo, com mais de 60% dos votos. O PODEMOS alega que sua contagem paralela aponta para uma vitória do partido e do seu candidato Venâncio Mondlane com mais de 53% dos votos.
As últimas projeções veiculadas veiculadas por canais de televisão e viralizadas pelas redes sociais indicam um futuro parlamento, de 250 deputados, em que a Frelimo obtém maioria qualificada de 192 deputados. O PODEMOS, catapultado pela popularidade de Venâncio Mondlane, emerge como oposição oficial parlamentar, com 32 deputados; a RENAMO sofre uma hecatombe histórica passando, pela primeira vez em 30 anos de democracia multipartidária, a ser terceira bancada parlamentar, com 21 deputados; e o MDM não consegue número suficiente de parlamentares para formar bancada, com apenas três membros. Os outros dois parlamentares sao da diáspora, eleitos nos círculos eleitorais da África e de Europa e resto do mundo. Os resultados finais só serão conhecidos na próxima quinta-feira, dia 24 de Outubro. (Carta da Semana)
Eu queria tanto que o Homero voltasse para o jornalismo. Ele foi minha inspiração quando escrevia no "Desafio". Eu era um leitor entranhado. Aprendi muito com seu cronicar sobre os futebóis e quejandos. Descrevendo os golpes de asa do Nico com seu portentoso remate, os saltos de chita do Filipe Chissequere, evitando o golooooo que o grito do João de Sousa havia já dado como certo; os duelos excitantes entre o basquete sénior do Desportivo e do Maxaquene, na áurea e inigualável fase do reinado absoluto do astro Amade Mogne.
Eu ia fazer fila no quiosque dos jornais em Inhambane à espera dos jornais que vinham do Maputo para não perder o “Desafio". Sob a batuta do Renato Caldeira (que me confirmou esta tremenda morte em casa na semana passada, não escondendo sua voz machucada, mas sobretudo com pena da irmã, a mãe do Homero, que era a pessoa “mais direitinha” entre os irmãos), o Homero, no jornal, se destacava entre gurus como Alexandre Zandamela e Almiro Santos.
Uma vez tentei me embrenhar nessa redacção à guisa de estagiário, um principiante ranhoso e apaixonado pela palavra escrita, mas ainda estava eu demasiado cru. O Homero foi se calhar o tipo que me acarinhou. Mas ele não controlava nada!
Quando vim a Maputo de vez, na segunda tentativa da aventura para o el-dourado murchante, já instalado no Mediafax com o CC e escrevendo Cultural no SAVANA (adorava as vernissages regadas da Associação Moçambicana de Fotografia, uma emblemática galeria engolida pelo lobby financeiro da capital), privei muito com o Homero nas cavalgadas culturais da cidade. Era um aficionado do Michael Jackson, com tiques de “bon vivant”. Um rapaz muito fixe. Seu lado humano era decente e dizia o que pensava, sem o receio de remorsos.
Andou na UFICS - tal como muitas das vozes incontornáveis de hoje - aquela fábrica de cérebros que o Brazão Mazula fez diluir, integrando as Ciências Sociais na Faculdade de Letras da UEM. Ele foi da segunda leva de uficsianos. Eu da terceira. Nunca nos cruzámos discutindo nos corredores os clássicos da Ciência Política da formação do Estado Moderno ou mesmo a epistemologia em Bachelard. Ele fez Administração Pública e andou por aí, trabalhando pela vida, sempre com um pé no jornalismo e na vivência da vida.
Em 18 de Dezembro de 2018, Homero Lobo assumiu funções como Editor da "Carta de Moçambique". O jornal tinha nascido no mês anterior. O jornal publicou uma sua mini-bio assim, galanteando-se pela aquisição de um galáctico:
“Homero Lobo é jornalista há 32 anos, tendo iniciado a sua carreira na Sociedade Notícias. Naquela casa permaneceu por uma década e esteve ligado ao nascimento do primeiro jornal desportivo nacional, o Desafio. Mais tarde voltou a estar igualmente ligado ao surgimento de um outro jornal desportivo/cultural, o Campeão, onde desempenhou as funções de Editor do suplemento cultural. Ao longo destas três décadas de percurso jornalístico pertenceu aos quadros do jornal Savana, das revistas Sol do Índico, MozIn e Moz Business, para além de ter colaborado com uma série de publicações nacionais e estrangeiras. Foi igualmente Assessor de Comunicação em diversos organismos nacionais (estatais e privados), com especial destaque para o Ministério da Administração Estatal e Função Pública e o Conselho Municipal de Maputo. Pertence à primeira ‘fornalha’ de licenciados em Administração Pública, pela UFICS (UEM), e possui ainda uma pós-graduação em E-Government pelo SIBIT (Shriram Institute of Business and Information Technology) de New Delhi, Índia. Tem formação média em jornalismo pela Escola de Jornalismo”.
