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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

segunda-feira, 12 setembro 2022 08:52

Os meus ídolos no futebol continuam os mesmos

AlexandreChauqueNova

Renato Caldeira, um dos jornalistas desportivos mais fervorosos e competentes da nossa história, publicou em 1994, no jornal “Desafio”, uma reportagem sobre a transferência de Chiquinho Conde, de Moçambique para Portugal, e chamou um emocionante título para o texto, que fez escorrer o coração: “Hambanine m´fana!” (Adeus rapaz!). Tratava-se – a partida desse irreverente beirense -  do abrir tardio  da página de um livro que ficou fechado cerca de duas décadas, desde que a Independência de Moçambique chegou, e impediu que muitos jogadores do nosso país fossem brilhar em grandes estádios do mundo. Onde a glória lhes esperava. Em vão.

 

Mas Chiquinho batia as asas numa altura em que o nosso futebol parecia estar a apresentar em palco, os últimos números de um espectáculo corporizado por grandes actores, nascidos para jogar no cimo da montanha, porque depois as luzes começaram a ter falta de néon. O Estádio da Machava, em si mesmo, foi perdendo a aura da grande catedral que era, pois já escasseavam futebolistas da jaez daqueles que tinham “pendurado as botas” por força irrecusável da idade. Então teve início o declínio, que dá a sensação de estar a prolongar-se até aos dias de hoje.

 

Jamais foram necessários os espectáculos de música nos campos para a convocação das massas.  Não serão os paraquediastas o centro das atenções, esses eram lançados em agradecimento aos briosos jogadores e ao público que invadia o vale do Infulene aos magotes, na  ânsia e na certeza de que seria brindado por um jogo da primeira linha. Não eram esses condimentos que arrastavam os sedentos, era o próprio futebol. Porém, hoje, o chamariz de cartaz  para o Estádio do Zimpeto,  é a Liloca e suas bailarinas. Isso signifia que estamos a descer por um carreiro íngreme.

 

Antes do jogo do Black Bulls, frente ao Petro Atlético de Luanda, os dirigentes do clube local vieram a terreiro aliciar as pessoas, prometendo surpresas – que seriam do tipo Liloca e outras - no Zimpeto. Isto deixa claro que eles sabiam que a equipa por si só, não teria força mobilizadora, ninguém vai acreditar nela. No tempo que antecedeu o Chiquinho Conde e no tempo dele também, quem aliciava era a qualidade do futebo apresentado. Pena é que alguém entendeu que esses jogadores de quem temos saudades, deviam ser enclausurados e grilhetados.

 

Quando chegou aqui o Victor Bondarenko, disse – numa entrevista ao Homero Lobo, no jornal “Desafio” – que queria fazer do Matchedje, um conjunto de elite, e que com este conjunto chegaria longe. Homero não acreditou no que Bondarenko dizia, mas não demorou muito e o russo levou a equipa às meias finais do “Africano de Clubes”. Estávamos numa época de ouro. Se calhar no auge. Os jogadores eram escolhidos a dedo e colocados nos escaparates onde superavam todas as expectativas.

 

Será necessária uma enciclopédia para incorporar todos aqueles jogadores de fina estirpe, e falar da história de cada um, apesar de não lhes ter sido permitido o voo para outras terras. Fecharam-lhes o espaço. Cortaram-lhes as asas, como ao belo  Mugubani do Salimo Mohamed. Mesmo assim, os seus nomes vão ressoar para sempre na memória do futebol moçambicano. Lembrar-nos-emos das tardes e noites inolvidáveis no Estádio da Machava, onde os adolescentes e adultos que não tinha dinheiro para aceder ao recinto de jogos, penduravam-se nas torres de electricidade. Ainda havia uma bancada para os “sócios” da Federação, que eram os miúdos deixados entrar gratuitamente para aplaudirem os craques.

