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sexta-feira, 10 dezembro 2021 07:32

O regresso de Carlos Cardoso…

Carlos Cardoso acordou da morte. Abriu com os dedos os botões de balas que lhe fechavam o ar húmido da vida. As cápsulas das balas caíram vazias de morte sobre os pés de Cardoso. Mirou o trânsito que entornava quilos de buzinas na estrada. A sua coluna grasnou como dobradiças de uma porta com verniz de ferrugem. E porque continuava vaidoso, penteou com os dedos os cabelos; da nuca à testa e da testa às laterais. Acordou da morte.

 

Deu dois passos e atravessou, com os passos diagonais, a estrada da Praça dos Continuadores. Dois vendedores ambulantes mostraram-lhe relógios de prata; faziam coros de preços decrescentes, simulavam colocar o relógio no seu pulso, mas Cardoso não tinha tempo de olhar aos números curvados debaixo de ponteiros apressados e sem tempo. Avançou o jornalista. Cheirava a sono húmido da cova da morte e tinha pegadas de gritos no rosto. Os mesmos gritos que explodiu pela boca quando morreu. A barba branca baloiçava nas mechas do bigode bem arrumado pelo tempo.

 

Entrou num café onde na porta o corpo de Cistac, derramado ao chão, plantava coágulos de sangue no solo. Recuou o passo. Observou o corpo de Cistac vibrando os últimos movimentos da vida. Chorou pela morte de Cistac porque também já tinha morrido e sabia que a morte era um alfabeto duro de ler. Nada podia fazer Cardoso naquele momento. Do seu lado passou uma manada de carros avermelhados de sirenes, com as ancas escoltadas por motorizadas e logo traçou uma linha de ligação entre o corpo de Cistac e os carros que se dissolviam na luz da velocidade.

 

Fez uma ventoinha com o jornal, “Metical”, dobrado que trazia no cabide da axila e abafou o calor que lhe escorria o rosto de suor. Tomou um café. Viu as horas no relógio que não tinha no pulso. Um ecrã com corcunda, com dois ramos metálicos de antena, preso numa caixa de grades, no canto da cafetaria, trazia a Cardoso imagens do seu país. Era um ecrã preso, falando de um país livre. A legenda obesa de letras das imagens afinava-se e saía pelas grades até aos olhos de Cardoso.

 

De súbito Cardoso recordou-se que era dia 22 de Novembro. Tinha a segunda volta da morte. Tinha de voltar a morrer. Arrumou-se, no café, deixou o valor da conta numa toalhinha de papel, bebeu as últimas imagens do ecrã preso, leu na necrologia do jornal a sua morte, algemou as palavras com os botões de balas e voltou a morte.

Em 1975, Moçambique alcançou a independência política e passou a ter uma representação política legítima e proveniente de uma revolução no verdadeiro sentido Marxista. Os novos representantes políticos construíram um Campo Político descrito por Pierre Bourdieu (1930 – 2002), pensador francês e detentor de uma vasta obra sobre ciências sociais e políticas, entre elas: O Poder Simbólico (1989), mas cujo Campo Político tem similaridades ao neo-maquiavelismo[1].

 

Na obra O Poder Simbólico, Pierre Bourdieu explica: "o Campo Político é entendido como um campo de forças e das lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento (…)" ou seja, “o Campo político é o lugar em que se geram a concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos (…)" (2007: p.164). Em outras palavras, Bourdieu pretende nos dizer que o Campo Político é um microcosmo que nos permite construir de maneira rigorosa e demonstrar como funciona a arena política, o jogo político e as lutas políticas.

 

Nesta perspectiva, segundo Bourdieu, entende-se por representação política um mundo social onde existem os profanos (o povo/as massas) que reconhecem que não têm competência de governar, dirigir ou gerir a coisa pública e entregam aos profissionais políticos para pegarem o leme do barco e colocarem o barco a navegar.

 

Acredita-se que, devidos às suas limitações epistemológicas sobre como funciona a coisa pública, os profanos prefiram permanecer como "agentes politicamente passivos", enquanto isso, os profissionais políticos, que a princípio devem ser figuras amplamente preparadas e munidas de ferramentas necessárias sobre como funciona o Campo Político e a representação política, possam ser "os agentes politicamente activos".

