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quarta-feira, 13 novembro 2024 10:25

O talento das profundezas do mar e dos remoinhos

As ondas possuem uma propriedade conhecidíssima, transportam energia, sem necessariamente, transportar matéria. Na sua propagação as ondas cantam a história da Humanidade, os sonhos de um povo, os gritos dos escravos e a fantasia das sereias. O mar se veste a rigor e comunica. Explica aos insulares o sentido da musicalidade, e aos continentais, que toda a vida terrestre depende do mar. As ondas, vaidosas, fazem a comunicação mais eficiente e nítida que conhecemos. A vida é uma onda.

 

Gimo Abdul Remane Mendes, de seu nome extenso, curiosamente, a meio de um nome islamizado, manteve o Mendes. Ele é um profundo conhecedor do mar, seus segredos e alma, e dos ciclos das ondas como ninguém. Entende as lições das marés baixas, os perigos das altas e o silêncio de marés mortas. Nasceu escutando e decifrando os sons das pristinas praias de Mossuril, vila adjacente ao litoral que, em tempos de cordialidade, bate de frente com a majestosa Ilha de Moçambique, essa antiga capital e berço de tantos mistérios e ritmos que enfeitiçam.

 

A cidade de Nampula, capital e Rainha do Norte, esse ponto de entroncamento para onde convergem todos os eixos sociais, culturais e económicos, na realidade da sobrevivência, celebrou mais um aniversário.  Mês de Agosto. O maior presente que a cidade e província, hoje, tão descaracterizada, ainda, poderiam oferecer, com originalidade, aos naturais e visitantes, são as suas vibrantes vozes e talento musical do litoral e do interior. Artistas que simbolizam a prova maior da miscigenação que repescou o mais nobre de dezenas de povos e culturas. Mas, Nampula não produziu nem centenas, e, muito menos, milhares de vozes de ponta. Foram só dezenas que, com algum privilégio, atingiram patamares nacionais, continentais ou até mundiais. Os que lograram atingir esses pódios, fizeram-no, à perfeição, com marcas que flutuam sob o anonimato dos ventos, no fervor das geografias e dos ciclos lunares que beijam as ondas.

 

Gimo Remane esse iconoclasta e dono de uma voz arrebatadora que, cantando na sua língua original, Emakhuwa, se autorizou a ser perseguido por uma sonoridade secular, a viajar com a serenidade e calmaria do tufo requintado, enfim, prendeu-se a uma entoação que balança e requebra as cinturas, sempre com o rigor e vigor de uma voz que não teme os ventos. Ele se converteu-se, por mérito próprio, num dos maiores, quem sabe, no mais bem-sucedido artista da província, além-fronteiras, com distinções e premiações bem-sucedidas. Ele quis ser original e pagou bem o preço de ser erudito. Com a banda original que ajudou a estruturar e criar, tão original quanto icónica, o Remoinho, Eyuphuro, cantaram e encantaram Nampula, Moçambique e o mundo. Vivíamos os primeiros anos do sonho da libertada e da identidade cultural, da independência, quando, ainda, deslumbrados viajávamos no comboio azul da revolução entre o Setembro da vitória, e o Junho da explosão.

 

Nampula celebra sua festa de elevação a cidade a 22 de Agosto.  Gimo abraço o mundo a 23 de Agosto de 1955. Mês e época dos ventos das monções, e de todos os recomeços. Seu Pai Abdul Remane António Mendes, enfermeiro, na época com o título oficial de auxiliar de enfermagem, era o alquimista que cuidava da saúde de uma população discreta e constituída por pescadores e camponeses, que acreditavam em outras formas e poderes para tratar de suas mazelas. A espiritualidade e o misticismo de outros poderes divinos.

 

Sua Mãe, Lina Abdulremane, filha de Tove Jensen Mendes, um sul-africano que também andou por Mossuril, e que teve influência na educação da sua mãe. Ela era de profissão mais liberal e que cuidava da família, e dos assuntos mais domésticos, era de uma linhagem das lideranças locais reforçada pelo lobby que tinham junto do governo colonial. Ela foi a primeira responsável por incutir, no seu filho, o gosto pela música e pela educação cultural que ele preservou até à actualidade.

 

Convenhamos, Gimo Remane, nasce, então, numa época e com uma família mediana e com as condições bem mais que suficientes para ter uma vida digna e regrada. O primeiro infortúnio na sua vida regista-se com a partida prematura de seu Pai, Abdul Remane António Mendes. Gimo tinha (2) dois anos. Este vazio foi sentido pela família com pela vila de Mossuril. Gimo, com lamenta, não tem a oportunidade, nem a menor possibilidade de conviver com seu Pai e, muito menos, desfruta das inúmeras histórias que este tinha para contar. Esta ausência nunca foi substituída e a família se ressentiu dessa perda. Para compensar,  viveu dos fascinantes episódios  contados pela  sua Mãe e pelo avô Mendes, das brincadeiras dos amigos e da sabedoria  de um povo que nunca abandona as crianças. Esta época difícil molda sua personalidade e sua postura.

