Quando o infortúnio lhe sobreveio, aos 84 anos, a 6 de Dezembro de 2013, nos arredores de Paris, avultavam, a favor de França, na biografia do poeta Virgílio de Lemos, 50 anos do seu porfiado exílio. Nascera na Ilha do Ibo, a 29 de Novembro de 1929, e pertencera ao escol dos poetas que se afirmaram nos anos ulteriores à Segunda Guerra Mundial em Moçambique, alguns dos quais, como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Orlando Mendes ou Rui Nogar, são responsáveis por intuir e instituir aquilo seria uma poesia de raiz marcadamente moçambicana. Apesar disso, o seu percurso e a sua poesia fazem-se por meios e características diversas daqueles.
Fátima Mendonça, num instigante ensaio de 1987 que estabelece uma periodização da literatura moçambicana, recolhido em Literatura Moçambicana – A História e as Escritas (1989), identifica-lhe proximidades ao surrealismo. Américo Nunes, num texto que antecede A Dimensão do Desejo (2009), fala de “uma experiência simultaneamente lúdica e trágica, erótica e profundamente desassossegada” da sua poesia: “Virgílio de Lemos é um lírico desdobrado de um metafísico.” Reconhece-lhe a “militância” anti-colonial e anti-fascista, mas “não é isso que traduz a essência da sua poesia”. Creio que Poemas do Tempo Presente (1960) não declina um espírito irreverente, contudo, não prossegue o que uma poesia como a de José Craveirinha ou Noémia de Sousa propugnam.
Craveirinha, numa remota entrevista a Michel Laban (Moçambique – Encontro com Escritores, I vol, 1998), não tergiversou quanto a dúvidas que chegou a ter sobre o papel e a personagem de Virgílio de Lemos: “Eram simplesmente dúvidas: de que lado é que o tipo está? E depois aquela coisa de ele pedir-me originais para pôr no jornal da Mocidade Portuguesa…” Aliás, Craveirinha declina quando este lhe propõe colaboração nas folhas “Msaho”, em 1952. Queria ver primeiro, contudo, “Msaho” soçobrou no primeiro número. Colaboram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira ou Ruy Guerra. Reinaldo pertencia, com Domingos de Azevedo e Virgílio, à coordenação da publicação. Da sua amizade com Reinaldo Ferreira, da sua cumplicidade, há um testemunho afectivo e poético de Virgílio.
Virgílio de Lemos foi preso duas vezes. Foi absolvido no caso da “capulana vermelha e verde” e condenado a 16 meses (o tempo que expendera na prisão) no caso de subversão. O seu ideário (chamou-lhe “crioulismo” ou “barroco estético dos moçambicanos”) passava, a seu ver, por uma amálgama cultural e uma vivência urbana que incluía “brancos, mistos, indianos, chineses e os pretos que dormiam no fundo dos quintais”. Casou com a artista Bertina Lopes (pai português e mãe moçambicana) e teve dois filhos. Contudo, em 1963, desfeito o laço matrimonial e cansado dos imbróglios com os esbirros e as impugnações destes, parte para o exílio. A África do Sul, onde estudara e vivera algum tempo, não lhe parece lugar auspicioso para tal desiderato. Aterra em Paris em Dezembro desse ano longínquo.
Michel Laban fez-lhe a pergunta que se impunha: “Poderia supor-se que, saindo tu da cadeia, te juntasses ao movimento nacionalista organizado…” A resposta de Virgílio de Lemos é honesta: “Cheguei aqui e fiz um balanço para mim. Verifiquei que acima das ideias do movimento de libertação nacionalista, eu devia valorizar a minha própria liberdade de pensamento e de acção, embora denunciando o colonialismo, o salazarismo.” Nada mais lídimo. Quando, por vezes, se fazem exabundantes afirmações sobre o dissentimento de Virgílio de Lemos, creio que vale lembrar a sua liberdade como poeta que lhe divisa a franquia. E respeitar isso. Por conseguinte, a este respeito, nada de pregões.
Era adepto do “barroco estético”, uma demanda que se inseria numa busca de antropofagia cultural baseada numa mestiçagem identitária, o tal crioulismo que ele sempre procurou. No frontispício do livro Negra Azul (1999), que é uma espécie poética de “Cahier d´um retour au pays natal” (Aimé Césaire dixit), fica explicitado: “retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco.”