 

Segundo Pierre Bourdieu, devido a este reconhecimento e entrega do poder dos profanos em relação aos profissionais políticos, estes acabam ganhando a legitimidade e, por consequência, o monopólio da profissão política, uma vez que este tem "condições sociais da constituição da competência social e técnica que a participação activa na política exige" (BOURDIEU, 2007: p.164).

 

Pierre Bourdieu percebe que os profissionais políticos são individualidades altamente preparadas e dotadas de capacidades intelectuais acima da média. São pessoas capazes de fazerem intervenções públicas exaustivas e convincentes. Possuem conhecimentos em diversas áreas que lhes permitem fazer o jogo político e duplo de uma forma sagaz. São profissionais com uma retórica cientificada e com capital político elevado e que marcham dentro de uma estrutura institucional altamente burocratizada ou organizada.

 

Os profissionais políticos são homens polidos para o Campo da Política. Entretanto, na Pérola do Índico, já tivemos e existem alguns profissionais políticos com qualidades aproximadas a que Pierre Bourdieu elenca, mas também existem muitos amadores políticos que, mesmo tendo o aval dos profanos (o povo, o eleitor, os desfavorecidos), demonstram não estarem à altura daquilo que a representação política e o Campo Político exigem.

 

Na Pérola do Índico assistimos individualidades que, mesmo sendo porta-vozes de uma instituição política ou partidária, não possuem um discurso organizacional que o Campo Político emana. Não demonstram que os habitus culturais, sociais e políticos que organizações permanentes orientadas para a conquista do poder exigem. Demonstram que o poder que os profanos ou desfavorecidos lhes concederam para que tivessem um caminho livre de gerir a coisa pública ou mesmo representar-lhe não o merecem.

 

É importante que, na Pérola do Índico, os profanos saibam quem de facto os representa no Campo Político. Quem de facto possui legitimidade consciente para que, de cinco em cinco anos, possa renovar a nossa chama de esperança e contribuir para o nosso desenvolvimento humano, social, económico, cultural colectivo. Os profanos da Pérola do Índico não devem ser apolíticos, mesmo que os homens políticos e jornalistas políticos continuem a emitir opiniões programadas e com um determinado fim.

 

Os profanos da Pérola do Índico precisam de entender que, conforme defendia Bourdieu, "a vida política só pode ser comparada com um teatro se se pensar verdadeiramente a relação entre o partido e a classe, entre a luta das organizações políticas e a luta das classes, como uma relação propriamente simbólica" (2007: p.175).

 

No entanto, o que devemos entender no parágrafo acima é que tudo na política não passa de uma encenação, mesmo quando assistimos aos nossos representantes da "casa da demagogia", aparentemente a contra-atacar-se, devemos entender que, na realidade social, no mundo social que eles representam, aquilo é uma encenação. Tudo está a ser sistematicamente manipulado em função dos interesses dos grupos que os mesmos representam no Campo Político e dos pequenos grupos burgueses que eles incorporam no âmbito da representação política.

 

Os profanos da Pérola do Índico precisam de descobrir donde vem a luz do sol que ilumina a janela desta caverna platónica, para que saibam escolher quem de facto merece ter o monopólio profissional da política e como funciona a representação política e do Campo Político, para que passemos a ser representados por profissionais políticos à altura e com idoneidade, intelectualidade, responsabilidade, integridade e profissionalismo exigido.              

 

[1] Entende-se como o processo que caracterizou os novos políticos que surgiram a partir do ano de 1974 e que passaram a fazer suas carreiras dentro dos parâmetros de um maquiavelismo adaptado as circunstâncias democráticas. Um maquiavelismo com condimentos do realismo moderno, libertário e sem o uso de pressupostos extremos do maquiavelismo originário. Alias como defende Robert Michels (1971: p.299) que acompanha a natureza humana, que usa da apatia das massas e das multidões, permitindo com isso que haja o desenvolvimento das oligarquias. 

A 1500 metros de altitude, nos planaltos orientais do Zimbabwe, abaixo do monte Nyangani, nasce o rio Púnguè que, em escadaria, vai descendo das montanhas e depois de 400 km de serpentear, recolhendo águas de mais de cinco correntes afluentes, sedimentos e minérios das terras montanhosas a montante e resquícios valiosos de todas as populações (humana, animal e vegetal) que habitam a sua extensa bacia, vem desaguar calmo na cidade da Beira ao nível das águas do mar.