 

Hoje já não há euforia nos campos. Não há entusiasmo. E se não há tudo isso, não nos resta outro caminho que não seja o de continuarmos a fumar o ópio deixado pelos nossos ídolos, que continuam os mesmos!

segunda-feira, 29 agosto 2022 08:55

Tsivanene: a bela lagoa sufocada

AlexandreChauqueNova

Seria um lugar privilegiado de contemplação, não fosse aquela invasão toda de casas precárias que vão até à água, e as machambas que sugam  essa mesma água. Há outras construções, ainda, erguidas ao gosto dos donos, à volta da lagoa de Tsivanene, sufocando uma paisagem que pertence a todos os munícipes da cidade de Inhambane, porém, agora desfrutada por poucos.

 

Tsivanene já foi um  paraíso, um ponto de encontro onde as mulheres – antes de haver água canalizada para as casas da maioria  - iam lavar a roupa, que saía perfumada pelas plantas de nenufen, abundantes nesse tempo. Era um espaço livre, espectacular, com dunas a debruarem -no, num perímetro de cerca de dois quilómetros de comprimento, e talvez pouco mais de meio quilómetro de largura. Mas hoje, toda a beleza natural que ali existia, foi encoberta.

 

Ainda há pouco passei por Tsivanene, com o propósito de buscar lembranças de um tempo que deixa saudade. Íamos, na companhia das nossas mães, banharmo-nos em mergulhos inocentes, cheios de entusiasmo, enquanto elas – as nossas projenitoras – lavavam a roupa, entretidas e alegres, em conversas sem fim. Sabia do que me esperava. Tinha consciência do choque que me atingiria ao não poder parar de determinada distância e assistir a uma maravilha ora mais do que esquecida. Destruída!

 

Fui à Tsivanene, como tenho ido a muitos sítios da minha cidade, em passeios livres, sempre que as oportunidades se me oferecem, e saí de lá profundamente esfaqueado na alma. Senti que é um espaço que podia merecer melhor tratamento, onde as construções deviam ser feitas a uma distância recomendável, à mistura com algumas casas de pasto e esplanadas para dar regalo ao espírito, à mente, e ao corpo.

 

Tsivanene podia ser limpo, talvez dragado, a pensar-se em canoas desportivas, há condições para isso. Seria um retiro da juventude, e não só, já que dentro da cidade não temos visto casais a passear abraçados aos fins-de-semana. Inhambane não são só as praias espalhas ao longo do Índico, entre Barra e Guindjata, passando por Tofo. Aqui também poderiamlos aliviar as cargas do trabalho que nos ocupa ao longo da semana.

 

Tsivanene  fica  perto do Aeroporto. Seria acessível e lindo, se alguém tomasse a responsabilidade de mudar as coisas como estão,  e levá-las  a um sonho que é possível realizar. Para gáudio  de todos os manhambanas, e daqueles que nos viriam visitar.

terça-feira, 16 agosto 2022 08:51

Em memória desses velhos manhambanas

AlexandreChauqueNova

Hoje está um dia solarento, polvilhado de pássaros diversos que incluem as fugidias rolas, que não se cansam de me visitar nas manhãs e nas tardes, arrulhando parábolas. Minha casa é um porto de chegada, e depois de partida dessas aves, e eu sou o ponto de referência das mesmas. Conhecem o meu cheiro. Mas eu quero sair. Andar por aí à toa sem me importar com os ponteiros do relógio, sinto um desejo ardente de liberdade.

 

Então, aí vou eu, um andarilho despreocupado, vestindo calções de ganga, uma camisa qualquer tirada da mala ao calha, um par de sandálias de napa, e um chapéu a Pablo Neruda, sinto-me confortável assim. Até porque dentro de mim existem muitos “eus” que me dão sustento na mesma proporção. De graça. Sou eu, o vagabundo da Fonte Azul, que nunca amealhou nada, e pensa que as palavras são bastantes.

 

Estou em frente à casa de Cassiano Ratagi, mas aqui ao lado viveu o senhor Matias, pai do jornalista Leonel Matias e, ainda encostado aos dois, avultava o Lóngwè, tenaz defesa do clube Beira-Mar, nos tempos em que o futebol em Inhambane era o hino das massas, pela elevada qualidade que assumia. Eu era um fedelho na altura em que estes três personagens reverberavam, cada um tocando a sua nota de piano. E eis que, ao pé da casa onde viveram, sorrio ao recordar-me desses momentos inolvidáveis.

