Há dias, e poucos, estive numa casa de pasto para um encontro com o Marutissa, meu primo. Fui o primeiro a chegar. A ele, que vinha a caminho, respondi de que estava na “cadeira 38”. “Ok” foi a resposta.
Este sábado, 23 de Setembro de 2023, ainda pela manhã, recebo uma chamada da empresa de transporte que me informa o cancelamento da reserva da cadeira 38, sugerindo como alternativas a 36 ou a 40, caso quisesse ficar em lugar próximo. Optei pela cadeira 40. O telefonema termina com a informação de que eu seria “logo logo” contactado para alguns detalhes que ainda careciam de confirmação.
Por conta do fim-de-semana longo programara que o passaria na terra natal, Inhambane. Enquanto esperava pelo retorno da chamada veio-me à memória de que era a primeira vez, em 22 anos, que não viajaria na cadeira 38. À boleia da lembrança, também a da razão do hábito de viajar na cadeira 38.
“Lamentamos informar de que a partida do autocarro foi reprogramada para o próximo dia 26 de Setembro pelas 11H30”. O prometido telefonema que me comunicava a amarga notícia, acrescentando que me assegurava que era a única alteração. Resumindo: não viajaria na cadeira 38.
Porque a ida à “Terra da Boa Gente” era mais do que passar um fim-de-semana longo, prontamente anui. Na verdade a mente já havia iniciado uma outra viajem, a da lembrança da razão de sempre viajar na cadeira 38.
Natal de 1969. Dois irmãos viajam de Inhambane à então Lourenço Marques, hoje Maputo, ou no trajecto inverso. O mais velho (Lázaro) ia sentado na cadeira 37. O mais novo (Abel) ia ao lado do motorista. O mais velho, uma hora depois da partida, e de forma insistente, sinalizava com o indicador para que o mais novo chegasse a ele.
“O que será que o mano Lázaro quer?”. Interrogava-se o mais novo à medida das chamadas. A insistência fora tal que acabou por aproximar. “Sempre que viajares de autocarro sente na cadeira 37 ou 38. É mais seguro em caso de acidente ou de qualquer emergência”.
Soube desta recomendação nas exéquias fúnebres de quem ia sentado na cadeira 37. Desde então, passam 22 anos, que estar numa “Cadeira 38” é o mesmo que dizer que estou bem instalado, em lugar seguro e que se recomenda. Daí o “OK” do primo Marutissa, por sinal o caçula de quem era recomendado a escolher o lugar seguro para viajar.
Esta terça-feira, dia 26 de Setembro, chego a terminal na hora prevista. Não era o ambiente normal de uma terminal de transportes e estava com áurea de proximidade e aconchego. Nos semblantes dos presentes, embora não se vislumbrassem sinais de que fossem viajar, a sensação de que viajavam e a de celebração da despedia de alguém que partia pela primeira vez para o estrangeiro.
Perto das 09H00 entro no autocarro carregado de curiosidade sobre quem estaria sentado na cadeira 38. A “térrea-moça” confere o assento no meu bilhete e a caminho da cadeira 40, na 37 estava o seu eterno ocupante. Estranhamente que desta vez não disse “Tenha a bondade”, enquanto indica a cadeira 38. A razão: na cadeira 38 já estava ocupada pelo seu companheiro de viajem do natal de 69: o seu irmão Abel.
“Estimados, a vossa atenção. Vamos iniciar a viajem e o ponto de partida será o regresso ao passado com a duração de 99 anos, prevendo que a chegada seja no dia 16 de Setembro de 1924”. Era a “térrea-moça” que em seguida pediu que se fizesse silêncio.
No silêncio da viajem ao passado foram passados em revista, na forma e no conteúdo, a nobreza das 99 primaveras do ocupante da cadeira 38, Abel Lopes Menete.
Dia 16 de Setembro de 1924. Chegada a Jangamo, Inhambane, marcada pela alegria contagiante do regresso de quem deixara a terra natal, 15 anos depois do seu nascimento, rumo a então Lourenço Marques, a terra prometida.
10H30. A “térrea-moça” anuncia a partida e de que se farão duas paragens antes do destino. A primeira no Bairro 700, a saudosa morada térrea do ocupante da cadeira 38, e a segunda no cemitério da Texlom. E daqui a decolagem da viagem final até ao reino dos céus. E assim aconteceu por volta do meio-dia.