 

Mossuril cresce e prospera como vila, com mercados vigorosos de peixe, oleaginosas e verduras, e como ponto de transição, quase obrigatório, para quem se deslocasse de carro para uma das praias mais concorridas da região norte, a praia das Chocas-mar. Na sua infância foi tratado como Gimo Onsiriri, na prática, Gimo de Mossuril, que era já uma forma de o acarinharem e enaltecer aquele espírito de guerreiro. Os nomes que recebemos se transfiguram e moldam personalidades. Respeitado por ser filho de uma família bem estabelecida e de prestígio tem o apoio de todos, mas quer viver a sua própria epopeia. Viveu e fez a sua infância no bairro Onrira.

 

Ainda, na infância da idade, ele foi herdando as inúmeras e indiscritíveis influências de uma cultural afro-árabe e mestiçada, de povos e mercadores visitantes que, com alguma regularidade, ali exerciam o comércio com os locais. Eram mercadores oriundos de Omã, Índia, em particular Gujarati, Indonésia e Malásia e depois, naturalmente, Portugal que ainda trouxe os goeses e chineses de Macau. Alguns já com residência na região, outros produtos de novas gerações. Mas, chegam, igualmente, de Zanzibar, da Tanzânia e Quénia. Pela Ilha, Mossuril, Lumbo e Angoche saíram, com muita mágoa e dor, milhares de almas moçambicanas que levaram o seu DNA para o mundo. Os escravos. Um cruzamento que espalhou as matrizes culturais deste povo que, fez da sua cultura, uma das mais ricas que Moçambique ostente e se orgulha.

 

Mossuril era, então, esse paraíso de pura beleza e encanto, um observatório privilegiado para o mar, e em dias serenos, para a própria Ilha de Moçambique e as restantes bem nas proximidades. Mas a vila ganhava vida como porto de chegada de pequenas embarcações, com origem no própria Ilha e outros pontos, como Angoche e Nacala, que ali descarregavam o produto da sua pescaria, do transporte de mercadoria e de passageiros. 

 

As águas de Mossuril tipicamente cristalinas, atreladas a um céu azul-celeste de tirar o fôlego aos privilegiados, era mais que um cartão-postal, mas um delírio criado por Deus. Foi nestas praias e paraíso tropical que Gimo Onsiriri brincou com seus amigos, jogou futebol de praia, viu os grupos culturais de Tufo, aprendeu a arte de pescar, viu Mestres fabricarem embarcações Dhow, e começou a entender que tinha um mundo a seus pés. Maturava sua idade e preparava seu futuro.

 

Apaixonado pelos grupos culturais locais, ele seguia, com regularidade, as mulheres e os grupos de dança de Tufo, esta espécie de Taarab em Zanzibar, e prestava redobrada atenção sobre o sequencialmente dos ritmos dos tambores. Esta era uma escola natural de preservação cultural, mas um marco indelével de transição de conhecimento geracional. Foi nestas praias de Mossuril que, entre um mergulho e outro na praia, ele começa a libertar sua voz, primeiro para si mesmo, sempre na imitação, depois, para a sua província, seu país e seu mundo. Sua voz de muito instinto, e, alguma rouquidão, parecia seguir essa ondulação, umas vezes se confundido com a voz dos próprios ventos, outras vezes, embalado pelo ritmo daqueles tambores. Cantar era preciso e viver não era preciso. Vivia no limite e aprendia tudo.

 

Gimo pode não ter tocado viola de lata, como a maioria dos músicos que tocam em áreas suburbanas, todavia, educou seu ouvido para os sons agudos do ritmo Tufo. Viola de lata foi sempre instrumento obrigatória. Os trovadores improvisam seus versos ao som destas violas. Na realidade, todo este litoral sobrevive de Nigungo e Nsope, para além de Tufo, como a base essencial. Estas danças e, amiúde, os grupos que se criam fazem uso e recurso desta acústica de batuques e tambores e, ainda, dos estridentes instrumentos metálicos. Também, usam um apito, que produzindo sons mais graves, parece destoarem, porem, são os marcadores da cadência dos e da execução dos próprios passos de dança. Depois, tudo se complementa com a sensualidade. Existe um erotismo marcante na dança Tufo que se complementa com a educação tradicional ou os ritos de iniciação tão comuns da sociedade matrilinear e de todo o norte do país.

 

A Mãe Lina Abdulremane toma consciência de que Mossuril, apesar do seu potencial, seria demasiado pequena para os sonhos do seu filho. Era necessário conhecer a cidade e os segredos do colonizador. Conhecer a iluminação e aprender novas línguas. Decide enviá-lo para a Ilha de Moçambique. A Ilha o recebe cordialmente para que ele pudesse beneficiar da magia. Na Ilha dá continuidade aos seus estudos e, posteriormente, para a prática cultural que se impregnara em seus sentidos e sentimentos. Aprende a tocar viola durante uma semana, na casa de um familiar onde esteve hospedado. Depois foi talento natural e o seu ouvido.