Se é facto que retoma versos da sua dissensão (“bayete-bayete-bayete / à Kapulana vermelha e verde, / se subsistirem no tempo / capulanas de várias cores”), o que temos neste “regresso” é uma poesia sobre uma “cidade, na alucinada posse / que supera o irreal”, na “babilónia de gozos / frágeis luzes e amores”, ou “na solidão que o Infinito / transporta”, “o despertar do fogo e da orgia”, de quem “viveu teu corpo / por dentro” – “a erótica dimensão da noite”.
“O coração da cidade bate
nesta Baixa plural
Polana e Malhanga, Mafalala
e Malanga,
Zélias e Detinhas, Júlias
de grandes decotes e brincos.”
Ou ainda estes versos: “Olhos / de teu corpo / que deslizam dentro / da cidade / viagens pelas ancas / pelas pernas / fogos da cripta / que subvertem / o desejo.” É o retorno ao “mais feminino pôr-de-sol da minha infância”: “minhas mãos entre teus seios / tuas mãos em meus infernos / devaneios, girassóis.” Há, nesta poesia, de Negra Azul, essa “temporalidade sem tempo”, esse “espanto”, “como se adivinhasse as coisas / ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno / face à morte, seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites”.
É essa a ideia com que ficarei da sua poesia inicial, de um certo exotismo e de uma ideia erotizante de uma realidade muito mais problemática, complexa e inquietante. Provavelmente, uma ideia inexacta ou imperfeita. No livro de homenagem ao seu amigo de geração, o grande poeta Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos é mais metafísico e estabelece um vasto diálogo com poetas importantes na sua formação e afirmação. Com Reinaldo e na companhia do psiquiatra Fernando Ferreira liam poetas como Rainer Maria Rilke. Mas também Goethe (Wherter), Joyce ou Proust.
“Senta-te aqui Ricardo Reis entra neste jogo
e charla de café, ajuda-nos a irmos mais longe,
superar sonhos gregos e persas, e atravessar
gentes e línguas de oceanos, portos e ilhas.”
Este poema parece denunciar a sua ideia de “barroco estético” e aquilo que então Virgílio prossegue como ideário poético. Cito ainda do mesmo poema:
“Rangel meio chinês e grego, africano tal
os Nicolaus, Rui Guerra e Zé, afro-alentejanos
Cabo-Verdes e Algarves, Carlos Maria e
eu, Virgílio, vindos da malandragem, libertinos.”
Virgílio de Lemos irá escrever no fim do texto: “nós que vadiamos na descontracção de surrealismos, / somos lusismos, cubismos e dadaísmos das artes.” Fernando Pessoa, disse-o, mas também Cesário Verde, Sá Carneiro, Padre António Vieira, Guerra Junqueiro, Jorge de Sena, Camões – safra dos portugueses –, os brasileiros Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou João Cabral de Melo Neto, ou poetas como Cavafy, Borges, Mallarmé ou T. S. Eliot fazem a estiva da sua busca. Mas também a música, a pintura, a poesia, a língua. E sempre a presença de Reinaldo Ferreira.
Durban, Lisboa, Paris, Cidade do México, Alexandria, Ibo e Zanzibar. Cidades, ilhas, destinos da sua poesia, da sua metafísica e do seu incessante desassossego. Mas sobretudo esse mito chamado Ilha de Moçambique. Chega à ilha pela primeira vez em 1952, na companhia de Gilberto Freyre, com quem discute uma identidade culturalmente mestiça, crioula, apontando-lhe imperfeições no seu luso-tropicalismo.
“A cultura específica das ilhas é herança barroca”, declarará mais tarde. Ilha de Alberto de Lacerda (onde nasceu e escreverá versos iridescentes) e de Rui Knopfli (autor dessa belíssima A Ilha de Próspero), ilha que será de Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, anos mais tarde, ilha que fora de Camões ou Jorge de Sena, quatro séculos depois, sempre numa invenção poética, numa celebração da língua e da sua mitologia de exílio.
“ilha
que dorme na utopia
pródigo mito
da poesia.”