Por algum motivo fiquei em terra na primeira paragem. Esta madrugada de chuva, e que abençoara a viajem, soube dela de que a viagem correra bem e que o ocupante da cadeira 38 fora recebido com uma honrosa e estrondosa salva de palmas durante 38 segundos. No final, a saudação: Cadeira 38, Saravá!
Em jeito de homenagem a Abel Lopes Menete (16/09/1924 – 23/09/2023)
Já dissemos isso mais do que uma vez, na tentativa de não perder de vista a história de uma cidade que se tornou incapaz de preservar os ritos, e os mitos. É isso mesmo: Inhambane está caminhando de degeneração em degeneração em vários ângulos da sua existência, até o silêncio está sob ameaça, com os decibéis a triunfarem em todo o lado sem que as autoridades actuem. Mas, mesmo com essas dores todas, e ainda perante o êxodo e os fragmentos, há aqueles que permanecem para serem eles a fechar a porta. Um deles é o Devú.
Devú parece ser o último símbolo da comunidade hindú na cidade de Inhambane. Hevendo outros, provavelmente terão menor expressão numa situação em que quase todas as lojas destes asiáticos, ou descendentes deles, estão fechadas, sem qualquer sinal de que haverá reabertura das mesmas nos próximos tempos. Muitos indianos daqui zarparam em busca de outros ventos, se calhar porque a sorte lhes virou as costas numa terra omde tinham o domínio total do comércio. Ficavam à porta e o dinheiro ia lá ter.
Agora o negócio tem outras mãos e outros donos, de entre eles muitos moçambicanos que constroem lojas e bancas nos bairros residenciais, facilitando as deslocações dos consumidores à cidade. Os próprios alfaiates indianos, que eram a maior recomendação –quase única – levantaram as âncoras e içaram as velas antes que o vento parasse em definitivo de soprar.
Mas Devú ficou, como um marinheiro abandonado num barco ora robusto, porém agora navega na costa sem capacidade de ir ao ao alto mar, o casco está por demais fragilizado. Ele também tem as mãos comprometidas, tremem ao se lembrar que os remos caíram na água, matando completamente o sonho de alcançar algum porto próximo ou distante.
Seja como for, Devú não deixa de ser uma pessoa amável. Mantem o abraço afável aos seus trabalhadores que estão alí, na loja, por detrás do balcão, com muito pouco para vender, quase nada. Já não é a loja comercial que move um homem que se tornou personagem pelas suas características peculiares, mas a história que essa loja emana. Abandoná-la seria igual a abandonar-se a si próprio e desvalorizar tudo o que os seus pais fizerm. É por isso que se mantém à espera de um comboio que ele sabe muito bem que não vai chegar.
Parece - quando espreita pela porta cá para fora onde os jovens passam ignorando-o –conformado com a negligência da memória de todos nós. E alí mesmo em frente à sua loja, tem a casa de Tsungu Thsoni, e os jovens nem sequer conhecem esse nome, nunca ouviram falar de Tsungu Thsoni, nem de Devú, e Devú faz parte da nossa história, mesmo que ele não reivindique nada.
E assim a nossa cidade vai-se diluindo na perca de elementos do passado, que serão importantes para escrever sobre os acontecimentos da cidade. Então os nossos livros, sem as páginas como Devú, podem não estar completos. Ou seja, o arco-íris só é arco-iris com todas as cores.
“Fico com a percepção de que a Frelimo, através da cabeça-de-lista, Stela Pinto, poderá recuperar a cidade da Beira, 20 anos depois. Recorde que Albano Carige não foi o eleito dos munícipes da Beira em 2018 e o meu amigo Carvalho, cabeça-de-lista da Renamo nestas eleições, há menos de dois anos, era do MDM. Isto, na minha opinião, poderá criar muitos indecisos que preferirão endossar o seu voto à Frelimo, para além de que este partido, pelo seu estado de homogeneidade, manterá o seu tradicional eleitorado. Relativamente a Nampula, tenho sérias dúvidas do sucesso do MDM, pois a Frelimo, os amigos de Amurane e Vahanle me parecem em “pedra e cal”.
Em Quelimane, tanto a Frelimo quanto o MDM me parece fazerem pouco para ganharem aquela Autarquia e Manuel de Araújo poderá, na minha opinião, manter-se, tal como se manteve Daviz na Beira. São apenas reflexões e, caso levem a peito e trabalharem sobre os pontos fracos e evidenciar os fortes, naturalmente, a tendência poderá mudar”.