 

Os grupos de Tufo prosperavam e pipocavam em todas as esquinas. Competiam pelos prémios nos concursos da municipalidade.  Um dos mais famosos foi o grupo Estrela Vermelha. Perdura até aos dias de hoje. Novas roupagens, mas a mesma sensualidade. Gimo conheceu o grupo e viu suas aparições públicas. Convenhamos, aqui reside o berço da sua criatividade e musicalidade. A Ilha de tantas histórias e poemas, músicos e velejadores.

 

Se a Ilha de tantas histórias e segredos que lhe abre as portas, de par em par, para o início de uma marcante carreira musical, melhor cultural, foi a cidade de Nampula que o levou para a capital e para os extremos do mundo. Entre a escola, quase única que a Ilha disponha, na cidade de cimento, e a música popular e dos grupos de Macuti, ele arruma tempo para o desporto, para a praia e para a sua religião. Pode não ser devoto, mas é um crente com fé e faz jus aos ensinamentos espirituais. Vive com familiares e aprendem outras lições de vida, de bem-estar e convívio fraterno entre as pessoas. Contempla hortas a fio aquela ponte que parece não ter fim. Obrigatório para os ilhéus frequentaram a praia. Naquelas praias o tempo se deita para contemplar a obra feita por Deus, a generosa mãe natureza.

 

Mas a Ilha para além de ter o poder de convidar Deus e o tempo para repousaram, ela própria vive num sono interminável. Tudo se faz tão devagar, que parece que todos vivem e convivem parados. Sem pressa e sem velocidades. Pouco ou quase nada acontece com os nativos. As iniciativas, mais ousadas, se originam da perspicácia e sensatez de alguns dos seus filhos que vivem no exterior. Não admira, pois, que todos tentem viver imigrantes. Sonham com Nampula.

 

O mundo além-mar. Terra firme e onde tudo acontece e o mercado gira. Limitado pelos estudos na Ilha, ele migra para a grande capital. Nampula. Sente esse pulsar de uma cidade que tem de tudo um pouco. Escolas de níveis mais elevados, mercados complexos, ferrovias e representantes de tantos outros distritos. A rádio pode ser captada com nitidez e a piscina do Ferroviário vira o sonho da meninice. Nampula era então o centro ideológico e dos vestígios de uma época de glória.  Um novo mundo, ortodoxo, algumas vezes, desregrado noutras.

 

Em Nampula Gimo não tem tanto contacto com os grupos culturais dispersos, muito pelo contrário, convive de muito perto com o som metálico e vibrante das violas e guitarras eléctricas, das diferentes bandas musicais que proliferam, um pouco por toda a cidade. Na época, José Júlio Patinho, uma espécie de trovador, fazia as delícias das grandes massas. Cantava em português e em Emakhuwa. A Rádio Moçambique, à procura de uma programação mais em linha com a revolução, na época, era única e procurava fazer parte do projecto de unidade nacional. Se subdividia entre tocar os hinos gloriosos da revolução, o substrato da epopeia libertadora, reproduzir alguma música pop internacional, com destaque para a brasileira, Soul e funk americano, que ganhava força. Procurava música dos vinhos como Tanzânia e África do sul. Mas, a moda recaia em Roberto Carlos e Erasmo Carlos. 

 

A música local não perdia espaço, porém, eram poucos os que o conseguiam gravar e fazer furor. Foi a oportunidade para os ouvintes do Norte, numa rádio quase sem potência de difusão e em versão analógica, abriu as brechas para outros músicos moçambicanos como Fany Pfumo, Alexandre Langa, Pedro Ben, Wazimbo e Salimo Muhammad, nosso Simeão que Deus decidiu chamar para os shows no palco superior.

 

Mas, Nampula tinha as suas bandas e desfilavam em diferentes palcos e casas de pasto. Os dois Jaimitos, incluindo Jaimito Matapa, ainda estudantes, já revistavam o cancioneiro angolano e imitavam Rui Mingas e o famoso Duo Ouro Negro e o Djambo da marrabenta. Copiavam Roberto Carlos. Esta era uma nova forma de olhar para a música, já com instrumentos mais modernos e com amplificação sonora. Gimo Remane se associa a Salvador Maurício e sai em busca do seu espaço. Leva na bagagem seu repertório e acha que outros ritmos como djarimane, namahandga, e o masepua, poderiam fazer furor. Esta veia cultural o distingue dos músicos da cidade. A simplifica e vai às raízes cultivar seu talento.

 

Salvador Maurício era um etnomusicólogo e se dividia entre a música e uma posição no funcionalismo público da nova e revista máquina administrativa. Tinha a vantagem de estar próximo dos círculos do poder. Gimo Remane equacionou, muito bem, que essa seria uma oportunidade de ouro para se associar a Salvador Maurício, bem conhecido na praça, e, assim, propor essa mistura de sons entre a sua base musical, Tufo, Nsope e Nigungo e musicar esse substrato com instrumentos de percussão modernos, gerando então esse swing africano mais moderno e nem por isso sem raiz cultural. Propôs, então, que o seu repertório tivesse como substrato a língua emakhuwa, apenas, numa época em que a língua local ainda tinha limitações, mas, nem por isso, auditório garantido.

