Os discursos oficiais e dos amigos enalteceram as qualidades ímpares de Rui Baltazar pelo seu papel na construção do estado de direito democrático, como veterano da luta de libertação nacional, como eminente Advogado, Ministro, Embaixador, Conselheiro do Presidente da República, Reitor da UEM, e Presidente do Tribunal Constitucional. A imprensa considerou-o inigualável. Foi pessoa única, conhecida pela sua serenidade, verticalidade, integridade e alta competência.
O nome de Rui Baltazar dos Santos Alves, que fisicamente já não se encontra entre nós, está gravado na minha memória como um homem culto, que olhava longe, criativo, corajoso e de fala simples. Com lucidez de pensamento, rigor ético e coerência nas acções, expressava o seu pensamento profundo, em poucas palavras, sem levantar o tom de voz. Pessoa simples, modesta, afável e solidário. Estas são memórias sedimentadas na longa vivência e trabalho conjunto.
Conheci o Dr. Rui Baltazar em Fevereiro de 1975 quando, na sequência dos Acordos de Lusaka há quase 50 anos (*), foi constituída a Delegação Moçambicana para as negociações com o Governo de Portugal, sobre alguns 'dossiers' fundamentais, que era necessário concluir, ainda na fase de transição.
Tinha eu 25 anos, recém-formado em economia, quando fui integrado na delegação que, em Março de 1975, viajou para Lisboa, chefiada por Joaquim de Carvalho e que integrava Alberto Cassimo, Eneas Comiche, António de Almeida Matos, Victor Barros Santos, entre outros, todos com idade inferior a 35 anos. Em terra, no 'back office' de apoio a esta delegação, estavam Mário Machungo, Rui Baltazar e Salomão Munguambe, todos membros do Governo de Transição, liderado pelo Primeiro-Ministro Joaquim Chissano.
Os acordos então assinados permitiram: (i) a transferência dos activos e passivos do Banco Nacional Ultramarino (BNU) para o Banco de Moçambique, constituído em Maio de 1975, um mês antes da independência; e (ii) a conclusão das obras e a gestão operacional da Barragem de Cahora-Bassa, num quadro em que o Estado de Moçambique ia gradualmente aumentando a sua posição accionista no capital da Hidroeléctrica de Cahora-Bassa, à medida que a sua dívida ia diminuindo, o que conduziu à sua total reversão, anos depois. As negociações com a antiga potência colonial continuaram muito difíceis por mais dois anos, com temas como as chamadas de “dívidas de Moçambique a Portugal” por conta das ´infra-estruturas´ construídas no tempo colonial, obviamente rejeitadas pelo novo Governo de Moçambique.
No essencial, fomos bem-sucedidos. Foi trabalho intenso no seio deste grupo, no decurso do qual cresceu a amizade entre todos os integrantes.
De meados de 1978 até Abril de 1986, Rui Baltazar então com 45 anos, como Ministro das Finanças, eu, como Vice-Governador e depois Governador do BM, então com 31 anos, e os quadros superiores que nos assessoravam, recebemos a tarefa de governar o sector financeiro, num dos períodos financeiramente mais difíceis que Moçambique viveu desde sempre. Numa fase inicial, contavamos também com o Dr. Sérgio Vieira, que havia assumido o cargo de Governador do BM e que teve um papel fundamental em ´moçambicanizar´ a administração e os técnicos bancários e impor disciplina no funcionamento da instituição BM, recém-constituído do BNU. Ele teve ainda um papel importante no processo de troca de moeda: a substituição do escudo colonial e lançamento da nova moeda nacional, o Metical.
No dia-a-dia, enfrentávamos os efeitos das sanções determinadas pelas Nações Unidas e aplicadas em 1976 por Moçambique à colónia rebelde da Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe), o recrudescer das hostilidades do regime do apartheid no seu estertor final, que ostensivamente praticava a política de terra queimada, no meio de profundas alterações na economia mundial, designadamente (i) o fim da era do padrão-ouro e dos câmbios fixos, (ii) alta volatilidade dos preços de petróleo e (iii) no meio da intensa guerra fria entre as grandes potências. Tudo isto ocorreu num país recentemente independente, caracterizado pelo atraso económico e social e de 93% de analfabetismo, sem reservas financeiras suficientes.