AB
A campanha eleitoral, rumo às VI eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023, teve início às 0:00 horas de hoje, 26 de Setembro de 2023, um dia depois da comemoração do dia das Forças de Defesa de Moçambique, simbolizando o início da Luta Armada de Libertação de Moçambique. Diria mesmo que, para os partidos políticos, a data veio a calhar, pois, tiveram à disposição os seus quadros para os trabalhos preparatórios.
Segundo escreve o Jornal electrónico “Carta de Moçambique”, tudo indica que o epicentro da campanha será a cidade da Beira, Província de Sofala, com os principais líderes políticos a usar aquele palco para a abertura de campanha eleitoral, o que torna a cidade da Beira um espaço privilegiado para a análise política. Se estamos recordados, a cidade da Beira está nas mãos da oposição há, sensivelmente, 20 anos, primeiro com a Renamo através do Edil Daviz Simango que, na altura, derrotou Lourenço Bulha, da Frelimo.
No pleito seguinte, voltou a ganhar o candidato Daviz Simango, afastando, pela Frelimo, Jaime Neto, desta vez, pelo Partido MDM, resultante da cisão com o partido Renamo. Recorde-se que nesse ano Daviz Simango derrotou, de forma copiosa, a Renamo, cujo candidato foi o homem das cancelas no Save. Lembram-se dele? Em 2018, Daviz Simango voltou a carimbar mais uma vitória e, pela Frelimo, concorreu Domingas Maita, uma senhora que, em pouco tempo, se popularizou naquela Urbe. Infelizmente, não é concorrente de 2023, pois a Frelimo optou por outra mulher, Stela Pinto Novo, diga-se, bem conhecida na cidade da Beira.
Albano Carige, actual Edil da Beira, o é fruto da nova modalidade de eleições, através do cabeça-de-lista, porque o titular, Daviz Simango, perdeu a vida em Fevereiro de 2021, pelo que subiu a pessoa imediatamente a seguir. Contudo, parece-me um candidato a levar a sério, mas não haja dúvida que os motivos que levaram à eleição de Daviz na Beira não cobrem Albano Carige, a saber, Daviz é filho de um líder de primeira fila na Frelimo, Uria Simango, foi negado por Afonso Dhlakama, numa altura em que a sua popularidade era muito alta e, por conseguinte, a Renamo perdeu a cidade da Beira.
No caso da Beira, com a devida ressalva, comparo com a saída de Pio Matos de Quelimane que, depois disso, a Frelimo nunca mais ganhou a Cidade e, curiosamente, o actual Edil de Quelimane tanto esteve no MDM como na Renamo, permanecendo, neste momento, na Renamo. É por este partido que governa aquela cidade, mas Beira tem a particularidade de ser considerada a segunda cidade de Moçambique, com um corredor importante para os países do interior que não possuem costa, dois dados interessantes que tornam a Beira epicentro político nas eleições de 11 de Outubro.
A Frelimo pode recuperar a cidade da Beira nas VI eleições Autárquicas!
O partido Frelimo pode recuperar a cidade da Beira, nas VI eleições Autárquicas e digo os porquês deste raciocínio: Primeiro, é preciso notar que estas eleições se realizam sem o filho querido daquela Urbe, o saudoso Daviz Simango. Albano Carige não é Simango e tão pouco se pode considerar carismático, tanto quanto foi o seu antecessor, por isso é uma oportunidade política para a Frelimo “Assaltar” a Cidade da Beira. Segundo, o candidato do partido Renamo, como cabeça-de-lista, é co-fundador do MDM e eu diria mesmo que é fundador do MDM em termos morais e, por razões não muito claras, abandonou o MDM retornando para a Renamo. Este partido recebe-o e coloca-o como cabeça-de-lista para estas eleições. Ora, isto pode dividir opiniões, do ponto de vista dos munícipes.
Esta divisão de opiniões tenderá a colocar a Renamo e o MDM numa posição de partilha de eleitores, em que a Frelimo tenderá a manter o seu eleitorado tradicional, irá captar novos eleitores e beneficiar-se-á dos indecisos entre a Renamo e MDM. Bom, isto não é trigo limpo, pois, a Frelimo vai ter de suar muito para conseguir a vitória, mas é possível e trata-se de uma oportunidade rara que a Frelimo tem para reconquistar aquela cidade.