 

Este rio protagoniza, periodicamente, enchentes gigantescas que causam perdas enormes às populações, mas também sacia a sede de milhões de pessoas em Mutare (no Zimbabwe), Manica, Dondo e Beira, estando o seu nome, por isso, associado a contraditórios sentimentos de alegria e tristeza, seca e cheia, fartura e fome.

 

O seu nome representa um desafio constante ao génio humano moçambicano, na necessidade e esforço para dominar os rios de planície como o Zambeze, o Limpopo, o Púnguè, o Save, o Incomáti, o Licungo e, em pequena medida, o Lúrio; usar a força das suas correntes para energizar o desenvolvimento; acondicionar as suas águas para saciar a sede de pessoas, animais e plantas; fruir da geo-diversidade prazerosa nas suas bacias que são o esteio para milhares de espécies vivas e são o acolhimento propício para turistas e estudiosos da Natureza. Este desafio constante, sempre presente no subconsciente dos moçambicanos talvez tenha sido a motivação para que, das oito universidades públicas existentes em Moçambique, seis tenham nomes de rios moçambicanos (UniRovuma, UniLúrio, UniLicungo, UniZambeze, UniPúnguè e UniSave). 

 

Escrevi as palavras introdutórias deste texto, as que se leem acima, numa comunicação que saiu ao público junto do livro “Desafios e Possibilidades para o Alcance de uma Universidade de Excelência”, a convite da Universidade Púnguè.

 

Organizado pela Professora Doutora Emília Nhalevilo e seus colegas Edson Raso e Obete Madacussengua, trata-se de uma colectânea de catorze artigos ou capítulos de dezoito autores. Ele pretende ser o marco de partida na previsivelmente longa caminhada desta instituição de ensino universitário no país.

 

A mim, coube a parte de leão: a de falar, em jeito de apresentação, do livro escrito por docentes e amigos da UniPúnguè; do nosso livro. Entendi, das palavras do prefaciador, o ilustre Prof. Doutor Lourenço Lindonde, Vice-Reitor da UniPúnguè, que o título do livro provém de um desafio lançado pela Dra. Luísa Diogo, que escolheu este tema para desenvolver a primeira aula inaugural proferida para a comunidade universitária desta universidade, em 2020.

 

Ela desafiava a comunidade universitária da UniPúnguè a reflectir em conjunto, sobre o assunto, como que a sugerir uma bandhla constitutiva da universidade, para pensar sobre o caminho que a mesma deveria seguir, de modo a se tornar diferente de entre as cinco universidades iguais, irmãs, surgidas da reestruturação organizativa da Universidade Pedagógica de Moçambique. O resultado desta reflexão foi uma conferência subordinada a este tema que trouxe a visão colectiva de docentes e investigadores da UniPúnguè, feita a partir de diferentes perspectivas de análise e domínios científicos.

 

Escrever um meta-texto, que é um texto sobre outro texto, é por si só bastante difícil. Agrava-se isto se o autor do tal meta-texto for também participante da elaboração do texto inicial e vem se exacerbar quando o temário é vastíssimo e desafiador, integrando áreas de gestão, inovação, sociologia, teoria da pedagogia, psicologia, apenas para citar algumas áreas científicas que consegui descortinar.

 

Vou me esquivar do embaraço, usando três artimanhas metodológicas:

 

Primeira artimanha: Não irei apresentar de facto o livro. Até porque acho que seria um exercício fastidioso tendo em conta o excelente prefácio elaborado pelo Prof. Lindonde, veterano do ensino superior e da sua gestão em diversos contextos e que, de forma clara, resume a essência dos 14 capítulos que compõem a obra. A alternativa seria conduzir o auditório por uma leitura longa e enfadonha do mesmo prefácio, numa aula sem brilho e num exercício de plágio académico. Por isso e por muitos mais motivos, recomendo desde já, a leitura completa e crítica do livro, a toda a comunidade universitária.

 

Segunda artimanha: irei fugir de qualquer cronologia editorial e de qualquer lógica ordinal que seja, na discussão de temas sobre o livro, puxando para o caos qualquer leitor organizado e que esteja à priori à espera de um sequenciamento cadenciado de matérias, teorias, utopias...