Como Editor na "Carta", Lobo foi enviado por duas vezes para cobrir os procedimentos judiciais à volta da tentativa de extradição para Moçambique do antigo Ministro das Finanças Manuel Chang. Já não tinha a disciplina férrea de um “enviado especial”, mas suas crónicas, às vezes passando ao lado do essencial, buscavam o lado mais travestido da vida mundana. O escritor Sérgio Raimundo, que também trabalhava na "Carta" nessa altura, não ficou nada impressionado pelo jeito "fudjista" do Homero aquando do caso Chang.
Na semana passada, na quentura da partida do jornalista, Raimundo escreveu assim: "Aquando do julgamento de Manuel Chang, na África do Sul, Homero foi o nosso enviado especial. O Homero enviou-nos um texto e depois sumiu. Não mais soubemos dele. Um jornalista amigo disse-nos que sempre via o Homero nos corredores do tribunal. Depois de uns dias, o Homero ressuscitou e enviou-nos um longo texto, bem escrito, no qual relatava as pulseiras da juíza que amarinhava o julgamento. E nada sobre o julgamento!". Ri e chorei. Raimundo não conheceu o escriba beirense na sua fase mais intensa.
Sua passagem por esta empresa foi efêmera. Ele queria tanto regressar para a Beira, se reencontrar nas profundezas da sua Munhava. Qualquer coisa o incomodava em Maputo. E zarpou para o Chiveve sem qualquer despedida.
Quando veio o IDAI (ciclone) ainda consegui cravar-lhe dois ou três dedos de crônicas com sua narrativa escorreita, linguagem elegantemente figurativa e uma descrição brutal da verdadeira. Queríamos que ele escrevesse sempre, impregnando seus mundos coloridos em nosso jornalismo envolto neste "leitmotiv" epistolar, e ele se furtava. Sua disponibilidade para o jornalismo se esvaziara, inversamente à indumentária "dreadlock" que trajava. Quando, depois do anúncio da sua morte, me recordei da sua adoração por Michael Jackson, um amigo lembrou-se da cabeleira do Homero, imitando justamente os devaneios capilares do eterno Rei do Pop. Ele editava textos ouvindo Billie Jean. Quanto bom gosto. Saravá Homero!
O assassinato do advogado Elvino Dias (mandatário da CAD) e de Paulo Guambe (mandatário do PODEMOS), na madrugada de hoje na zona da COOP em Maputo, é a derradeira tinta indelével do horror que está a marcar o presente acto eleitoral e, por incrível que pareça, simbolizando os últimos dias do regime de Filipe Nyusi, a figura mais autocrática e errática que a Frelimo colocou no poder desde a independência deste país em 1975.
Depois que a CAD, a primeira plataforma de apoio à candidatura presidencial de Venâncio Mondlane, foi barrada de participar do acto eleitoral, Elvino Dias permaneceu como assessor jurídico do VM7, que, entretanto, acabou viabilizando sua candidatura através do Partido Podemos. Elvino era um perspicaz advogado, intrépido, com fibra rija de combatentes. Ele fez furor o ano passado, nas tenebrosas eleições autárquicas, litigando como um gladiador solitário numa arena de justiça eleitoral moldada para favorecer o regime de Filipe Nyusi e não a vontade do eleitor.
Apesar desse cenário de campo eleitoral desnivelado a favor da Frelimo, Elvino Dias mostrou que era capaz de esgrimir argumentos contra a batota eleitoral vigente, sempre munido de evidências inabaláveis, desafiando até o Conselho Constitucional. Ele foi assassinado quando justamente se preparava para levar as evidências da reivindicação de vitória de Venâncio Mondlane e do Podemos ao Conselho Constitucional.
Elvino sabia que ele era um alvo, tal como VM7. Nos últimos dias, ele postou o seguinte na sua página do Facebook:
“Quando soube, através de um amigo que me quer bem, que havia um plano milimetricamente desenhado pelos Esquadrões da Morte para tirar a vida do Engo Venâncio Mondlane e a minha, pensei em fugir por alguns dias da cidade de Maputo. Mas antes, liguei ao Engo para lhe contar em primeira mão dessa pretensão e também lhe sugerir a sua fuga por alguns dias. Ele, apesar de também mostrar preocupação, disse-me que não era necessário fugir; pois, eles sabem perfeitamente onde nos encontrar; foi a opção da vida que escolhemos; estar do lado da verdade e justiça. (...) Na verdade, num país ao avesso como o nosso, a verdade e a justiça têm o seu preço; e o maior preço é a morte de quem a diz. Desde que os esquadrões se reuniram para nos tirar a vida, não tenho dúvidas (...)”.
Pois...de forma macabra, ele pagou o preço, com a morte, de lutar pela verdade e justiça eleitoral. Ele era apenas um advogado que lutava politicamente em sede do Direito. Inofensivo, tal como Giles Cistac, que nos iluminava politicamente sobre Direito em sede da Academia. Cistac foi barbaramente assassinado nos primeiros meses da vigência do Nyusismo, em Março de 2015. Era um sinal do que viria a ser este caótico consulado. Elvino Dias e Paulo Guambe são os últimos mártires da nossa democracia recente. Eles foram mortos por uma única razão: fazer oposição política, usando legalmente o aparato institucional da nossa democracia incipiente.