Relativamente à cidade de Nampula, parece-me que os correligionários de Amurane estão a sentir-se cada vez mais órfãos do seu patrono e, nas condições em que a Frelimo realizou as suas internas, com a renúncia do actual Governador de Nampula, Manuel Rodrigues, parece-me difícil para a Frelimo ganhar a cidade. Acredito que o fenómeno Lil Wayne poderá ajudar, mas não o suficiente para lograr vitória, por isso fica-se na dúvida.
Já na cidade de Quelimane, desde que a Frelimo optou por outro candidato em detrimento do popular Pio Matos, parece-me impossível a recuperação daquela urbe. Manuel de Araújo é um fenómeno por estudar em termos políticos. Muitos reclamam sua ausência na Cidade, mas, quando aparece publicamente, abafa tudo quanto se disse dele, ou seja, nem o MDM, nem a Frelimo, me parecem com “argumentos” bastantes para convencer o eleitorado Quelimanense de que o actual Edil deve ir descansar. Bem, estas são minhas reflexões, espero, sinceramente, estar equivocado e irei recuperar esta reflexão depois das eleições e proclamação dos resultados eleitorais de 11 de Outubro. Abraço!
Adelino Buque
“A ausência do cabeça-de-lista da Frelimo nos debates com outros candidatos pode ser a estratégia que a Frelimo encontrou para não promover candidatos por outros partidos. Só o facto de Razaque Manhique ser o Primeiro Secretário da Frelimo na Cidade de Maputo confere-lhe um capital político que os outros candidatos não possuem e não terão, se calhar, pelo resto da sua militância política, ou seja, estar ao lado de uma pessoa como Manhique consubstancia a promoção de quem o acompanha. Não será este motivo bastante para se recusar a promover candidatos sem qualquer capital político!? Fica a interrogação”.
AB
Razaque Manhique é, actualmente, Primeiro Secretário do Partido Frelimo, o Partido que governa Moçambique desde 1975, ano da independência nacional, a esta parte e governa, igualmente, a Cidade de Maputo. Segundo escreve o Jornal electrónico “Carta de Moçambique”, Razaque Manhique faltou a dois debates sobre eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023. O primeiro foi a convite da Plataforma Jovens Líderes de Moçambique e o segundo convite foi do Grupo SOICO, um grupo de mídia líder de audiência em Televisão em Moçambique (minha percepção)!
Em parágrafo segundo, “Carta de Moçambique” escreve: “segundo seus adversários, a ausência de Razaque Manhique, neste tipo de debate, revela a fraqueza do candidato, pelo que entendem não haver condições para que os eleitores votem em concorrentes que se furtam deste tipo de eventos”. Ora, parece-me demasiada presunção desses candidatos acharem que, pelo facto de não ter participado de dois debates, é motivo bastante para que os eleitores não votem nele.
Aliás, esta reflexão é mesmo produto deste parágrafo, parágrafo terceiro. Primeiro, deve-se dizer claramente que o convite não obriga, o convite é diferente da convocatória, em que o convocado deve apresentar-se no local previamente definido, sem o que poderá incorrer em penalizações diversas, dependendo da instituição que o convoca, ou seja, se alguém me convida, deve esperar que eu aceite ou negue o convite, dependendo da minha prévia disposição. Mas não consta, das obrigações dos cabeças-de-lista, qualquer debate televisivo, logo, não podem ser peremptórios em concluir que Razaque Manhique não pode ser votado.
Mais ainda, dos cabeças-de-lista que concorrem à Cidade de Maputo, salvo melhor opinião, nenhum deles tem um cargo político próximo ao de Razaque Manhique. Como escrevo acima, ele é Primeiro Secretário do Partido Frelimo para a Cidade de Maputo e cabeça-de-lista para as eleições Autárquicas de 11 de Outubro. Logo, a sua exposição deve merecer abundantes análises e, por via disso, merecer aprovação ou não. Não creio que a ausência de Razaque Manhique seja fruto da sua livre e espontânea vontade, acredito que terá sido aconselhado a não se expor antes do momento consagrado para o efeito e quem assim decide terá, certamente, motivos ponderados.
Por outro lado, Razaque Manhique é um cidadão público, sobejamente conhecido pelos Munícipes de Maputo, não somente pelas suas funções de hoje. Devo recordar que, antes de ser o Primeiro Secretário da Frelimo para a Cidade de Maputo, foi membro da Assembleia Municipal e vice-Presidente deste órgão, por isso Razaque Manhique não precisa dessa exposição para se fazer conhecer. Dito de outra forma, Manhique não precisa desses debates para se fazer conhecer, tão pouco divulgar as linhas do seu pensamento, que é, no fundo, o pensamento do Partido Frelimo, Partido pelo qual assume a candidatura.