 

Terceira artimanha: decorrendo da veleidade a que me permiti e que foi acima referida, irei apenas seleccionar três aspectos interessantes, retirados de diferentes partes do livro e divagar num comentário ténue acompanhado de algumas visões por eu considerar que constituem, no essencial, o leitmotif que atravessa esta obra longitudinalmente.

 

Assim, seleccionei as seguintes expressões: “Qualidade, Excelência e Inclusão para Transformação”; “Transição Demográfica” e “Universidade e Interversidade”. Desafio os leitores a encontrarem estas combinações de palavras no livro. Pretendo demonstrar que as três são a mesma expressão.

 

“Qualidade, Excelência e Inclusão para Transformação”. Estas palavras que juntas ou à parte aparecem mais de cem vezes no livro são sem dúvida a principal visão, a utopia que a direcção da UniPúnguè e a comunidade universitária pretendem que ilumine os seus caminhos. Nota-se uma certa identidade nos pontos de vista dos autores quanto à necessidade de qualquer universidade no século XXI ter que se moldar dentro destes parâmetros ideológico-programático-administrativos.

 

A existência do CNAQ como autoridade reguladora da qualidade, aqui definida de forma bastante objectiva como sendo o cumprimento de certos critérios e indicadores de desempenho, pode ser vista no mesmo âmbito de colocação de balizas bem tangíveis e mensuráveis a que Emília Nhalevilo chama de “universidades movidas por factores que evoluíram para universidades movidas por eficiência” e que, de alguma maneira resumem, do ponto de vista administrativo, o desiderato de qualidade, àquilo que os ingleses descrevem melhor por compliance.

 

A excelência, do mesmo modo, pode ser vista como um estágio de “qualidade máxima”, passando obrigatoriamente pelas fases mais baixas da busca da qualidade através do cumprimento dos indicadores e sempre almejando um nível mais alto de reconhecimento por algum sistema nacional ou internacional de ranking de universidades. O cliché completo que se usa é o de “centro de excelência” que caracteriza uma universidade ou unidade dentro da universidade exibindo uma organização administrativa excepcional, um desempenho dos recursos humanos formidável, um apetrechamento infraestrutural invejável, um acesso e uso de recursos extraordinário, para além de um reconhecimento transnacional.

 

Conhecem estes superlativos?

 

A inclusão, o termo mais recente neste trinómio, decorre das tendências sociais globais de democratização, reconhecimento das diferenças entre pessoas, participação, liberdade de opinião e etc., que constituem uma conquista do movimento da sociedade civil de todo o mundo e são muito aceites na praxis discursiva política da actualidade, mesmo que ainda representem um desafio para toda a humanidade assumi-las.

 

O segundo grupo de palavras, “Transição Demográfica” representa um conceito ultramoderno pois pode ser extrapolado para uma série de mudanças nos meios e factores de produção que devem ser feitas no âmbito desta mesma transição demográfica.

 

Encerrando em si, strictu sensu, a necessidade de mudança das pessoas que no dia-a-dia entram no campus universitário, na verdade podemos entendê-la como a abertura da universidade para alunos de todas as raças, tribos, géneros, crenças religiosas, posses económicas, portadores de qualquer diferença, acompanhado por uma diversidade e rejuvenescimento da comunidade universitária.

 

O termo da “transição demográfica”, porém, rima com outras “transições” sendo a mais importante delas, a “transição energética”, de que muito se falou muito recentemente em Glasgow na COP, uma reunião mundial sobre o ambiente.  Os desafios para atingir a transição energética para a neutralidade em relação ao carbono, irão implicar não apenas a mudança da matriz energética do ponto de vista de planificação para combustíveis mais limpos, mas também a mudança na filosofia da vida de toda a Humanidade, do padrão de consumo, dos conceitos básicos de riqueza e necessidades básicas, de desenvolvimento, etc.

 

A inércia deste sistema é grande. Esperem encontrar também. Igualmente, grande resistência para a transição demográfica.

 

O terceiro grupo de palavras, é o trocadilho “Universidade e Interversidade”. Ele chama atenção pelo antagonismo do “uni” e “inter”. Se o “uni” quer expressar o facto de as universidades terem que ser instituições monolíticas, com regras de existência bastante rígidas (acreditação, graduação, reconhecimento e validação, peer-review, currículos clássicos, laboratórios típicos, metodologia estanque de ensino), já o “inter” quer significar uma mescla entre instituições que são diferenciáveis (veja o “inter-nacional” é algo entre nações).