 

Mas eu estou a caminhar.  Ao léu. Sem outro propósito que não seja o de abstrair-me das dores, ao mesmo tempo que desfruto do sol que me vai aquecendo o corpo e o coração. Estou a voar como os pássaros que deixei em casa, e agora encontro-me na rua do Brehemo Guifototo, antigo árbitro de futebol, que será também lembrado pelo seu Peugeot 403. É como se estivesse a vê-lo. À ele e ao seu vizinho, o Giló, um homem distante. Discreto.

 

Isto é um filme buscado de aquivos de ouro, e eu estou vivendo esse filme ao vivo, como narrador-personagem, pois, se assim não fosse, não me lembraria de nada, como agora que me embrenho nos becos Chalambe em direcção à casa onde morava Vangyane, a mãe da Guegué. É aqui onde vinhamos nos esborrachar com sura, e essas histórias todas fazem-me reviver um tempo que não volta mais. Nem essas figuras que estou evocando, voltarão alguma vez, a não ser por via da memória.

 

Se calhar estou louco, não sei se faz sentido andar por aí a esgravatar os mortos, mas isso leva-me à lua. Estou na lua, ou melhor, agora estou na zona onde viviam assimilados finos, como Tsungu Maciel  (pai do Djako Maria), Daniel Mosse (pai do Marcelo Mosse), Mbalango, Tsungu Teixeira e o célebre Manuelito, esteio  e fundador da banda musical Inhambane 70. Eles todos pertencem a uma geração sem réplica nos dias de hoje. E estou aqui para prestar-lhes vénia. Por tudo que fizeram pela cidade de Inhambane. Quem sabe, um dia, eu volte para consagrá-los em livro. À eles, e a outros que não mencionei aqui neste espaço diminuto.

 

Inté.

quinta-feira, 04 agosto 2022 09:05

Um panegírico ao Guita Jr e Momed Cadir

AlexandreChauqueNova

Foi na década de oitenta que eles vieram a terreiro, grávidos de palavras. E não eram palavras quaisquer, era poesia, alimentada por uma baía que, não obstante ser a jazida dos bitongas, agora está sendo vituperada em nome de ecossistemas cuja explicação não nos convence. Criaram a Associação Cultural Xiphefu, se calhar porque precisavam de uma almadia para as odisseias que viriam. Depois. Ou a partir dali.

 

E como o belo atrai o belo, Xiphefu magnetizou – mais do que as pessoas – a cidade inteira e toda a periferia, em grandes euforias. Passou a haver, por isso mesmo, um borbulhar de versos que saíam de uma báscula manipulada, de entre outros, por Guita Jr. e Momed Cadir. Eles eram jovens. Fizeram tudo, obedecendo a sua vocação de poetas, sem pensarem, mesmo assim, que amanhã vão merecer uma estátua. Não é isso que lhes movia. Era o  gozo de se encavalitarem nas palavras. E levitarem na órbita da lua.

 

O programa “Noite de Abraços”, cooredenado pelo humorista Pedro Muiambo, homenageou-os nos passados dias 29 e 30 de Julho, no Centro Cultural Machavenga, na cidade de Inhambane. Foi também uma vénia – por assim dizer - à “Terra da Boa Genete”, que o Guita Jr. e o Momed Cadir, representarão sempre, onde quer que estejam. Afinal a baba deles os dois não se apaga. Mantem o cheiro inconfundível de toda a sura em todos os lugares, onde as bebedeiras produzem a música que emvaidece os manhambanas. E também lhes embevece.

 

Ainda bem que estiveram lá – no evento – os amigos dos dois. Os admiradores dos dois. Os leitores dos dois. Os conterrânesos dos dois. Os escritores sob ambrela da Associação dos Escritores Moçambicanos, representados pelo seu secretário-geral (Carlos Paradona). Mas o que mais importa é que esteve lá gente marejando como leves labaredas de fogo, aquecendo a alma do Guita Jr. e Momed Cadir. Isso é que dá valor a tudo.