 

Na realidade, apesar de a língua portuguesa ser conhecida, nunca serviu como factor comunicativo para a grande maioria das pessoas. Cantar em emakhuwa era por demais vantajoso e expressava a força de uma ideologia cultural subjugada. Os músicos do sul do País, igualmente, faziam essa opção.

 

Não admira, por conseguinte, que esta proposta tenha sido ousada no começo, todavia, muito bem aceite por largos sectores da população que congregava um número significativo de chumbo, Maconde e outros. Essa obsessão pela língua materna pode ter gerado alguma incompreensão. Não obstante, persistiu e com o seu parceiro de ocasião, Salvador Maurício, seguiu em frente e formou a sua primeira banda, o Eyuphuro e gravaram as suas primeiras músicas. No começo, até para os jovens de Nampula, esta era uma banda da Ilha de Moçambique e não da cidade. Depois, pelo sucesso, passou a ser a grande banda de Nampula.

 

Já decidido e pronto para mostrar seu potencial Gimo Remane, nome pelo qual melhor o identifica, compõe a sua primeira música de sucesso, a famosa Amuara a N’Raki, traduzido como a esposa do Senhor Raqui. Uma senhora que se aproveitava da ausência do esposo para pintar a cara de Mussiro e sair para a rua. Letra simples, mas que tocou os corações de todos. Virou sucesso e teve uma aceitação tremenda. A meio de tantos géneros musicais aquela proposta musical vincava e marcava o seu pedaço e espaço. Decorria o ano de 1981 e iniciava uma carreira sem precedentes e arrasadora.

 

No mesmo ano Gimo Remane sente que poderia explorar outros limites em outras geografias. Numa aventura e achando que tudo seria fácil viaja para o Maputo. Tenta a sua sorte junto da RM e da EME de Eduardo Mondlane Júnior, o grande promotor musical da época, com equipamentos de ponta e que era responsável pela promoção de um vasto conjunto de jovens músicos. Moçambique começava a passar por um período de carências. Faltava de tudo num pouco. Era o preço de se ter optado por políticas comunistas, e por se ter ajudado o Zimbabwe na sua luta de libertação. No Maputo tem colosso para enfrentar e um naipe de bandas que não abriam os espaços de forma facilitada.

 

A RM era sempre quem mais ajudava a divulgar e passava o sucesso do norte de Gimo Remane como esse cartão de visitas inquestionável e indubitável.  Não se consegue firmar e regressa a sua cidade de Nampula. Por alguma razão, nem sempre bem compreendida, entra, igualmente, em rota de colisão com Salvador Maurício. Mas, nessa altura já tem outros integrantes de peso para a sua banda Eyuphuro. Esse remoinho capta Omar Issa, um talentoso guitarrista de enorme tarimba e com muita criatividade, que havia tocado em outras bandas de Nampula, e era dos mais serenos e ponderados e exímio conciliador. A experiência de Omar Issa, já falecido, e a criatividade de Gimo Remane assentam como uma luva. Era o ponto certo e o catalisador de uma nova e auspicia realização. Para gáudio dos seguidores, Nampula ganhava uma bandas que tinha estrelas e reputação.

 

Não tardou, por conseguinte, que esse remoinho tivesse efeitos demolidores. Gimo Remane, eventualmente, continuava fazendo essa incessante busca por novos talentos. Surgiram Mussa Abdala, Chico Ventura e Belarmino Monteiro. Estes dois já na eternidade. Nesta safra, surge Zena Bacar e Aida Humberto. Zena com a voz mais sensual, que não precisou de um segundo convite para provar seus dotes. Se firmou como a voz feminina do Eyuphuro e autêntica estrela nacional. Cantava deslaça, qual diva, e isso ajudou a popularizar o seu talento. A aposta se manteve em maquetizar ritmos do litoral e buscar temas sociais relevantes. Nampula ganhava, quiçá a sua melhor banda dos tempos modernos, um veículo promotor da cultura local, e o remoinho que parecia não ter fim. Saíram de um espaço de conforto e conquistaram o mundo.

 

As carências trouxeram as organizações não-governamentais e outros expatriados para todo o país. Nampula não foi excepção. Recebeu vários, de entre russos e vietnamitas, escandinavos e holandeses. A cidade tem algo que atrai estrangeiros. Deve ser a forma liberal de estar e viver. Entretanto, para Gimo Mendes e sua banda Eyuphuro sobreviver de música virou tarefa árdua e quase impossível. Os patrocínios sumiram, o Estado descapitalizado era a solução, e só mesmo os shows geravam alguma limitada receita. Nem os direitos de propriedade eram respeitados. Era música do povo e todos poderiam usufruir.