 

Esta necessidade de ser universidade e interversidade ao mesmo tempo, igual às outras, mas diferente de todas, local mas global (ou glocal) é abordada com rigor por Diogo, Nhalevilo e Uthui.

 

Diogo chama a atenção para a necessidade de o nome UniPúnguè ter que ultrapassar o nível de um nome (um nome atribui-se) para passar a ser uma marca, pois a marca conquista-se. Nhalevilo chama a atenção à necessidade de as universidades conquistarem a sua relevância junto da sociedade através da inovação e do reconhecimento de que small is beautiful, ou seja, pode-se inovar sem se estar dentro de laboratórios caros e com equipamento de ponta, desde que se preste atenção apenas às necessidades das populações (ao exemplo do inventor africano Mahomed Abba).

 

Numa outra parte, exploram-se os conceitos de diversidade, glocalidade e marca universitária da seguinte maneira (e passo a citar):

 

“A milha extra (extra mile)

 

Na nova imagem corporativa, o logotipo da UniPúnguè destaca a imponência do embondeiro, a firmeza da terra e o profundo azul das águas do rio. A grande árvore simboliza a solidez do conhecimento tradicional e da cultura dos povos destas terras e o dourado da terra – as riquezas do solo e subsolo. Já o leito do rio, desaguando em splash na árvore, desenhando os contornos de um grande livro, é o símbolo inequívoco do conhecimento positivo a ser gerado também pelas culturas, tradições e saberes dos povos que povoam a extensa bacia do Púnguè e têm a sua sobrevivência associada aos caprichos do grande rio.

 

A junção semiótica dos três sinais da natureza simboliza, para mim, a visão partilhada na nova universidade, de trazer o conhecimento tradicional para ajudar na geração de conhecimento universal, sempre de forma aberta (o livro aberto induz a esse sentimento), receptiva e dialógica entre os dois conhecimentos, uma teoria filosófica moderna para o caminho de desenvolvimento a seguir na época da globalização: a glocalidade (Castiano…).

 

A presença de uma estratégia muito clara e destacada neste plano de desenvolvimento institucional, realçando a forma como as ricas culturas dos povos da bacia do rio Púnguè podem ser trazidas para o diálogo privilegiado universitário, com outras muitas culturas mundiais, partilhando um espaço próprio que possibilite seu desenvolvimento, sua afirmação e divulgação, nas diversas áreas de saber como medicina, música, religiosidade e sistema de crenças, língua, história e estórias,  pode constituir o extra mile para este plano e desde já expressar o compromisso da liderança com a glocalidade.”

 

Comprem e leiam o livro!

 

Rogério Uthui

 

3 de Dezembro de 2021

quarta-feira, 08 dezembro 2021 07:51

A propósito do aeroporto de Gaza

Sábado passado, 4 de Dezembro, foi um dia muito especial para a nossa família. No Instituto Superior Politécnico de Gaza (ISPG), dois membros, no caso, sobrinhos, foram graduados após conquistarem o grau académico de licenciatura. Um, em engenharia hidráulica, agrícola e água rural; e a outra, menina, em contabilidade e auditoria. Alegria total, não é comum dois membros da mesma família serem graduados no mesmo dia! Aleluia!

 

A cerimónia teve lugar na localidade de Lionde, a cerca de 10 quilómetros da Vila Autárquica de Chókwè, e foi orientada pelo Secretário de Estado (SE) da Província de Gaza. Eu que sempre pensei que o ISPG ficasse dentro ou arredores de Chókwè… onde estudei e me formei como homem e comecei a minha carreira jornalística!

 

Decorreu das 9 horas até cerca das 12:30 horas. Foi bonita, muito bem organizada; discursos bem escritos, assertivos, comoventes. Distanciamento social… nem tanto! A intervenção do SE foi uma autêntica aula de sapiência não para os graduados ali presentes, mas para todos nós convidados. Fundamentalmente, desafiou os quadros que terminaram a formação para serem criativos, não ficarem à espera de emprego. Com as formações que tendes, engenharia agrícola, hidráulica, florestal, zootécnica, aquacultura, processamento de alimentos, economia agrária, agroecologia, contabilidade e auditoria e recursos humanos, vocês são uma potencial empresa. Associando-se, vocês constituem uma empresa e põem em prática todos os saberes que adquiriram aqui - apontou o Secretário de Estado. Recordou que Gaza é uma província com muito forte potencial agropecuário e que oportunidades de aplicação dos conhecimentos obtidos são muitas. Mas este não é o objecto desta crónica.