Estes versos estelares pertencem a Ilha de Moçambique – A língua é o exílio do que sonhas (1999). Ali, onde evoca “os deuses do mar à minha volta”, naquele lugar onde não foge do erotismo (“teu corpo é bruma” ou “sou erotismo / na vulcânica geografia”), onde vive um “incandescente êxtase”, uma “insondável magia”:
“Eu sou pássaro migrante,
das ilhas-mulheres singulares
nenhum corpo igual a outro corpo,
face ao mar o irreal navega.”
Ali onde o poeta viaja e se declara: “sou português swahili / sou celta judeu / não confúcio mas buda”, sempre “no erotismo entre oceanos e / palavras”, “na pátria do desejo”. Na mesma ilha onde homenageia Camões e Pessoa nestes belos versos:
“A ilha de amores é a casa dos mortos, a nau
habitada de infernos, tumultos, espantos, a gruta
dos fogos da alma e obsessões do corpo, culto
das rotas interiores. Solidão, medo e fim, erras
na bruma, sol e sedas do teu corpo, silêncios
e gritos, inventário de mitos, a beleza em busca
de si mesma, confiante, inquieta, fulgurante e neutra
interrogando-se acoplada ao destino em ti.”
Canto desse “mar tão exoticamente azul” e dessa “sensual sensação na sedução azul”, nessa “própria luz feita desejo”. “Nasceste do sonho e pelo sonho morrerás / na revolução que tu próprio estrangulaste. / Foste a Europa, o Império, o mundo foste / na mais erótica irisão do que inventaste.”
Se há uma poesia do Índico, se há uma tradição poética desse destino Oriental, desse Moçambique e desse Oceano, dessa viagem que inclui espaços e ilhas, destinos e espantos, que o poeta exprime nas suas várias línguas, que o poeta sagra e consagra em francês, inglês ou em português, nessa busca assombrada do mar e da sua fortuna – Para fazer um mar (2001) – , é nessa mesma poesia que Virgílio de Lemos faz a sua perquirição, na sua “osmose”, “no diálogo com os mortos”, na “luz oriental da volúpia”. Mas também o inventário das suas ilhas, dos seus mitos e duendes, da sua Ibo matricial, mas tudo o que “antropofagicamente” desencadeia a sua nostalgia poética, passional e iminentemente índica.
Essa nostalgia poética exprime-se e imprime-se luminosamente nesse Eroticus Moçambicanus (1999) demandado no Brasil e pelo entusiasmo de Carmen Lúcia Tindó. Ou em: Lisboa, oculto amor (2000). Do seu longo e obstinado exílio francês: Object à trouver (1988), L´obscene pensée d´Alice (1989) e L´aveugle et l´absurde (1990), livros que suspendem quase trinta anos de silêncio. Duarte Galvão, Bruno dos Reis ou Li Lee Yang, numa heterónima e numa incessante inventiva e busca de si próprio, “a cor, o traço, o som e o gesto”, da sua liberdade e da sua poesia, da sua alquimia, da sua rebeldia, da sua paixão, da sua aventura, do seu gozo e da sua solidão. “O existir feito / deserto e / caos”.
“Serei em tudo “barroco estético” ou nada.
Na fragilidade de palavras e silêncios,
Serei espaços de deslocação,
desconstrução, desenraizamento,
universalidade no singular e plural,
respiração no seio da tragédia
ficção e sonho.”
(Virgílio de Lemos, A Dimensão do Desejo)
KaMpfumo, 6 de Dezembro de 2023
“A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” É o que estabelece o artigo 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM), sob a epígrafe “Estado de Direito Democrático”, como um dos princípios fundamentais que norteia o Estado moçambicano.
Por seu turno, o n.º 3 do artigo 2 da CRM estabelece: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade.”
O Estado de Direito é um princípio fundamental complexo de protecção dos direitos humanos, da democracia e de realização da justiça por meios justos, com destaque para a igualdade, não discriminação e respeito pelas leis justas em contraposição com a aplicabilidade ou prevalência de condutas arbitrárias e de abuso de autoridade na administração do Estado nas suas vertentes política, social, económica e cultural.