 

Gimo Remane se apaixona na época por uma jovem que, mais tarde, virou sua esposa. Charlotte original da Dinamarca. A esposa cedo entendeu que deveria apoiar a veia criadora do esposo. Redobram as suas responsabilidades na continuidade do Eyuphuro. Fazem algumas campanhas para angariar apoios.  Era a forma que a esposa Charlotte encontrava para ajudar o Homem de seu coração e o grande amor de sua vida.  Ajudava de forma directa, primeiro, seu namorado, e depois esposo, a financiar o grupo e minimizar as limitações financeiras graves. Na sua rede de contactos permitiu que o grupo chegasse aos festivais de Verão na Europa e, mais tarde ao tão desejado World Music project, de quem o Eyuphuro foi um dos grandes representantes de Moçambique, a semelhança dos Ghorwane.

 

O mundo clamava por novos sons e estas propostas de Moçambique agradaram a equipa de Peter Gabriel. Eyuphuro ganhava nova vida e embarcava para um rumo que parceria ser de arco-íris e sem final a vista.

 

O World Music era nada mais e nada menos que a música de origem e circulação não ocidental. Eram as canções das minorias, de outras latitudes, dentro desse mundo musical tão complexo e dominado pelo pop, rock and roll e a musical country.

 

Nos shows na Europa o Eyuphuro ganha notoriedade e visibilidade.  Tocavam os corações pela ligeireza de suas canções, seus trajes religiosos e uma Zena que encantava com sua voz de ouro. Começam com shows arrebatadores na Escandinávia e logo chegam ao coração da Europa. Gravam seu primeiro disco entre 1989 e 1991 nos estúdios de gravação Mama Mosambik, ainda hoje temos como um dos trabalhos musicais mais tecnicamente irrepreensíveis. Esta possibilidade abre espaço para eles incorporem outros sons da província, tais como o djarimane, namahandga, e o masepua. Estes ritmos são requintados com outro dinamismo harmónico como são os casos do swing africano e esse híbrido latino e árabe.

 

Para a Europa era um outro pop vestido de outras harmonia e sonoridade. Peter Gabriel que foi o vocalista do Genesis e enveredou por uma carreira a solo, tendo-se afirmou como um dos mais carismáticos artistas da época, aproveita este potencial da música africana e como produtor de vídeos ajuda a divulgar a música do Eyuphuro e o remoinho é reconhecido em toda a Europa.

 

Na primeira digressão para a Europa eles permanecem cerca de seis meses em tournée. Visitam a Holanda, Dinamarca, Bélgica e Suécia. Foram gravados dois álbuns, nessa longa digressão e as dinâmicas do grupo, sem reservas, passou a ser entre Moçambique, que pouco tinha para oferecer, financeiramente, e o ocidente de onde vinham o grosso de receitas da banda. Gimo Remane recorda esse momento e fala do apoio imensurável da sua esposa, que não sendo das lides musicais, procurou formas de patrocinar a banda no começo. Charlotte tem, por conseguinte, o seu mérito na afirmação da identidade do Eyuphuro, e nas apostas ousadas que foram efectuadas noutros continentes. Aliás, os primeiros instrumentos que a banda usou foram produto da generosidade de amigos e de alguns expatriados da esposa de Gimo Remane. Gimo recorda, também, que tudo isto permitiu que criasse diversas composições, porém, muitas delas ficaram por gravar.

 

Gimo Remane era o baluarte do grupo. Fazia os arranjos e compunha. Mas era, igualmente, o produtor, pois, ele próprio, assoberbado, cuidava de organizar as digressões e a venda dos álbuns. Eyuphuro já era uma grande certeza no panorama musical nacional e isso exigia robustez, coordenação e musculatura financeira mais ajustada.  A economia de guerra e o início de um processo de democratização do país criaram, ainda, mais problemas de sustentabilidade do grupo. A existência do público crescia intra e extra muros. Mas, existia algo mais profundo e grave. A pirataria musical. Todos os seus CDs apareceram no mercado negro. Internamente, pouco ou quase nada conseguiam lucrar, porque num mercado musical desregrado e instável nunca tiraram proveitos. Então, a base de sustento eram sempre as digressões e os proveitos dos discos vendidos além-fronteiras.

 

Em 1992, Gimo Mendes opta pelo mais difícil na sua vida e carreira musical. Vai viver com a esposa Charlotte para a Dinamarca, na cidade de Aarhus, na costa este da península de Jutlândia. Esta a segunda mais importante cidade da Dinamarca. Desde, então, aqui se radicou e trabalha.  Trinta e três (33) anos de uma residência condicionada pelo amor e matrimónio, e que ditaram a prolongada ausência das lides musicais moçambicanas. O cenário musical moçambicano passou a dispor de Gimo Romane esporadicamente.  A sua banda Eyuphuro, qual remoinho que perdia a força, foi sobrevivendo de esporádicos convites, até desaparecer do cenário musical de forma física. Assim são os remoinhos, concentram sua máxima forma no epicentro e depois, só a cauda faz os últimos estragos, até que enfraquece para que novos remoinhos possam surgir. Esses sons das profundezas do mar se enfraqueceram de forma irremediável. Zena Bacar continuou cantando no Maputo, emprestada à diferentes grupos e actuações quase oficiais; o resto da banda se desfez para a tristeza da cidade e província de Nampula. Eyuphuro virou memória, mas seu inigualável repertório musical perdura para sempre.