 

Foi um momento de emoções e liberdade, onde, mais do que as palavras, o que contou mais foram os abraços. Dados de coração. Com saudades de um tempo em que se vivia sem se pensar no que se vai comer amanhã, porque a aquela fartura toda de amor, jamais deu sinais de um dia vir a a acabar. A poesia não acaba, é por isso que estiveram na “Noite de Abraços” o Guita Jr. e Momed Cadir, dois cúmplices unidos por uma amizade sem fim, nem que venha a última tempestade.

 

Um forte abraço profundo aos dois!

quarta-feira, 27 julho 2022 10:17

Mbate Mahata

AlexandreChauqueNova

O que sobra dela são as lembranças mais lindas do passado, onde a vida lhe luzia sem limites. Tinha tudo que precisava, incluindo o supérfluo, em quantidades que lhe faziam esquecer a probabilidade da estiagem. Conheci-o nesse tempo em que vivia sob a luz plena, eu era um fedelho incapaz de pensar no futuro, mas hoje, que caminho com as longarinas a ranger a caminho dos setenta, recordo-me de um homem com fina personalidade, camisa sempre engomada e calças a boca-de-sino, do tipo Beatles. Era alguém que caminhava pelos subúrbios da cidade de Inhambane a pensar que não havia ninguém mais do que ele.

 

Mas o tempo, com todas as suas lavas indomáveis, veio esfrangalhar a soberba de Mbate  Mahata, e torná-lo um retalho inútil de si mesmo. Ainda no último fim-de-semana vi-o sentado no canto de uma barraca, bebendo uma zurrapa e pedindo, cada vez que quisesse fumar, uma beata que lhe era dada com desprezo, e ele recebia com raiva disfarçada nos lábios desfigurados, incapazes de esconder dentes queimados pelo fumo do tabaco.

 

Não tem onde ir. Ficar em casa é um castigo porque está desprovido do básico para se entreter e queimar o tempo, é como se estivesse numa câmara de gás, olhando, impotente, para as gotas de cianeto que caem sem pressa.  É por isso que sai e procura um lugar onde haja pessoas a beber, ele sabe que vai aparecer alguém que lhe pague uma merda qualquer. Alguém que lhe vai ajudar a morrer numa morte que já lavra, na verdade, em todo o seu corpo e alma. Ele já não é nada. É um cadáver que deambula à espera do último suspiro.

 

Pedi uma cerveja gelada da marca 2M, que no fundo não passa de uma bebida sem muita qualidade, então sou cúmplice dos fabricantes que estão pouco se lixando connosco, eles sabem que vamos beber. Se eu não fosse cúmplice, recusava-me a ingerir aquilo que já foi de facto uma 2M, nesses tempos! Havia de mobilizar outros bebedores como eu, para não consumirmos algo que pode ser melhorado. Eles ganham dinheiro com a nossa passividade, então a culpa é nossa, que só queremos beber. E estamos a beber a marca, pensando que o conteúdo continua a manter o prestígio do Mac-Mahon.

 

Mbate Mahata olhava para mim – enquanto eu bebia - deixando abertas na cara, todas as feridas que lhe queimam profundamente o espírito e todo o fígado que já deve estar no estado de cirrose. Parece um prisioneiro esquecido numa cela sem esperança, um cão repugnante sem qualquer possibilidade de dar uma ferroada como as abelhas enfurecidas. Ele já não é nada, é por isso que se resignou ao lodo, onde mora enquanto o coração bate, e os pulmóes ainda respiram.