Foram tempos difíceis, tempos de penúria. Ao longo de oito anos de trabalho quotidiano, de grande carência de cambiais, encontrava-me, por vezes, duas vezes ao dia, com o Ministro das Finanças. Tal era a necessidade de concertação entre o Ministro das Finanças e Governador do Banco de Moçambique e a nível dos seus quadros. Esse foi certamente um dos elementos que contribuiu para evitar o colapso financeiro total. Valeu o espírito de trabalho árduo, a dedicação, o empenho e a elevada confiança e amizade que se gerou entre nós.
Tive o privilégio de ser seu par no Conselho de Ministros do Governo do Presidente Samora Machel. Em conjunto com os demais ministros, vivemos momentos conturbados, sofremos as agruras e as angústias dos dias difíceis de manter a economia a funcionar, no mínimo, enquanto o apartheid, na sua agonia, fazia de Moçambique, a terra queimada! Com coração apertado, registávamos os massacres, as mortes indiscriminadas de civis, a frequente sabotagem do sistema de distribuição de energia, a paralisação dos sistemas ferro-portuário, a destruição de infra-estruturas, de viaturas e equipamentos, a destruição de unidades de produção, em particular das açucareiras de Luabo e Marromeu, e as constantes paralisações das açucareiras de Xinavane, de Búzi e Mafambisse, das chazeiras de Gurué, entre outras.
Conhecíamos diariamente os baixos níveis de reservas financeiras e de reservas petrolíferas, com sistemáticas rupturas, que reduziam as opções no gasto das divisas. Para assegurar a estabilidade social, com mágoa, tivemos de deliberar sobre o racionamento na distribuição alimentar nas cidades. Poucos conheciam as contas nacionais, a reduzida liquidez disponível em moeda nacional, as poucas reservas cambiais disponíveis, que impunham sérias restrições nas importações para acorrer às necessidades para o funcionamento da economia.
Rui Baltazar era rigoroso na gestão financeira. Ele próprio vivia modestamente. Foram tomadas medidas de grande austeridade nos gastos públicos. O número de pessoas das delegações que viajavam para o exterior era estritamente escrutinado e cada membro só recebia 3 dólares dos EUA (menos de 200 Meticais (**), por dia, para as suas despesas pessoais no estrangeiro, que não precisavam de justificar – o chefe da delegação recebia 5 dólares dos EUA, por dia, (cerca de 320 Meticais). Não havia excepções. Não era permitido esbanjamento, nem fausto. Nosso tempo de trabalho diário ultrapassava as 12 horas por dia, por vezes, aos fins-de-semana. O mesmo sucedia a todos os quadros que connosco trabalhavam. Vivemos juntos este drama humano e de sobrevivência da Nação. Nunca ouvi um lamento ou um desabafo por parte de Rui Baltazar. Muitas outras coisas, não é útil contar, permanecerão nas nossas memórias.
Sob a direcção do Presidente Samora Machel, com o apoio próximo do Dr. Rui Baltazar e a participação do Dr. Eneas Comiche, negociamos o 1º reescalonamento da dívida externa de Moçambique, ao abrigo do ´Clube de Paris´. De forma similar, negociamos a adesão de Moçambique às instituições de Bretton Woods em 1984, cujos acordos foram assinados em Washington (EUA) por Rui Baltazar, na qualidade de Ministro das Finanças.
Não obstante ser muito rico culturalmente, Rui Baltazar não acumulou riqueza material. Apesar do imenso poder que ambos detínhamos no sector financeiro, a governação foi impoluta, sem desvios. A lisura e o exemplo de rigor e de trabalho árduo permitiram-nos exercer as funções com determinação e sempre com a convicção de que a guerra iria terminar e a paz seria restabelecida, o que permitiria retomar a normalidade da vida. Tudo isto foi vivido com intensidade e sem possibilidade de contar às famílias ou aos amigos.