 

Na Dinamarca Gimo Remane estudou música a nível superior e criou um estúdio próprio. Recorre aos amigos e estudantes para a produção de suas músicas, além de realizar concertos um pouco pela Dinamarca e outros países. O melhor, ainda, tem sido o facto de ter começado a leccionar em algumas escolas de música no continente africano. Pai de dois filhos, ele os influencia para a música igualmente. Todos os filhos de peixe sabem nadar e os naturais de Mossuril entendem de música.

 

Nas poucas conversas que temos mantido, ele fala da Artist Take Action, uma associação de carácter cultural e humanitário que, de entre outros, procura congregar diferentes sensibilidades culturais e liberais para estimular esta ligação com a cultura e o seu Moçambique que não sai do Horizonte. Consegue apoios para aparições em Moçambique, porém, sente que essa forma esporádica de dar corpo a sua criatividade musical é insuficiente e ineficaz. Mas, dá os passos certos, sem nunca querer exagerar e dar um passo maior que a perna.

 

Gimo já saiu de Nampula como um Rastafarian. Manteve essa tradição até aos dias que correm. Convicto e com fé de gigante. Rastafarianismo por vezes tido como uma designação ofensiva, longe de nos querer injuriar, equivale, então, a essa religião judaico-cristã com origens afrocêntricas. Está convencionado que surgiu na Jamaica, na década de 1930, entre negros descendentes de africanos escravizados. A sua legião está espalhada um pouco por todo o mundo e Gimo, de forma consciente, mantém os traços de uma longa juventude da qual ele não quer se excluir.

 

A sua produção continua profícua. Mais se assemelha a um imperativo de consciência. Recebo músicas que ele produz e que, certamente, deve estar preparando um novo álbum. O último álbum que lançou em Moçambique, data já de 2014 ou 2015, e se designava raízes da minha terra. Uma crítica ao que tem sido vinculado no ocidente sobre o continente africano, colocando como local de guerras, epidemias e fome.

 

Mas, igualmente, surgiu como um tributo à Nelson Mandela. Pode ser que o álbum não tenha feito tanto furor, num momento em que o país experimenta novos cordões, época de modernidade, ritmos como Pandza e Amapiano, com exuberante influência sul-africana, para não mencionar os sons dançantes de Angola. Mas, diga-se, de passagem e em abono de verdade, que o novo naipe de músicos, mais jovens e com recursos tecnologia, oferecem linguagem ajustada à juventude, comunicam melhor, fascinam as mentes com repetições e batidas repetidas. Cada época transporta suas as aspirações. Gimo ainda teria muito para oferecer ao seu país.

 

Na sua longa estadia na Europa, Gimo Mendes continua ganhando prémios e diferentes menções honrosas. Já foi outorgado e laureado como melhor artista africano do ano na Dinamarca, no longínquo 2009. Antes, fora distinguido com o prémio Danish World Music, em 2007. Mais recentemente gravou o CD Melo, que significa amanhã, em Emakhuwa. Ele próprio define esta nova obra como pertencendo aos espaços e épocas onde os seres humanos se reencontram, as ideias florescem, e se recriam na intersecção e na compreensão. Assim se criam os laços de fraternidade e comunhão. Esta atmosfera de que a vida carece, para que, sejamos todos parte desta humanidade sem distinções de raça, credo e traços culturais.

 

Nas diversas entrevistas e blogs onde se podem ler entrevistas que o artista, amiúde, providencia, sem dúvidas, vale recordar sua apreciação sobre o estágio actual da música. Na sua opinião, grande parte dessa música espelha uma certa apatia da nova vaga de músicos em investigar ou mesmo recriar o património rítmico moçambicano. “Não tenho nada contra ninguém que compra um computador e programar os sons que o japonês fez para começar a cantar. Aliás, muitos nem cantam, só falam com uma certa musicalidade. O que não aprecio é isso estar a passar como identidade musical moçambicana, porque não é”. Assim desabafa Gimo Remane ao mesmo tempo que faz um apelo para que a nova geração preste mais atenção às suas raízes culturais. Na prática, Gimo Remane vive com algum descrédito sobre a evolução da criação cultural mais aturada. A tecnologia, aqui e em toda a parte, começa a colocar essa pesquisa etnológica e cultural, como parte de uma história distante.