Eu comentei sobre o debate desta semana e, nos meus comentários, não falei da ausência de Razaque Manhique, pura e simplesmente, porque no debate as suas ideias não foram colocadas, exactamente, porque esteve ausente. Ora, não se pode debater ideias que não foram expostas, mas, mais do que isso, existem, não haja dúvidas, candidatos que, por estarem ao lado de Razaque Manhique, podem se sentir honrados e a sua visibilidade aumentar, porque não lhes dar esse prazer!
Adelino Buque
Uma vez li Saramago e, fiquei apaixonado pela subtilidade, realeza e profundidade da sua escrita.
Num dos seus escritos, escreveu: “Não se pode enxergar a ilha se não saímos da ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”.
De forma analógica olhei para o nosso país, o belo e vasto Moçambique e baptizei-lhe de Ilha. Decerto, não me refiro a primeira capital do país (a majestosa e imponente Ilha de Moçambique), mas ao lugar que está entre os quatro pontos cardinais sobejamente conhecidos – O Rovuma, a Maputo, o Zumbo e o Índico.
Tenho estado a observar com certa minucia algumas tendências e alguns dos pronunciamentos e análises de alguns dos nossos antigos estadistas, governantes, gestores e servidores públicos sobre o estágio actual da nossa governação – sobre a ideia de governação no nosso país. Devo confessar que algumas das análises são de uma visão globalizante e de um alcance espantoso – primeiro pela coerência apresentada, e segundo pelo escalonamento lógico e alinhamento de ideias. Faz-se jus a máxima de Saramago, segundo a qual “não nos vemos se não saímos de nós”.
Muitos dos que hoje fazem estas belíssimas e apaixonantes análises sobre o nosso status como país, e como deveríamos caminhar enquanto nação que ambiciona abraçar o trilho desenvolvimentista, sair da linha pobreza e que quer afirmar-se como actor relevante na região e no mundo, foram titulares de pastas e cargos de tamanha relevância em algum período do seu percurso profissional.
Durante sua passagem pelos meandros formais do poder, ao abono da verdade devo aqui reconhecer, que muita coisa boa foi feita e muita coisa ficou por se fazer. Quer fosse pelo contexto inóspito e adverso, quer fosse pela falta de preparo adequado e experiência, que mais tarde abriram portas para interferência e ingerência externa. A institucionalização da prática da corrupção activa - um mal que grassa e empobrece o nosso país a cada ciclo governativo também pode ser apontado como uma fragilidade na governação dentro da ilha.
Da conquista da independência, passando pelo período da restruturação económica e, chegando aos dias de hoje, o país passou por vários ciclos de governação; Momentos estes caracterizados por vários processos complexos e desafiantes que obrigaram a uma engenharia governativa que envolveu riscos, muita critica e poucos aplausos. Foram na verdade processos típicos de um país em construção e em busca de uma orientação governativa que pudesse responder aos anseios do povo.
O país experimentou também as investidas das potencias coloniais mascaradas de ajuda externa e de pacotes de incentivo para a recuperação e as imposições vários actores da arena internacional.
Por aqui, encontramos talvez um possível tubo de escape para justificar algumas das decisões tomadas e erros que se cometeram nas últimas décadas de governação. Muitas dessas decisões parecem ter grande influência no actual estágio e andamento da máquina estatal hoje e condicionam as reformas que tanto almejamos.
O processo de substituição da máquina colonial pela máquina nacional, foi desafiante e acarretou seus custos. Entre erros e acertos, muita coisa ficou como lição aprendida, ou pelo menos deveria ter ficado para que não se repetissem certas coisas.
Estas mudanças transformacionais e estruturais não foram apanágio apenas de Moçambique. Outros países que alcançaram as suas independências na primavera dos anos 1960 um pouco por todo continente, e conquistaram o pretenso direito à autodeterminação estiveram expostos a eventos idênticos.
Entre o que foi feito, o que deveria ser feito e o que ficou por fazer, ficamos quase sempre pelas entrelinhas daquilo que poderia ter sido melhor. Ficamos também pelo argumento de falta mais tempo para concluir o que se iniciou. Isto porque as vezes perdemos de vista o tempo do mandato que nos foi dado e, com isto protelamos, esquecendo que há um horizonte temporal para nossas realizações.