Para a protecção do Estado de Direito Democrático joga papel importante a função jurisdicional, ora consagrada no artigo 211 da CRM, nos seguintes termos:
No entanto, estranha e curiosamente, o Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro, referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023, proferido pelo Conselho Constitucional, entanto que Instância Contenciosa Eleitoral Suprema, conforme se outorga, furta-se à sua função jurisdicional na protecção do Estado de Direito Democrático. Primeiro, na medida em que encobre ilegalidades graves praticadas no processo eleitoral, sobretudo pela Comissão Nacional de Eleições. Segundo e mais grave ainda, na medida em que o próprio Conselho Constitucional pratica actos fora das suas competências, ao proceder à recontagem dos votos de forma obscura e ao alterar os resultados eleitorais, em clara violação dos princípios da liberdade eleitoral, justiça eleitoral e da transparência eleitoral. Aliás, o Conselho Constitucional vai mais longe no seu acto de “execução sumária” do Estado de Direito Democrático ao não respeitar o princípio da fundamentação das suas decisões vertidas no Acórdão em questão e abusar do seu poder jurisdicional sob a capa de que os seus Acórdãos são irrecorríveis.
Por definição, nos termos do disposto no artigo 240 da CRM, “o Conselho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.” Ora, no caso vertente, a democracia, o Estado de Direito Democrático, a liberdade e justiça eleitoral são matérias de natureza jurídico constitucional que carecem de protecção jurisdicional efectiva quando ameaçados ou violados. Infelizmente, esses princípios mostram-se violados pelo Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro do Conselho Constitucional sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023.
Nessa perspectiva, a questão que se coloca é a seguinte: Quando um Acórdão do Conselho Constitucional, que é irrecorrível, viola a democracia ou o Estado de Direito Democrático, como garantir e efectivar a protecção jurisdicional da mesma democracia ou do Estado de Direito Democrático? Será esse Acórdão juridicamente válido?
De acordo com o n.º 1 do artigo 247 da CRM, “os Acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.”
Em bom rigor, ainda que o Acórdão do Conselho Constitucional seja irrecorrível, para que o mesmo seja de cumprimento obrigatório deve ser válido, o que não é possível quando o conteúdo desse Acórdão viola a democracia ou o Estado de Direito Democrático e é proferido com violação das competências legais do seu autor. Doutro modo, é assumir existência de grave fragilidade na protecção jurisdicional da democracia e do Estado de Direito Democrático no ordenamento jurídico moçambicano. E, mais do que isso, é atribuir um cheque em branco ao Conselho Constitucional para, querendo, abusar do poder ou da sua função jurisdicional nas suas decisões com a alegação de que os seus Acórdãos são irrecorríveis, conforme é o caso em apreço, o que é juridicamente incoerente ou um absurdo jurídico à luz do princípio da justiça, último fim do Direito.
Nenhuma decisão judicial é válida, intocável, inalterável e prevalecente quando viola sobremaneira os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, conforme é o caso do Estado de Direito Democrático, “sumariamente executado” no Acórdão supra referido do Conselho Constitucional por razões ora desconhecidas, até porque parte significativa do mesmo Acórdão carece de fundamento legal sobre as decisões tomadas.
O princípio da irrecorribilidade dos Acórdãos do Conselho Constitucional ou de qualquer outro órgão jurisdicional não se sobrepõe aos alicerces constitucionais da República de Moçambique, entanto que Estado independente, soberano, democrático e de justiça social, sob pena de legalização da hipoteca do Estado moçambicano. A título de exemplo, não há, pois, como o Conselho Constitucional proferir um Acórdão na língua inglesa e o mesmo prevalecer como válido, porque irrecorrível, uma vez estar em causa a violação do princípio fundamental previsto no artigo 10 da CRM que estabelece: “Na República de Moçambique, a língua portuguesa é a língua oficial.”
Em jeito de conclusão, vale aqui deixar a seguinte citação adaptada: “Quando tudo isto falhar, então já não há Estado de Direito. Ter-se-ão posto em causa todos os fundamentos do Estado de Direito. Na verdade, num Estado de Direito não é admissível, seja por que motivo for, que o judiciário se recuse a respeitar os princípios fundamentais da República. O judiciário não pode nem se deve colocar acima ou fora do Direito e isto acontece quando se recusa a materializar o Estado de Direito Democrático. Nos Estados de Direito modernos, isto é tido como uma aberração, um atavismo que a História se recusa a repetir. Ao se atingir este estádio patológico de nada servirão os discursos políticos de ocasião nem a existência de pseudo-instituições democráticas e jurisdicionais porque todos os alicerces do Estado, da sociedade civil e política estarão minados e destruídos. Os tempos de “L’ État c’est moi” servem apenas como exemplos de História, não se admitindo a existência de esclarecidos ou déspotas que a tudo comandam e dirigem a seu bel-prazer e situados acima ou fora das balizas do Direito.” Adaptado do livro de Alfredo Chambule, As garantias dos Particulares, Volume I, Imprensa Universitária, 2002, pag. 209.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
O n.º 1 do artigo 144 da Lei n.º 14/2018 de 18 de Novembro, que altera e republica a Lei n.º 7/2018, de 3 de Agosto (Lei Eleitoral) estabelece:
“A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.”