 

Tive vontade de lhe pagar uma cerveja, porém, a voz do coração disse que não! Se eu fizesse isso estaria a contribuir na morte de Mbate Mahata, eu também seria um assassino. Pediu-me uma beata e eu disse que não! Tive pena dele e pedi uma sopa e a dona da barraca disse que não valia a pena porque ele não vai comer. Então não suportei estar naquele lugar, assistindo a uma pessoa que vai morrendo em cada cachaça e em cada beata. Fui-me embora despedaçado!

 
terça-feira, 19 julho 2022 09:08

Benedito Guimino: um edil irreconhecível

AlexandreChauqueNova

Nunca o conheci de perto, no sentido de estarmos na mesma mesa em abstração, falando de coisas que não têm nada a ver com política. Jamais o entrevistei na minha qualidade de jornalista, embora tenha tido ao longo deste tempo todo – continuo a ter – motivos mais do que muitos para o fazer, sobretudo para ter dele a explicação de determinados assuntos que nos apoquentam, numa cidade elegida para brilhar, mas que , entretanto, esse brilho está a escurecer.

 

Foi na  altura em que concorria para o cargo de presidente do Município de Inhambane, que ouvi falar dele pela primeira vez, e pareceu-me um jovem simpático, de boa educação, capaz de, com a sua humildade, descer até ao nível do chão onde vive a esmagadora maioria dos seus compatriotas. Simpatizei-me com ele de longe, sem reservas, até porque votei nele, sem querer dizer com isso que  tenha sido algum compromisso pessoal que me movia. O que me levou à urna não será mais do que o desejo de ver a minha cidade nos escaparates das urbes mais limpas de Moçambique.

 

A aparente humildade de Guimino e a sua vontade de trabalhar com afinco em benefício dos munícipes, levaram-no a publicar o seu número de celular para quem o quisesse contactar para alguma preocupação ou ideias de melhorar  este e aquele aspecto da sua governação, e foi esse o número que usei em algumas ocasiões para apresentar as minhas inquietações em relação às obras que iam sendo feitas pela edilidade, mas o presidente do Município nunca antendeu às minhas chamadas. Fiz várias mensagens – com o meu nome assinado - alertando-o sobre a má qualidade das vias de acesso pavimentadas, mesmo assim, o edil ignorou-me.

 

Hoje há um problema que roça a violação dos direitos humanos na cidade de Inhambane, e o violador desses direitos é o próprio Guimino. Ou seja, o Banco de Moçambique (BM) pretende construir um monumento no bairro Matadouro onde vivem mais de cinquenta famílias, e para que o projecto do BM seja executado é necessário desalojar aquele conglomerado e reassentar as pessoas noutro lugar. Então, o Banco de Moçambique, consciente disso, desembolsou um valor que até hoje não sabemos muito bem quanto é que é. Fala-se de cerca de cinquenta milhões, entretanto o presidente do Município já veio dizer que não é esse o valor.

 

Mas o problema surge, independentemente dos valores que tenham sido alocados, quando a edilidade - sob batuta de Guimino – avança com a construção de casebres no bairro Malembwane, sem as mínimas condições de habitabilidade, violando um dos direitos do homem, que é o direito a uma habitação condigna, tanto é que, ao que nos parece, há dinheiro para isso. Os residentes de “Matadouro” recusam-se a sair para aqueles cubículos insultuosos e desprezíveis. Mas Guimino obriga-os, mesmo assim,  a abandonar o lugar requerido pelo Banco de Moçambique.

 

Foi nesta situação que se confirmou – depois de vários outros momentos -  a perca de humildade por parte do edil, ao afirmar nos seguintes termos, dirigindo-se à população: “quem quiser sair que saia, quem não quiser, que fique, eu sei o que vou fazer”. Eu não sei se isso não será  desprezo pelo povo! Aliás, um dos moradores disse assim a Benedito Guimino: “você está a tratar-nos como se fossemos papel higiénico, você está  a ameaçar-nos, e  esquece que fomos nós que lhe elegemos”. Na verdade é uma ameaça de um homem que não vai deixar, com certeza, boas memórias por aqui. Até porque seria de bom senso que fosse feita uma investigação sobre este problema do bairro Matadouro.

segunda-feira, 04 julho 2022 07:50

Sengue *

Sentou-se ao meu lado – no “chapa” – com os braços apertando os livros sobre o peito, faz um frio de enregelar. Olhei para ela e a sensação que me ficou era de estar a ver um passarinho sem o aquecimento das asas da mãe. Saudou-me educadamente com um “bom dia” perturbador, no sentido de que a voz era profunda demais para uma criança. Lembro-me que tremi um pouco, sobretudo quando – olhando para mim – perguntou-me, como está? Era a primeira pessoa que me cumprimentava naquele dia, ainda por cima uma petiz que vai à escola com os livros apertados ao peito por braços frágeis, então isso é uma benção que me é dada, não tenho a menor dúvida.