O que se fala hoje é paradoxalmente oposto ao que se fez ontem – Até aqui, não parece haver alarme pois, os erros fazem parte de todo e qualquer percurso e, em matéria de governação é preciso sempre decidir – umas vezes acertamos e outras vezes erramos – importante mesmo é aprender com o passado e exercitar a saída da ilha para apreciá-la melhor.
A ideia de governação pressupõe antes de tudo a assunção de um compromisso tácito e responsabilidade. Enquanto que a prática governativa pressupõe antes de tudo liberdade, conhecimento, informação, recursos e capacidade decisão.
E entre a ideia e a prática encontro um ponto de interferência que muitas vezes desemboca em um erro que nos penaliza grandemente: a ausência de um plano globalizante que transcende a dimensão pessoal de governação. Parece não haver uma continuidade dos planos traçados e, a cada ciclo governativo temos uma nova ideia do país que queremos (des) construir.
Resgatando a velha máxima do Presidente Samora Machel, “O dever de cada um de nós é dar tudo ao povo, sermos os últimos quando se trata de benefícios, primeiros quando se trata de sacrifícios, Isso é que é servir o povo”. É preciso perceber que não somos eternos e os cargos também não o são – as pessoas vão e as instituições ficam. É preciso amar o país antes de tudo e, criar as bases para que as gerações vindouras possam ter melhores condições de nutrição, saúde, educação e mais esperança de vida.
Hoje, alguns dos antigos dirigentes, depois de abandonarem o tacho real (a Ilha da Governação) permitiram-se observá-la de fora e entender a sua dimensão, seus problemas e até prescrever soluções; Soluções estas que aquando da estadia na ilha não estavam visíveis. Em governação, às vezes, ou talvez sempre é importante ser povo e sentir o que o povo sente.
Quando dentro da ilha poucos viram sem sombras o que se passava nela. Uma vez fora da ilha quase todos recuperaram a visão, a lucidez, e veem os problemas e os defeitos de quem governa a ilha – as coisas tornam-se mais obvias e visíveis.
Será a ilha um monstro difícil de entender? Ou nós, enquanto dirigentes da ilha não dedicamos atenção para entendê-la e garantir que a nossa saída dela não deve alterar o seu funcionamento?
A reflexão que convido para se fazer é sobre a temporalidade e actualidade do nosso ser ilhéu. É também sobre a ausência de um plano continuo para que se possa governar e gerir a coisa pública de forma mais assertiva e menos danosa. É sobre saber pensar um Moçambique próspero, progressista e desenvolvido para os próximos 50 anos como fizeram países como a China, Ruanda, Malásia, Singapura, Emirados Árabes Unidos, Noruega e outros mais.
Não nos vemos se não saímos de nós!!!
(inspirado numa velha lenda urbana da minha cidade)
A regularização de sua conta bancaria era o último empecilho para que a direcção de finanças do seu emprego desembolsasse o seu primeiro e muito aguardado salário.
Para dar conta da resolução do estorvo para o seu recebimento salarial, Lucas Chitato pediu dispensa ao departamento dos recursos humanos para tratar do assunto.
Ficou, aguardou espetado na fila desde das primeiras horas da manhã no balcão de uma das maiores instituições bancarias do país, sucursal localizada na cidade de Quelimane.
Posicionou-se em diversas poses que a sua mente concebia, cansou-se, sentou-se, levantou-se, acedeu as diversas plataformas das redes sociais até o telemóvel ficar sem carga, antes de ser atendido, nas vésperas do fechamento, finalmente atenderam-no.
Na manhã seguinte, quinta-feira, apresentou o comprovativo da regularização da conta, e esperou que o salário caísse, os colegas já desfrutavam das benesses providas pelos niqueis do ordenado.
Lucas, jovem recém licenciado em economia, teve que pagar, aliás pagou-o o pai para conseguir obter uma vaga numa instituição pública da cidade. E nos dias que se sucederam ao pagamento da vaga o remanescente salarial do pai só deu para o básico, as iguarias mensais a que estavam habituados a degustar desaguou num riacho de saudades.
A ânsia pelo recebimento do seu primeiro vencimento governava as suas emoções, queria ter a sua desejada independência financeira, os pais haviam feito todo o sacrifício para que ele tivesse uma boa educação, e ele estava deveras grato, queria também constituir sua própria prole.
Sexta feira ao meio da tarde o seu telemóvel dançou sob o tampo da sua secretária, olhou para tela descobriu a mensagem de texto enviado pelo banco com alerta de creditação na sua conta com o valor do salário.