Da análise minuciosa do Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro, referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023, é fácil perceber uma série de ilegalidades e/ou irregularidades que caracterizam este processo eleitoral, até mesmo praticado pelo próprio Conselho Constitucional, em certa medida. Na verdade, deste órgão de soberania de natureza jurisdicional, que se intitula de Instância Contenciosa Eleitoral Suprema em matéria eleitoral, o povo muito esperava que materializasse o desiderato do Estado de Direito Democrático, pelo respeito e aplicação dos principais princípios que norteiam as eleições em Moçambique, com cunho constitucional, mormente: Liberdade, justeza e transparência – eleições livres, justas e transparentes.
Quanto à deliberação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) de 26 de Outubro
O Acórdão do Conselho Constitucional sobre a validação dos resultados eleitorais em questão, de entre outros aspectos relevantes, teve por base a deliberação da CNE de 26 de Outubro atinente à Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023.
No entanto, esta deliberação da CNE é deveras contestada por várias razões, incluindo o facto de ser emanada num contexto tanto de pendência de processos judiciais de contestação dos resultados eleitorais em determinadas assembleias de votos ou autarquias, como de falta de editais originais e em certas situações não assinadas, o que põe em causa a integridade das eleições, particularmente a liberdade, justeza e transparência das mesmas. Não há, pois, dúvidas sobre a gravidade da CNE proceder ao apuramento geral dos resultados sem a totalidade dos editais originais, nos termos da Lei Eleitoral.
Era mister que o Conselho Constitucional se pronunciasse, detalhadamente, sobre a consequência jurídica, senão a validade da deliberação da CNE submetida ao Conselho Constitucional com uma série de irregularidades desde a falta de editais originais e desconsideração de processos judiciais pendentes sobre estas eleições. Um autêntico abuso ao poder judicial.
Mais do que isso, é que a deliberação da CNE atinente à Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023 foi proclamada num contexto de alegações fundamentadas de aparecimento de boletins de voto (às vezes pré-votados), provenientes de entidades estranhas ao pessoal da administração eleitoral, conforme faz referência o Conselho Constitucional no seu Acórdão de Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023. Aliás, casos houve em que as actas e os respectivos editais não foram imediatamente publicados no local de funcionamento, através da cópia original, devidamente assinada e carimbada pelos membros das mesas, conforme manda a Lei Eleitoral, aquando do apuramento parcial nas mesas das assembleias de voto.
Ora, a deliberação da CNE em questão foi feita num contexto de ilegalidades, de falta de transparência e de desrespeito ao interesse público que é o norte do Estado de Direito Democrático que caracteriza Moçambique. Mesmo o processo de subscrição da deliberação e acta do apuramento geral dos resultados destas eleições autárquicas foi problemático e obscuro, deixando a CNE em total descrédito aos olhos dos cidadãos.
Em bom rigor, a CNE furtou-se ao apuramento geral das irregularidades e ilegalidades eleitorais e à avaliação da gravidade das mesmas com vista a proferir uma deliberação sobre a Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023 que espelha a justiça eleitoral, a transparência eleitoral e a liberdade eleitoral.
Quanto à relevância das constatações dos Observadores Eleitorais
O Acórdão em referência reconhece que “os observadores eleitorais são um mecanismo que ajuda a aumentar a confiança da comunidade nacional e internacional nos processos eleitorais, promovendo a transparência, a participação cidadã e a condução democrática das eleições...” No entanto, não se refere em que medida os relatórios dos 133 observadores, dos quais 76 estrangeiros e 57 nacionais, informaram e influenciaram o Conselho Constitucional a validar os resultados das eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023 nos termos em que o fez.