 

Para acompanhar os miúdos, sexta-feira, 3, cerca das 13 horas, lá nos fizemos (eu, minha esposa e filhos) a Xai-Xai, capital gazense onde habitam. O plano era pernoitar na capital provincial e, logo pela manhã de sábado, rumarmos ao antigo “celeiro da nação” para estarmos na cerimônia até uma hora antes. Assim pensado, assim executado. Às 5:20, lá nos pusemos na estrada. O local de onde partimos situa-se entre a cidade de Xai-Xai e a localidade de Chongoene, no meio entre os dois pontos.

 

Quando já na estrada e vendo que eu, que ia a conduzir, estava a tomar o sentido Xai-Xai-Macia, a menina interpela: “Tio, é melhor irmos via Chibuto!” Fiquei confuso, mas ela logo cuidou de clarificar. O troço Macia-Chókwè está péssimo… vamos levar muito tempo; ou vamos vias Xai-Xai-3 de Fevereiro-Chilembene-Lionde… ou Chibuto-Guijá-Chókwè… - explicou ela, enquanto eu paralisara o carro e afastara-o para a berma, à espera da direcção a tomar.

 

E a decisão foi ali rapidamente tomada: seguiríamos via Chibuto. Fariamos Xai-Xai/Chongoene-Chibuto-Guijá, depois para Chókwè. Em termos de distâncias concretas em quilômetros, iríamos fazer cerca de 140 quilômetros, contra os cerca de 112 que faríamos se saíssemos directamente de Xai-Xai para Lionde… Afinal nem é Chókwè, como o disse, o Instituto Superior Politecnico de Gaza não se localiza na vila de Chókwè, mas em Lionde, a cerca de dez quilômetros. Ou seja, mais uns 30 quilômetros a ida e outros tantos ao regresso… tudo para contornar um troço de cerca de 60 quilómetros, que custam justamente 60 milhões de dólares para reabilitar!...

 

Então, lá nos fizemos nós à estrada. De facto, o percurso está em boas condições. Xai-Xai até Chibuto, boa estrada, anda-se muito bem; de Chibuto a Guijá e depois Chókwè, também boa estrada! Agora, de Chókwè a Lionde, cerca de 10 quilômetros, como ficou dito, a estrada não está em condições e vai piorando até Macia… justamente o troço que pretendíamos evitar.

 

Lá fomos nós à nossa cerimónia de graduação, que, como referido, correu muito bem apesar do muito calor de 37 graus centígrados que se fazia sentir! Às 12:20, já estava a terminar e, depois de algumas fotografias, pegamos a estrada de regresso a Xai-Xai. Ainda deu para passar ver o novíssimo aeroporto!

 

Chegado ali, não houve o mais pequeno obstáculo; foi-nos permitido ver e fotografar! É uma obra. Perguntámos à funcionária aeroportuária que saiu da cancela para nos atender sobre o plano de voos… só sorriu!

O falecimento de Felismão Filimão, em todo bairro, só se soube uma semana depois. Foram as bolhas de cheiro que injectavam o bairro que despertaram a atenção de todos. As moscas drogadas pelo cheiro forte, que saía de um lugar que ainda não se sabia, desmaiavam de pernas ao ar em todo bairro como milicianos abatidos num combate.

 

O cheiro crescia, enrolado, nos becos do bairro tal qual sai enrolado o fumo de uma chaminé. Uma semana depois, um monte de moscas disputando a fechadura da porta de Felismão Filimão, moscas enormes, com antenas das bocas em riste, denunciaram a nascente do cheiro: saía do quarto minúsculo de Felismão Filimão. Fazia uma semana que não era visto secando a sua pele arranhada de tatuagens e seu corpo preso numa moldura de silêncio no seu quintal.