Dançou na cadeira animado pelo ritmo vibratório que a mensagem produziu na sua mente, tamborilou o tampo da sua mesa, sem se aperceber que perturbava os colegas, quando percebeu da anomalia que protagonizava, desculpou-se.
Olhava obcecado o relógio, o tempo parecia ter parado, colegas veteranos já se preparavam para sair, eram 14:50h.
Não queria precipitar-se para a saída como faziam muitos dos seus colegas, precisava ser um trabalhador exemplar, aliás a educação que recebera conspirava para tal.
Finalmente chegou a hora, saiu para a rua, foi logo engolido pelo alvoroço, parou um táxi bicicleta, correu para o balcão do banco que ainda estaria aberto.
Levantou todo o seu salário, usando o mesmo táxi bicicleta, pediu que o conduzisse para casa.
O crepúsculo vespertino ia engolindo a cidade, as pessoas regressavam as suas casas, um trafego de táxi-bicicletas impunha-se desafiando os automobilistas que tinham que finta-los para não se colidirem.
Candeeiros espetados nas ruas e avenidas derramavam seu de feixe emprestando um brilho artificial a cidade e periferia.
Chegou a casa, encontrou os pais abrigados no velho sofá, embriagando-se com notícias destiladas por uma estação de TV local.
Instantes depois Lucas juntou-se aos pais, quebrou o vínculo que vinham tendo com a TV, ganhou completa atenção deles e de seguida entregou o envelope que continha o seu primeiro salário.
O pai pegou no valor e sem conferir dividiu de forma aleatória, entregou uma parte do valor a Lucas enquanto fazia um discurso retórico e a sua mãe meneava a cabeça em gesto de concordância.
Sentiu-se impelido a celebrar aquele momento impar da sua vida, aperaltou-se, passou uma loção na sua tez de tom de jambire e fez o pente desbravar o cabelo encarapinhado, viu-se no espelho, sentiu que ultrapassava os seus 1.79m, largou um sorriso correspondido prontamente pelo seu duplo.
Tomou emprestada a motorizada de seu pai, emitiu uma mensagem de texto e enviou para o seu melhor amigo.
A rua pavimentada do bairro continuava movimentada, principalmente pelos táxis bicicletas, as barracas clonadas onde se salientava as cores vermelho, amarelo e verde, hospedavam clientes que vociferavam competindo com o som dos alto-falantes cantantes.
Lucas encontrou o amigo já na companhia de uma garrafa de cerveja, conversaram animados pelos novos rumos de suas vidas, o tempo ia sendo confiscado pela noite. A dona da barraca anunciou que a qualquer momento fecharia, pois as autoridades reguladoras estavam atentas aos das normas.
Etilicamente energizado Lucas depois de se despedir do amigo dirigiu-se para a discoteca mais propalada da cidade.
Os únicos dançarinos que ocupavam a pista era a luz cromática, alguns clientes apeados no balcão que bebericavam e trocavam conversa, a medida que o tempo passava os fregueses multiplicavam-se.
Quando Lucas segurou o seu copo para dar um gole, um feixe de luz atingiu o rosto maquiado de uma rapariga que se sentava num canto da sala e emanava uma áurea arrebatadora.
Olhou, enlaçado no seu charme, estabeleceu-se um canal encriptado onde os dois falavam uma língua que o ruído da sala não perturbava. Caminhou sereno na direcção dela, e sem nada dizer pediu para dançar, aliás estendeu a sua mão e logo rodopiaram na pista.
Ao compasso rítmico, dançavam, entraram para um redoma isolando-se dos demais, Lucas acariciava-a estimulado pela coragem que o álcool produzia na sua pessoa.
A mudança rítmica protagonizada pelo “disco Joker” rompeu abruptamente o elo que se estabelecera, o casal soltou-se, trocaram sorrisos, e foram acomodar-se em pequenas poltronas na esplanada da discoteca.
Conversaram informalmente como um velho casal de namorados, falava mais Lucas e ela limitava-se a responder ao seu inquérito.
A luz eléctrica da cidade continuava intensa mas não desarmava a noite que se adensava.
- Nunca te vi por aqui? – afirmou Lucas.
- Raramente apareço – confessou serena.
Continuaram a conversar por mais duas horas, até finalmente decidirem ir-se embora, era já madrugada de sábado.