Aliás, vale aqui lembrar que alguns desses observadores denunciaram situações de irregularidades e ilegalidades eleitorais graves no processo da votação e de apuramento da votação, para além de terem procedido à contagem paralela dos votos que mostra tendência diversa da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do próprio Conselho Constitucional. Assim, era desejável e obrigatório que o Conselho Constitucional se pronunciasse sobre essas irregularidades e contagem paralela se de facto os Observadores Eleitorais ajudam na promoção da transparência, participação cidadã e condução democrática das eleições conforme refere, expressa e inequivocamente, no seu Acórdão supra indicado.
Atendendo aos princípios da transparência, liberdade e justeza que norteiam todo o processo eleitoral, o Conselho Constitucional tinha a obrigação legal de se pronunciar sobre a veracidade e/ou sustentabilidade das alegações de irregularidades e ilegalidades trazidas pelos Observadores Eleitorais, tomando posição sobre em que medida as mesmas preenchem o requisito de ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição, conforme previsto no n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral.
Quanto à recontagem de votos pelo Conselho Constitucional
Da análise do Acórdão de Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023 proferido pelo Conselho Constitucional, nota-se que este órgão de soberania procedeu à recontagem dos votos em determinadas autarquias, na medida em que concluiu, alegadamente, com base em elementos probatórios suficientes, alterar os resultados do apuramento geral dos municípios da Matola-Rio, de Quelimane, de Chiúre, de Alto-Molócuè, de Xai-Xai, da Matola, de Marracuene, de Vilankulo e da Cidade de Maputo. Curiosamente, não são do domínio público tais elementos probatórios suficientes.
No entanto, por uma questão de materialização da transparência e justiça eleitoral, é estranho e inaceitável que o Conselho Constitucional não faça referência à base legal da competência para alteração dos resultados do apuramento geral, mesmo sabendo que as suas competências devem resultar expressa e inequivocamente da lei, sem qualquer espaço para presunção de competências.
A alteração dos resultados na medida feita pelo Conselho Constitucional, nos municípios supra referidos, não deixa margem de dúvidas de existência de irregularidades e ilegalidades graves no processo do apuramento dos resultados que influíram substancialmente no resultado geral da eleição e que devia dar lugar à nulidade das eleições e a consequente repetição, em respeito ao artigo 144 da Lei Eleitoral, uma vez haver elementos objectivos para o efeito. A alteração de mandatos eleitorais nos termos, ilegalmente, feitos pelo Conselho Constitucional é reveladora de cometimento de ilegalidades graves que alteram substancialmente o resultado geral da eleição.
Mais grave ainda é o facto de o Conselho Constitucional vir declarar o Partido RENAMO como vencedor de determinadas autarquias e não justificar a razão pela qual não declarou a nulidade das eleições nesses municípios ao abrigo do artigo 144 da Lei Eleitoral, uma vez que as ilegalidades constatadas influem substancialmente no resultado geral da eleição, chegando ao ponto de se declarar um novo vencedor!
Afinal, os requisitos previstos no artigo 144 da Lei Eleitoral para a nulidade e repetição das eleições devem ser analisados com base em critérios objectivos ou subjectivos? O Conselho Constitucional dá a entender que se trata de critérios subjectivos ao optar pela via subjectiva de forma atabalhoada e ilegal?
Concluindo
O Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023 do Conselho Constitucional, mais do que violar os princípios da liberdade, justeza e transparência eleitoral de forma gravosa, não materializou do desiderato constitucional do Estado de Direito Democrático e não assegurou que os resultados espelhem a vontade do eleitorado.Ademais, o Acórdão em causa violou o disposto no artigo 144 da Lei Eleitoral que determina:
Há, pois, elementos bastantes que justificam a invalidade do Acórdão do Conselho Constitucional em ataque por estar inquinado de vício de nulidade ou de inexistência jurídica, com as devidas consequências. Trata-se na verdade de um Acórdão que envergonha as escolas de Direito, descredibiliza o judiciário e o sistema de justiça e dá sérios golpes ao princípio do Estado de Direito Democrático ao premiar abusos ao processo eleitoral e à democracia.