 

- Eu estou bem, e tu, como é que estás?

 

- Eu também estou bem, obrigada.

 

Ambos apanhamos o pequeno autocarro em Nhapossa (Inhambane), bairro que apesar de estar em franco crescimento, está mais do que desordenado. Eu vou à cidade dar azo à minha liberdade de quase vadio, e a minha companheira de viagem vai à busca do saber, e amanhã – quem sabe – será um candelabro. Até porque, por aquilo que demonstra, tem dois fundamentos essenciais para se chegar ao topo, a educação e a humildade. Esses são os pilares da sabedoria.

 

Os vidros do “chapa” estão embaciados, as temperaturas do ambiente são muito baixas por estes dias. Eu estou bem agasalhado, mas a menina não está, é por isso que não tira os braços do peito e os cotovelos por sobre os joelhos, que se batem constantemente entre si, aliás todo o corpo dela treme um pouco e isso dói-me o coração. Então senti que devia fazer qualquer coisa por um anjo incapaz de se proteger devidamente.

 

- Como é que te chamas?

 

- Chamo-me Sengue

 

- Quem te deu esse nome tão lindo?

 

- É o meu pai.

 

- O teu pai é maluco

 

A menina sorriu quando lhe disse que o pai era maluco. Depois disso ficamos cerca de cinco minutos sem dizer nada um para o outro, enquanto escutávamos o silêncio que se ouvia no interior do “chapa” em marcha moderada, mas o silêncio dela é que se ouvia mais dentro de mim. Fiquei assustado. Se calhar ela não percebeu o sentido do maluco que eu outorgava ao seu progenitor. Posso a ter magoado, e se for assim, então vou sofrer por muito tempo,  provavelmente toda a vida. Não se magoa a uma criança.

 

- Menina, desculpa, não quis magoar-te

 

- O senhor não me magoou, percebo perfeitamente o que quer dizer com o maluco que chama ao meu pai, eu já lhe disse isso muitas vezes. Digo-o sempre, sobretudo quando ele bebe um copo e canta coisas que me põem maluca, também.

 

- Obrigado.

 

Mas  eu queria fazer qualquer coisa por alguém que abre as cortinas do meu dia, assim da forma tão amorosa e tão linda e tão desinteressada, então perguntei, não tens uma camisola mais grossa que esta? Ela disse que não, “esta é a única que tenho”. Pedi o número do celular do pai e ela deu-me sem hesitação, na mesma altura em que se preparava para descer e dirigir-se à escola. O chapa parou e ela desceu, fazendo-me um “tchau” com a mão leve e um sorriso cândido.

 

* Flores, em bitonga

quarta-feira, 22 junho 2022 08:47

O meu nome é uma dança chamo-me Niketche

AlexandreChauqueNova
Os meus amigos disseram-me isso, que sou uma mulher elegida. Ainda disseram mais, que a dança que sou, é um feitiço, então por onde eu passar, a própria terra vai dançar sob os meus pés, não só porque sou uma dança, mas porque dentro de mim há uma música repetida pelos pássaros voando no Cosmos, o que me torna  o centro da vida, pois, segundo eles – os meus amigos – a vida será mais brilhante com a dança. Que sou.

 

Mas a culpa de todo este remexer que se cria por onde passo, é do meu pai, que olhou para mim no berço da maternidade e disse assim, a minha filha chama-se Niketche, e este será o erro mais belo dele, todos querem estar à minha volta, dançando a música que retumba dentro de mim, fazendo-me, ao mesmo tempo, uma música e uma dança. Sou o apogeo da vida, graças ao meu pai, e a sua loucura.