 

Quando as estrelas reluzirem e o crepúsculo se der por vencido, porque o arco-íris intercala as tardes e noites, deslumbrarão as emoções deste povo saudoso e inconformado, que não pretende esquecer as suas estrelas que ecoaram pelos vários cantos desde mundo. Gimo Remane é um deles e devemos essa gratidão pelo que fez pela música local, mas, o que continua fazendo na formação de jovens na Europa e, de certa forma, noutros quadrantes. Enquanto, não chega aos 70, cuja cerimónia será realizada aqui na pátria que o viu nascer, a sua carreira musical será, eternamente, feita de encontros e desencontros, porem, com as esperanças e certezas de que, o seu talento, perdurara para todo o sempre. (X)

quarta-feira, 30 outubro 2024 10:39

Nahota Mustafa das Noites de Lua Cheia

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Não chove em noite de lua cheia. É um saber secular, nem por isso, enciclopédico. Endogeneidade conceptual que transforma o comum em algo super natural. Mas os tempos mudaram, as vontades também. Agora, chove desregradamente. Noutros tempos, a chuva, em jornada solarenga, até simbolizava casamento de macacos. Eles próprios se apadrinhavam, e contemplavam o doce sabor arco-íris.

 

Encontrei o velho Nahota Mustafa, ainda imperial, absorto em seus pensamentos, descrente da vida e desconfiado dos tempos. Debutamos nas saudações, nessa expedita e metódica forma de reencontros, com as cordialidades costumeiras. Aprimoramos os rituais e as apologias à paz, na gentílica praxis Namúli, tão adulterada pelos tempos.

 

A saudação continua um procedimento que revela respeito e cordialidade; segue os preceitos e, de forma hábil, auxilia a dirigir a conversa para o objectivo que pretendemos. Na Ilha, por tradição, os critérios hierárquicos definem as normas do respeito e da fraternidade.

 

Nahota, ou comandante do Dhow, esse milenar barco à vela, quem sabe oriundo do Omã, lá no médio oriente, e que galga as ondas pela nossa costa, também, vive intrigado com a natureza. Esmiúça suas esperanças para contemplar a serenidade do mar, os dias carregados ou vazios de tudo. São as águas que oferecem os frutos para a colheita, ventos para a sementeira, nesse movimento de ondas sobre as quais transbordam as saudades. Ele vê a sua Ilha, aqui onde Luís de Camões, poeta sénior português, também, naturalizado residente, foi celebrado nos seus 500 anos. Nenhum outro lugar fora das fronteiras de Portugal se importou, tanto com ele.

 

Esta Ilha perdeu a sua graça e resvala agora em novas inquietações e mistérios. Nahota, continua incrédulo e contempla o oceano que deixou de ser tudo até a infelicidade felicidade. Ele se preocupa com a tecnologia avassaladora, pois, ninguém mais precisa do seu conhecimento. Os seus ajudantes vivem presos ao celular; dominam a previsibilidade; se recusam fazer ao mar em dias de tempestade. Sequer sabem contar os números dos passageiros, pela ganância de mais uma moeda ou uma nota de pequeno valor. Esta é a crueldade dos novos tempos.

 

Nahota também diz que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra”. Já vimos isto escrito em livros de José Saramago. Para ele, o fim da viagem parece ser o fim da história. Todos os dias, ele testemunha muitos centímetros de areia que desaparecem nas praias cristalinas. Os sintomas climáticos que um dia podem afundar a sua ilha. Incomoda que não existam mulheres pilotando embarcações, apesar da ilha receber mulheres conduzindo viaturas todos os dias. Afinal, por onde anda essa emancipação?

 

Os Dhows, essas incontornáveis embarcações que, ainda, sobrevivem os tempos e as adversidades, transportam pessoas, bens e sonhos, perdurando no imaginário e nas esperanças mais imediatas dos insulares. Sem eles a vida terminaria. Eles são o valor de oxigénio para a sobrevivência da ilha e dos seus habitantes. Junto das areias das praias operam os estaleiros de construção destes Dhows. Nahota acha que já não existem mestres. A sabedoria de construção desaparece todos os dias. Os barcos e as suas madeiras são duvidosos.

 

Para a construção dos Dhows, os instrumentos utilizados são exclusivamente ferramentas manuais, desgastadas pelo tempo, mas, ainda assim, tão úteis quanto funcionais. Trabalham com madeiras nobres como o Mogno, a Teca e até a madeira da mangueira e do coqueiro. Tudo à volta serve. As cordas são feitas de cascas do fruto do coco, que permanecem dentro água, durante mais de três dias, para depois virarem cordas resistentes que asseguram que as partes amarradas permaneçam sólidas e coesas. Esta é uma corda que nenhuma tecnologia consegue superar. A cola é, igualmente, feita das cascas de árvores e é tão efectiva quanto segura. A cada esquina tem meia dúzias de artesãos, feitos Mestres, que estruturam sua organização social e económica, em boa parte, na construção e utilização destas embarcações.