Infelizmente, trata-se de um assunto sensível e que por estar ligado a questões de Poder num contexto político violento que é Moçambique dá lugar à violação de direitos humanos, incluindo intimidações e morte por assassinato. Mas o debate civilizado, sereno e abrangente sobre o Estado de Direito Democrático e justiça eleitoral não deve parar de modo que os objectivos fundamentais do Estado constante do artigo 11 da Constituição da República sejam materializado, designadamente:
a) a defesa da independência e da soberania;
b) a consolidação da unidade nacional;
c) a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos;
d) a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país;
e) a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei;
f) o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual;
g) a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz;
h) o desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica;
i) a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio- culturais;
j) o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Certamente que o leitor esteja a pensar que o título tem a ver com o vencedor das sextas eleições autárquicas de 11 de Outubro. É possível, mas o que me ocorre é a vitória de um certo general da história universal que eu lera, salvo erro, em um escrito do sociólogo Elísio Macamo.
No citado escrito, que já não me lembro com detalhe o conteúdo, é relatado que algures no mundo, e em tempos idos, um chefe militar quis oferecer uma vitória ao seu rei, conquistando a ferro e fogo a terra de um homólogo e arqui-inimigo do seu rei.
Quando do reporte (fatídico) da vitória, que se saldara na perca de mais de ¾ do efectivo do exército, incluindo reservistas, e na incapacidade do grosso que restara, o rei disse ao seu general: “Mais uma vitória igual a esta será o nosso fim”.
No lugar da celebração, um aviso à navegação. Por sinal, um aviso que atesta que a suspeita inicial do leitor não fora por mera coincidência.
Nando Menete publica às segundas-feiras
Gustavo Mabebe fora durante longos anos um verdadeiro metropolitano, moldou o seu carácter graças ao meio em que vivia; a cidade de Maputo dera-lhe oportunidades ímpares de lidar com a grande nata intelectual do seu país, desde filósofos, sociólogos, músicos, escritores, cineastas entre outros.
As conversas de café e restaurantes permitia-lhe alicerçar o seu intelecto, era um ouvinte paciente, até mesmo um escutador de silêncios, sempre que as cavaqueiras pausavam.
O bairro onde vivia permitia-lhe fazer caminhadas solenes, desapressado e descobrir um novo café, reencontrar um amigo e fazer novas amizades, havia uma intimidade profunda entre ele e a cidade.
Dos seus conhecidos aprendeu a apreciar o agradável aroma emanado pelos fumadores de cachimbo, essa apreciação tornou-se logo uma paixão, e mais tarde ele tornara-se também um fumador, gostava de acomodar-se num canto de um café ou restaurante e desfrutar do poder que o cachimbo tem de levar alguém a abstrair-se completamente da realidade material do mundo e viajar além galáxias e experimentar uma sensação onírica ímpar.
Por conta dos malabarismos sociais, abriu-se uma janela e ele teve que se mudar para um bairro suburbano a mais de vinte e cinco quilómetros do centro da cidade.
O processo de adaptação foi deveras penoso, apartado dos seus lugares habituais, Mabebe deambulava pela ruelas irregulares de areal do bairro e deparava-se com imponentes moradias de alvenaria que se revezavam com casas de cimento inacabadas, cruzava com meninos andrajosos que levantavam poeira nas suas corridas desenfreadas a caminho de uma missão comandada por um mais velho da casa, empurradores de “txovas” aceleravam os seus veículos carregados de mercadoria, o processo de assimilação terminava quando já estafado voltava para casa.
O cântico vespertino e matutino dos pássaros estacionados nos galhos das árvores era um dos únicos elementos compensadores da sua realidade suburbana, para além do silêncio que abraçava o bairro no final da tarde e princípio da noite.
Um saudosismo passeava pela sua mente, lembrava-se dos lugares da cidade, as conversas com os seus iluminados amigos.
Das suas diligências inquiridoras pelo bairro por vezes descobria uma barraca, acomodava-se, tomava uma cerveja, dava umas cachimbadas, sempre só, aliás com ele mesmo e as suas memórias. Por vezes um fulano descontraído aproximava-se e metia conversa, ele geria o papo em volta do assunto avançado pelo seu interlocutor, sem impor o seu ponto de vista.
A barraca “Lurdes” havia inaugurado recentemente a sua majestosa esplanada, decorada com toques rústicos; o bairro parou contaminado pelo ambiente festivo, um renomado músico que viu a sua fama emporcalhada por um escândalo ofereceu os seus dotes artísticos para animar os clientes que se fizeram presentes.