 

Quando vou ao mercado, ou quando caminho pelas ruas da cidade, ou ainda pelos becos do meu bairro e de outros conglomerados desta pequena terra, todos interrompem temporariamente os seus afazeres e começam a dançar. Homens e mulheres, crianças e velhos. Há muitos que nem sequer me vêem ao passar, mas ao verem os outros a dançar, dançam também, seguindo o ritmo produzido pelo meu nome e pelo meu corpo. Leve e profundo, segundo se diz.

 

Na verdade sou um feitiço. Se não fosse, não haveria este terramoto todo por onde passo em silêncio, sentido no meu interior as inexplicáveis vibrações dos meus antepassados. Até porque o meu próprio pai não sabe explicar a mutação do ritmo da vida das pessoas por onde passo, apesar de ter sido ele que olhou para mim no berço da maternidade e disse, a minha filha chama-se Niketche.

 

No dia em que eu via pela primeira vez a luz, embrulhada em confortáveis mantinhas, todas as parturientes dançaram, as parteiras também, e os visitantes e todos aqueles que estavam naquele momento. Meu pai chegou e começou a dançar também, uma dança que ele nunca tinha dançado antes e nem conhecia. Ele viu-me a dançar nos braços da minha mãe, como uma dança que se dança a si própria, e tudo isto só podia ser o resultado de uma premonição da qual não se apercebeu. Então, logo determinou, a minha filha chama-se Niketche.

terça-feira, 07 junho 2022 09:04

Terror a caminho do Parque Nacional de Zinave

Continuo a cultivar a solidão, e já cheguei a um ponto em que as viagens – mesmo para lugares de paraíso – deixaram de me fascinar. O paraíso é aqui onde moro sem pensar no futuro, o futuro é este que vivo todos os dias. Mas desta vez abriu-se um parêntises na minha rotina, de maneira tão profunda que não pude recusar o convite de visitar o Parque Nacional de Zinave, ainda por cima na companhia de uma mulher que usa todas as oportunidades para cantar, repetindo músicas antigas dos seus ídolos, que habitarão para sempre as suas memórias.

 

Chegou à minha casa sem avisar, trazendo consigo a alegria de sempre, na alma antiga que se mantém nova e fresca como as águas da cascata e disse assim, amor, vamos juntos à Zinave! Vestia calças jeans e sapatilhas da Nike, e para combinar estes dois elementos, envergava uma jaqueta de bombazine com forro,  por cima de uma camiseta azul celestial, estava linda por inteiro numa estrutura corporal sintetizada pela candura do rosto, então, perante este vulcão  de beleza, não podia dizer que não.

 

Eu estava na varanda – sentado a contemplar a mesma paisagem dos tempos, que entretanto aviva-se a cada minuto – quando ela entrou de rompante  cantando “Sineta”, de Chico António, e o abraço que se seguiu levou-nos ao êxtase porque naquele momento inesperado, tornamo-nos fieis representantes do nosso passado anarquista, onde não tinhamos capacidade de esperar, tudo era urgente para nós. Mas na verdade estávamos apenas a obedecer aos ditames do amor. Que é controverso.

 

Puxei-a – depois de sentir o leve cheiro do seu perfume, emanado durante o forte aperto dos nossos corpos - para o quarto onde fui aviar a minha mochila, sem me esquecer da grossa camisola e da jaqueta de couro. Despi as calças de fato de treino – na presença dela – para enfiar as jeans e as botas de mineiro – e ela ficou em silêncio olhando para o meu corpo meio magro, e para os meus gestos atrapalhados. Sorriu e convidou-me, com o olhar, a um beijo cuja doçura lembrou-me a intensidade dos nossos tempos de juventude, e a nossa total entrega à vida e à música que cantávamos em todas as circunstâncias.