Num certo momento, com o fim do apartheid e os Acordos de Roma, as armas calaram-se e, em paz, toda a região da África Austral ficou livre do racismo e da discriminação. O nosso País retomou a sua vida, com novos desafios de crescimento e da luta contra o subdesenvolvimento e o atraso. Tempos mais difíceis foram ultrapassados. Moçambique voltou a reerguer-se, olhando com esperança o futuro, com novos desafios. Nos últimos anos da sua vida, com o avanço da corrupção e os baixos níveis de ética e de moral na gestão pública, nos vários fóruns, Rui Baltazar expressou a sua frustração e se demarcou dos corruptos que se serviam do bem público, que a todos pertence. Sem hesitar, acrescentava que não entendia como é que um País com carência tão aguda de quadros experimentados se dava ao luxo de os desperdiçar, como se fossem descartáveis. Estes são certamente os maiores desafios da fase presente da nossa vida. Para os superar, os jovens devem inspirar-se neste imenso legado de Rui Baltazar.
Esta foi a realidade concreta que enfrentamos. Muitas instituições hoje florescentes assentam nesta dura realidade que exigiu coragem, ousadia e criatividade. Foi certamente difícil, muito difícil, pessoalmente muito doloroso. Não foi pera doce, não!
A intensidade do trabalho foi tal que germinou a amizade, a confiança, o respeito e a admiração, mútuas. Sendo eu muito jovem, o Camarada Rui Baltazar foi meu mentor. Aprendi dele o rigor, a importância da moderação, a necessidade de fundamentar as palavras e os conceitos, a ser contido nas falas e prudente nos actos e contratos. E a necessidade de ler muito, de estudar, sempre estudar, estar actualizado, para melhor enfrentar o futuro.
Devido à enorme amizade, diria cumplicidade, forjadas em anos de trabalho e de convivência, num ambiente familiar e de amigos, Rui Baltazar foi a pessoa escolhida para o discurso da festa do meu 60º aniversário. Foi gratificante ouvir as suas palavras generosas que retrataram o tempo em que juntos contribuímos para a edificação da 1ª República, ao lado de muitos outros heróis vivos e de outros que já não se encontram entre nós, que a Pátria por que lutaram ainda não os reconheceu nem exaltou os seus feitos. Foi gratificante conviver com esta figura tão exemplar, tão humana, tão simples, um jurista de primeira água!
Evocar o nome de Rui Baltazar é falar do seu nacionalismo, do seu patriotismo, da sua fidelidade e lealdade à causa do Povo. Rui Baltazar era altruísta, não se serviu do Estado. Pelo contrário, serviu o Estado com honestidade, respeitou a coisa pública, acima de interesses pessoais, o que faz dele uma referência, que os jovens nele se podem inspirar. Há mortes que pesam menos que uma pena. Há mortes que provocam um estrondo - a morte de Rui Baltazar provocou um abalo, gerou um vazio, difícil de preencher.
De forma incontornável, Rui Baltazar ocupa um lugar no Panteão dos Heróis de Moçambique, ao lado de muitos outros notáveis que deram tudo e arriscaram as suas vidas para erguer bem alto a Bandeira de Moçambique independente, que aglutina no seu seio moçambicanos de todas as raças, etnias, religiões ou origem social. Por enquanto, o Rui Baltazar de todos nós está, certamente, no Panteão Celestial.
A sua grandeza humana, o seu enorme legado, servirá de inspiração principalmente para os jovens, para continuar a obra iniciada e a alicerçar os fundamentos da nossa vida, da nossa história.
Descanse em Paz, Amigo Rui!
Até sempre Dr. Rui Baltazar dos Santos Alves, Grande Homem!
(*) Acordos de Lusaka, em 7 de Setembro de 1974
(**) ao câmbio actual