Depois da inauguração, a esplanada era o lugar mais aprazível de estar-se, quer para tomar uma bebida ou para degustar de um bom acepipe, aliás era o único lugar perto de sua casa onde podia desfrutar de uma boa chávena de café.
Numa sexta-feira soalheira, pelo final da tarde, Gustavo decidiu ir tomar uma bebida na barraca “Lurdes”
Chegou e foi prontamente atendido, quando se sentiu refrescado, levou a boquilha do cachimbo para a boca, segurou com a mão esquerda a base, introduziu tabaco no fornilho e com a mão direita manuseou o isqueiro fazendo rolar a roda dentada e de seguida pressionou o disparador, a faísca atingiu o gás contido no tambor, depois de alguma insistência o tabaco ardeu e foi crepitando no interior do fornilho.
O fumo do tabaco viajava pelo corpo cavo do cachimbo e entrava boca adentro do fumador, este expelia o fumo que se evolava esplanada afora impregnando o ambiente com o seu aroma.
A combinação entre o fumar e tomar uma bebida num lugar agradável levava-lhe a uma completa descontração.
Quatro marmanjos ocupavam uma mesa, um deles monopolizava a conversa escutada atentamente pelos demais. Quando o fumo aromático os atingiu-os, fez-se um silêncio repentino, ficaram meio extasiados, como que hipnotizados.
Quando o efeito se dissipou, o jovem falador fez uma investida ao encontro de Mabebe, interrompendo o desfrute e tranquilidade deste.
- O que o senhor esta a fumar? – questionou incisivo.
- Boa tarde! – disse calmamente Gustavo. – posso saber quem pergunta?
O homenzinho pôs a mão no bolso e tirou a sua carteira, e exibiu o seu distintivo.
“João Cassanga, sargento principal” leu Gustavo.
- Fumo, “captain black royal” – afirmou seguro Mabebe.
- Parece-me uma variedade de suruma. – afirmou irreverente o bufinho.
- Pode crer que não é! – disse Gustavo. Para de seguida dar um trago na sua bebida e voltar a dar uma cachimbada.
O acto executado por Gustavo constitui uma afronta para o bufinho.
Uma pequena turba ia dando atenção ao debate, a medida que a assistência aumentava, o tom de voz do sargento principal subia, interferindo já com a música tocada no interior.
Quando os seus argumentos esgotaram, ele afastou-se o suficiente para não ser ouvido, pegou no telemóvel e fez uma chamada.
Instantes depois os clientes da barraca ouviram um som estridente coibindo a música que ouviam, a discussão entre Gustavo e o polícia havia cessado há pouco mais de 15 minutos.
A medida que o tempo passava, o som aproximava-se, até descobrirem o carro da polícia que para além da sirene, o pirilampo riscava o céu azul do fim de tarde.
Agentes armados até aos cabelos saltaram da carroçaria empunhando os seus fuzis, o chefe interagiu prontamente com João, este por sua vez apontou para Gustavo e dois polícias marcharam na sua direcção.
A música havia parado, as atenções estavam voltadas para a acção protagonizada pela polícia que escoltava o gajo do cachimbo.
Uma viatura parou bruscamente defronte da entrada principal da tasca. O condutor pulou do seu acento e abriu a porta traseira, o seu ocupante apeou-se, tirou da sua bolsa o seu cachimbo e acendeu-o, deu duas cachimbadas e só então iniciou a caminhada em direcção ao interior.
O grupo de polícias que escoltava Gustavo seguiam na vanguarda e logo no seu encalço vinha o chefe operativo acompanhado de João.
Quando o chefe da polícia divisou o cavalheiro que acabava de chegar, este sempre de cachimbo na boca, interrompeu a sua marcha, firmou os pés no solo, sacudiu uma ruidosa continência.
- Quem é ? – perguntou João.
- Não conheces, é novo comandante distrital da polícia. – respondeu o seu colega.
Quando o chefe da polícia alcançou o carro patrulha, os seus colegas pediam que Gustava subisse.
- Deixem o ir. – comandou o chefe.
O agente a paisana encolheu o seu orgulho entre as pernas e decidiu ir-se embora, enquanto isso Gustavo regressou a esplanada pediu outra bebida, reacendeu o seu cachimbo e deu largas baforadas enquanto desfrutava do ambiente.