 

Felismão Filimão o mesmo que viveu em Portugal durante 16 anos. E quando regressou ao bairro tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens que nos mostrava por meio de relatos, gestos e estórias. De quando enchia-nos no seu quintal e ensinava-nos a cantar o fado; apertava-nos as bochechas contra os dentes para que as palavras vestissem o seu sotaque e metia-nos num jejum de respirar, por segundos, para podermos ganhar a força nos pulmões e acima recital o fado com beleza.

 

Arrombou-se a porta, as moscas entulharam-se no interior de casa; o corpo boquiaberto de Felismão Filimão encontra-se escoltado por um silêncio profundo e moscas raspavam-lhe o silêncio que se equilibrava nas teias da saliva consumida pela morte. Meu Deus, Felismão não era o mesmo; não fazia o bico com a boca para filtrar as vogais, não nos explicava as montanhas de Portugal pelas curvas das suas mãos e a bagagem do seu sotaque português tinha sido dissolvido em pó de silêncio.

 

Ninguém conhecia nenhum familiar de Felismão Filimão no bairro. A única família que tinha e conhecíamos pelas fotografias das suas palavras eram duas raparigas, mulatas, altas, que cursavam direito em Lisboa. Era a família que conhecíamos. Ninguém no bairro não conhecia a paisagem tipográfica de Lisboa; através de Felismão já conhecíamos a Rua Augusta, a Avenida da Liberdade, o Café A Brasileira colada na Rua Garret e já tínhamos passeado de calções curtindo o sol na beira do Rio Tejo na Ribeira das Naus.

 

Felismão Filimão falou-nos de racismo de Lisboa, dos africanos que corriam, dia e noite, pela cidade tentando tirar o “i” da sua condição de ilegais. Felismão foi enterrado e esquecido num cemitério como um cão sem dono e as suas filhas continuam estudando, em Lisboa, para tornar o mundo menos injusto com o seu Direito. Ao bairro, quando regressou, tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens; não avanço mais com o texto, tenho medo de perder-me na Rua cor-de-rosa e não ver Felismão explicando, pelos seus gestos enormes, o caminho de voltar.

Por conta da subida do preço dos combustíveis foi avançada uma proposta de ajuste em alta da tarifa de transporte urbano, ora em “banho-maria” por orientação superior do Ministério de tutela. No entanto, mais do que o ajuste ou não da tarifa, é preciso que se ajuste a implementação das soluções em curso com vista a melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo.

 

Das soluções em curso, a observação recai apenas sobre as soluções que foram a aposta recente governamental, nomeadamente o aumento da disponibilização de mais autocarros e a introdução da bilhética eletrónica.

 

Decorrente do debate público e da simples constatação ressalta que os efeitos desejados destas soluções estão aquém do desejado. A meu ver, elas pecam por terem sido implementadas dentro da actual estrutura operacional de provisão de serviços de transporte urbano, mormente os operadores públicos/municipais e os privados, estes por via das suas cooperativas/associações.

 

Uma alternativa para a sua implementação seria a de introduzir um novo conceito ou serviço no sistema de transporte urbano que viesse a constituir uma mais-valia na qualidade do serviço prestado. Este raciocínio parte da experiência positiva de um projecto privado de transporte ferro-rodoviário, denominado “MetroBus”, em implementação na área metropolitana de Maputo desde o ano de 2018. 

 

A entrada em funcionamento deste projecto – o tal novo conceito - consistiu nas mesmas soluções dos esforços governamentais: a introdução de novos meios (comboios e autocarros) e da bilhética eletrónica. De outro modo, caso os meios alocados e o serviço da bilhética fossem para serem implementados dentro da estrutura operacional existente, quer ferroviária quer rodoviária, tenho pouca fé que elas teriam logrado sucesso. Aliás, os factos falam por si. 

 

Em suma, a estratégia para a implementação dessas e de outras soluções passa por “não mexer o cancro” ao mesmo tempo que se criam condições alternativas para uma transição ou substituição paulatina do que é actualmente oferecido aos utentes de transporte público de passageiros em Maputo.

 

Quiçá, e para terminar, por que o Ministério de tutela não aproveita o defeso do ajuste da tarifa de transporte urbano e convoque uma reflexão da sociedade tendo em pauta, entre outras matérias, a necessidade de ajustar a forma de implementação das soluções (governamentais), quer as citadas quer de outras, em defesa da melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo e não só.