E agora? Agora ficou claro que o assassinato de Elvino Dias e Paulo Guambe foi também uma ameaça aberta a Venâncio Mondlane. Sua vida pode estar em perigo. Ele desafiou de forma arrojada o regime e mostrou que é possível propor ao seu eleitorado jovem uma nova forma de governação, com uma verdadeira abordagem distributiva da riqueza do país, agora apenas acessível a uma restrita elite da Frelimo. Sem Elvino Dias, Mondlane fica limitado à sua acção legal de disputa dos resultados eleitorais junto do CC. Mas é esperado que surjam imediatamente voluntários para levarem a cabo esse desiderato em regime “pro bono”.
A grande questão que agora se coloca é: até onde o regime da Frelimo pode barricar-se para manter-se inamovível no poder, não querendo abrir uma pequena mão desse poder perante os resultados contestados destas eleições? Será mesmo preciso, num futuro não muito distante, que a juventude saia para as matas e promova uma nova revolução armada, como apregoava Carlos Cardoso, quando na redacção gritava suas premonições acertadas em face da escalada galopante da corrupção e do roubo ao Estado.
O futuro depende de a Frelimo vestir as roupas da humildade e chapéu do bom senso. O problema agora parece não ser Daniel Chapo. Com Nyusi ainda no comando, mergulhado em seu nervosismo indisfarçável, seu modelo autocrático vai marcando o compasso do processo político nacional. Na passada terça-feira, a Comissão Política da Frelimo determinou uma coisa: tolerância zero para VM7. Era a tirania sendo decretada, diante de um silêncio ensurdecedor da linha chamada reserva moral e dos que, consta, são favoráveis a reconhecer que uma partilha, mesmo que limitada, do poder (por exemplo, concedendo maior representação parlamentar ao Podemos) pode ser crucial para o futuro do partido. Definitivamente, a Frelimo não está a perceber os sinais dos tempos.
Mas...matar para quê!?
Em Moçambique não se tem falado, ultimamente, de beleza, fala-se pouco. Até nos próprios quadros de arte, o belo é retratado pelas feridas. Não há alegria, nem esperança na juventude. E assim, com este anoitecer violento, avulta um verso da Elis Regina, que se ouve nas ruas e que diz assim: eles venceram e o sinal está fechado para nós, que somos jovens!
Há um medo que paira nas avenidas, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. As ameaças são aspergidas todos os dias pelo rosnar dos cães. A terra treme. Mas estes tempos jamais foram vistos antes, vivemos no fio da navalha. As cascatas deixaram de despejar água cá para baixo. As albufeiras estão baixando de nível, então pode ser que haja o risco de pararem as turbinas da luz que vai enfraquecendo dentro de nós. Pois, se os rios secam, seca o país também. E os rios somos todos nós.
Pedro Langa já dizia: esta bela árvore já não tem folhas, caíram/o que significa que aqui em casa reina o pranto.
Há latidos profundos em todo o lado, então somos iguais aos cães, talvez piores que os cães, é assim como somos tratados! Mas o que é isto? É preciso repetir que a morte agora é fabricada. É servida em garrafinhas com rótulos dos demónios, como por exemplo “dinamite”. Na verdade há um rastilho aceso no nosso chão inteiro, e não poderemos nos esconder nas grutas. Que serão estilhaçadas.
Já não se fala de beleza nos whatsap e no facebook e noutras plataformas digitais. Passamos a vida total a escarnecermo-nos uns aos outros. A despejar todo o nosso fel por cima de nós mesmos. Tudo que se escreve agora nesses sítios tem tendência de nos conduzir à caminhos íngremes, ao pricipício. As coisas lindas que se lêem e se vem nos whatsap e nos facebook, são as mulheres, que também estão vituperadas. Não têm receio de nos mostrarem a parte mais macia do seu corpo. E isso é sinónimo de desespero na juventude. Frustração.
O belo atrai o belo, mas em Moçambique o belo feneceu. Nos subúrbios das cidades é que se nota com maior ênfase o privilégio de ser cão, e nem é necessário o uso da lupa para que toda a nossa nudez se torne clara. Aliás, o músico moçambicano já cantava: vada voxe (comem sozinhos). E se comem sozinhos, então não nos resta mais nada senão ser cão, e andarmos por aí, na gandaia, revirando as latas dos ricos, até que todo o castigo e sofrimento termine. Não sabemos como, se de forma trágica, ou de outra forma.
A noite já vai longa demais, e não se vislumbra a aurora. Diz-se que não é por muito madrugares que o sol vai nascer mais depressa. Mas é preciso mudar esse paradigma, pelo paradigma da juventude. “Vamos madrugar muito, para que o sol nasça mais depressa”. Não precisamos de armas de fogo. A nossa pólvora são as mãos nuas que se abrem e se apertam a outras mãos. As nossas balas são as canções que vamos cantar de dia e de noite até que amanheça. Vamos dançar também, no palco dos becos e das ruas e da avenidas, com as matchatchulani (bailarinas chopes) à frente, esvoaçando as saiotas. São estas as nossas armas. Entregaremos, sem medo, o peito às verdadeiras balas que já começaram a chover como granizo de morte.