Levo-a na garupa da sua motorizada, o motor roncou, engrenou e partiram, a brisa fina da madrugada fê-la estremecer, largou um calafrio, abraçou-o mais intensamente, Lucas parou a motorizada, tirou o casaco que usava e entrego-a, reiniciaram a partida.
Deixou-a na porta de casa.
- Quando posso voltar a ver-te?
-Quando quiseres. – respondeu ela com um sorriso.
- Ligo-te amanhã. – disse Lucas.
- Estou sem telefone.
- Como faço então para te contactar? – questionou ele.
- Vem ter comigo a minha casa. – disse ela.
- Os teus pais?
- Eles são muito compreensivos. – afirmou ela convicta.
- Certo, então até amanhã, aliás até logo.
Na despedida, beijaram-se, ele ainda a viu entrar e instantes depois foi-se embora.
Lucas só despertou quando eram 9:30h da manhã de sábado, com uma desagradável “babalaza”.
Depois de um banho fresco, correu para a barraca da dona “mimi” onde tudo começou, socorreu-se de um petisco e bebeu umas duas cervejas bem geladas, recuperou o episódio da noite passada com ênfase na moça que conhecera e se apaixonara. Precisava, logo revê-la.
Abandonou a barraca, parou um táxi bicicleta e embarcou.
- Para onde patrão? – questionou o taxista.
- Torrone velho. – asseverou Lucas.
A pedalada iniciou, a velocidade aumentou e a distancia encurtou-se, chegou ao destino.
Ensaiou a abordagem correcta que devia praticar consoante a pessoa que lhe atenderia, pensou em desistir, um ímpeto encorajou-o, bateu a porta, esperou um bom tempo, ninguém atendia, quando pensava em desistir assomou a porta uma adolescente com parecença irrefutável com a moça que conhecera e se apaixonara na noite passada.
Trocaram olhares antes de Lucas pronunciar-se.
- Sim! – disse a menina.
- Posso falar com Zubeida? – articulou por fim Lucas.
Ela ficou petrificada sem saber o que dizer, dilatou as pupilas de seus olhos grandes, suspirou, mudou de posição dos pés para se reequilibrar, dos olhos nasceram lágrimas que transitavam pelo rosto, deixando-a completamente pálida, carpiu estrondosamente.
- O que se passa filha? – questionou a mãe com voz profunda.
A mãe juntou-se a filha, soube das pretensões de Lucas. Conteve-se antes de responder e corajosamente disse:
- Minha filha faleceu, faz exactamente hoje um ano. - conferiu a senhora para depois soltar lágrimas que logo inundaram-lhe o rosto.
“ Só podia estar a haver algum equívoco” - cogitou Lucas, arrependido, por bater a porta naquela moradia.
- Lamento imenso minha senhora, talvez enganei-me na casa. – disse.
Lucas lembrou-se de algo que podia dissipar qualquer equívoco. Socorreu-se do seu telefone, acedeu a galaria e exibiu a foto que tirara com Zubeida.
- É, é minha filha. – afirmou a senhora com a voz entrecortada. - Quando a conheceu? – questionou serena.
- Estava com ela ontem à noite.
Mãe e filha prantearam copiosamente.
O senhor Matias chegou, foi adentrando quando deu-se conta do celeuma que decorria na sua casa, procurou inteirar-se do que estava a acontecer.
Convidou Lucas a entrar e sentar-se e então tratou de explicar que não era possível que a pessoa que estivera com ele fosse Zubeida pois ela falecera, e ele vinha buscar a mulher e a filha para irem visitar a campa da falecida em celebração de um ano desde que ela partira.
Lucas manteve-se incrédulo, e então o senhor Matias decidiu convida-lo a acompanha-los ao cemitério.
Não demoraram para alcançar o cemitério que ficava na periferia da cidade, foram adentrando em direcção a ala leste, depois seguiram por uma vereda entre campas até alcançarem a sepulcro que buscavam.
Incrustada na lápide vertical estava inscrito palavras de ternura, mas a que mais saltou a vista de Lucas foi o nome “Zubeida António Chipenda” e a foto da falecida. Um baque sacudiu-lhe o peito e o medo tomou conta de si. “Estaria a enlouquecer?”
Quando dona Marta mãe da falecida, agachou-se para iniciar a limpeza da campa, eis que se depara com algo aveludado sobre a laje. Tomou em suas mãos o estranho objecto.
Todos olharam para o casaco mas foi Lucas quem ficou completamente petrificado com a descoberta.
- Esse é o casaco que emprestei para a Zubeida esta madrugada.