 

Já prontos, metemo-nos no carro para dar uma volta de sessenta quilómetros até Maxixe, de onde depois seguiriamos rumo a Mapinhane e dali continuariamos com a viagem, ansiosos em contemplar o reino animal que nos esperava em Zinave. Mas antes de partirmos, ela pegou no flash  de música e disse assim, meu amor, quero que oiças esta merda! Pôs no ponto o tema Lady, de Fela Kuti, afinal “aquilo” era a nossa entrada no Cosmos, onde não podemos estar sem o Ballantines, e o Ballantines estava dentro do carro com um balde de gelo.

 

Maxixe não tem nada para nos dar em novidade, nem Murrrombene, nem Massinga, nem a própria Mapinhane, por isso não parámos em nenhum desses lugares, o que nós queriamos era chegar a Zinave e entregarmo-nos ao prazer da descoberta. Porém, o que nós os dois não sabiamos, é que o caminho pode tercer das suas, contra os nossos sonhos e as nossas vontades. Daqui para aqui pode acontecer o inesperado para desfazer todas as expectativas.

 

Dez quilómetros depois de Mapinhane, já na picada rumo a Zinave, fomos sacudidos por um elefante que, saíndo repentinamente do mato, não nos deu tempo para nada, numa altura em que escutávamos What a wonderful world, de Louis Armstrong. O nosso carro deu várias cambalhotas impulsionadas pelo paquiderme, provavelmente irritado pela nossa presença, e numa dessas cambalhotas fomos “cuspidos”. Mas o enorme bicho continuou a investir repetidamente as suas patas insuperáveis por sobre a viatura, tendo-a esmagado  completamente, deixando-a sem proveito, depois foi-se embora sem sequer olhar para nós, que continuávamos vivos, sem sabermos como!

A própria baía em si perdeu a beleza, dando lugar  a um matagal sem sentido, que tomou o lugar de veraneio da urbe, tirando assim o direito aos banhistas e a todos aqueles que já não podem contemplar uma maravilha que nos punha em contacto visual com toda esta paisagem exuberante que inclui a península de Linga-Linga e o arquipélago de Mucucune – por um lado -  e a soberba do coqueiral que se ergue do outro lado, onde a Maxixe perdeu também, ao longo da orla marítima, a sua liberdade, por conta das construções que nunca obedeceram a nenhuma regra.

 

Os bancos de areia têm nome, todos eles, cada um com o seu potencial pesqueiro e seus tabus, porém – apesar desse diferencial - o que havia neles  de comum era a fartura. Por isso mesmo, homens e mulheres, em maré vaza, atravessavam em pequenos barcos à vela, na demanda do abundante pescado que incluia a apanha de carangueijo e moluscos e camarão, e não havia dúvidas de que os cestos voltariam mais do que abarrotados, para gáudio de famílias inteiras que nunca souberam o que é fome.

 

“Boni” será  -  provavelmente - o banco mais conhecido e se calhar o mais produtivo e o de maior extensão territorial. Em dias de pesca e de apanha e de arrasto, as pessoas eram desembarcadas aos magotes e espalhavam-se como baratas assustadas, mas era mentira, levavam dentro delas a certeza e a alegria de que voltariam para casa abastecidas. E todo aquele trabalho que faziam – muitas vezes debaixo de frio intenso e chuva – dáva-lhes prazer por saberem que os resultados seriam por demais compensadores.

 

Os bancos de areia da baía de Inhambane eram uma música, repetida na cidade e nos subúrbios, num ritmo que ressurgia com fulgor em cada refeição ou em cada petiscada nas bebedeiras de sura. Também eram uma jazida interminável que proporcionava renda a muitos e, por tudo o que representaram na economia e na sociedade, nunca vão deixar de ser património valioso.

 

Mas hoje ninguém fala dessas fontes de energia, pouca gente as procura, porque já não têm nada para dar, ou têm muito pouco. Há uns que dizem que aqueles bancos de areia e as suas circundantes águas misteriosas outrora promissoras, foram profundamente exploradas até a exaustão. Foram esvaziadas. Todavia, há aqueles que defendem outro pensamento. Segundo eles, foi o próprio Deus que diminuiu as bençãos, por ira. E, como todos nós sabemos, depois da Palavra de Deus, não há outra palavra. Assim, o mito morreu, e com ele a nossa esperança.

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