 

Quase toda a actividade piscatória da Ilha, e das localidades da costa, Lumbo, Mossuril, Cabaceiras, Lunga e etc. é feita com recurso ao Dhow. Também eles fazem a navegação de cabotagem para o transporte de passageiros. Transportam a história da glória, da heroicidade e dos desígnios de um litoral que deu vida ao continente e reconfigurou sonhos de viajantes e exploradores, traficantes, religiosos, falsificadores e piratas.

 

Nahota anda preocupado pois estas embarcações, agora, também transportam os noivos e seus familiares entre gentes de Zanzibar e as belas macuas miscigenadas da sua Ilha. Casamentos misteriosos que todos conhecem e ninguém comenta; fingem desconhecer. Ele confirma que existem dezenas de moças casando com jovens de Zanzibar e que viajam indocumentados ao cair da noite. Quem sabe até candidatos à insurgência.

 

Ninguém sabe ao certo de onde vieram os Nahotas. A Ilha de Moçambique, esse ponto de encontro de poetas e escritores, reinventou-se para a sua sobrevivência, abrigando alguns desses artistas, enquanto outros se dispersaram Norte a cima ou Sul abaixo. Os Nahotas são as marcas e o orgulho do cruzamento de civilizações e culturas. Eles representam técnicas de construção naval suaílis, árabes que criaram os entrepostos e, com eles, a miscigenação tecnológica.

 

Ao longo dos anos, poucos se preocuparam em documentar ou assimilar a técnica de fabricação dessas embarcações, o que transformou aqueles que detêm esse conhecimento numa verdadeira elite. Uma espécie de conhecimento que passa de pai para filho e de filho… para mais ninguém.

 

Estes Nahotas continuam os maiores conhecedores dos tempos e dos espaços, são responsáveis por edificar estas conexões e perpetuá-las ao longo dos séculos. Através das suas embarcações, os Nahotas registaram segredos inconfessáveis. Se no passado, eram as pessoas mais respeitadas, o presente lhes virou as costas. Hoje, eles vêem seu prestígio esmorecer, sendo ofuscados pela modernidade.

 

Nahota controla todo o processo de construção da sua embarcação. De forma discreta, revela confiança para deixar a equipa trabalhar, porém ao mesmo tempo a insegurança que os novos tempos propiciam. Com as falsificações, ele sabe que podem trocar as melhores peças de madeira e colocar em risco o seu Dhow. Manter a chama da técnica e da mestria preservada não é apenas garantir que o Dhow jamais desapareça, mas é o assumir que a economia da costa se mantenha intacta.

 

Ele e o grupo de amigos e operadores das embarcações falam sobre as mudanças climáticas, noutros termos, como uma pura invenção política e distante do que sempre foi uma realidade naquela parcela do litoral. Eles assumem que as campanhas políticas, nem sempre, se preocupam em explicar essas mudanças. Porém, quando se assumem na governação, então, justificam tudo, ou quase tudo, como fazendo parte do pacote dessas mudanças. Depois, tiram partido para explicar os ciclones naqueles longos comícios que tem mais de palmas do que conteúdos.

 

Se os ciclones sempre existiram, então, porque, agora, são mudanças climáticas e não ciclones? Ao longo da vida sempre experimentaram ciclones e essa foi a definição. Os mestres dos mares, com suas habilidades e conhecimentos únicos, exigem uma comunicação diferente para serem convencidos. Os Nahotas consideram-se possuidores de poderes especiais, que transcendem a compreensão comum e funcionam como uma reserva científica e climática para a população em geral.

 

Para todos Nahotas, as mudanças climáticas seriam uma mitomania que gera testemunhos invertidos inverídicos e desafortunados. Mas, se por um lado estão preocupados com essas mudanças, por outro, vivem o stress de uma pesca cada vez menos abundante e difícil. Por conseguinte, a pesca esta longe de ser comparada aos bons e áureos tempos, onde a ilha tinha peixe de sobra para as famílias locais e para a revenda noutras paragens.

 

Todos os anos, argumentam, as águas, endiabradas e sem escrúpulos nem generosidades, galgam e cavalgam precisos centímetros das suas praias. A este fenómeno lhe foi explicado que correspondia ao avanço do mar sobre a terra. Mas, se interroga, porque razão o mar não roubava a terra antes? Tive de explicar que esta é a batalha que o planeta perdeu. Os pecados que a terra e os homens começam a pagar em vida. Uma espécie de inversão de valores. Sentido contrário da natureza e do próprio mar, nas suas mares mais altas.

 

A nossa conversa se estendeu pelos ventos. Nahota Mustafa acha que os ventos estão, no mínimo, estranhos e indereccionados. Seguem sentidos esdrúxulos e despojados de bom senso. Trocam de velocidade e direcção sem que se faça um sualat no interior do Dhow. Como observou Chinua Achebe “a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.

 

Falamos da sazonalidade de espécies de peixe que viravam sazonais. Os grandes cardumes migram e procuram outros espaços. Nesta época, a pesca reduzia e os cardumes fintavam as redes de pesca. Sem ventos seguros e nem pescado, as carências deixam os pescadores, e todos os Nahotas, sem o menor sentido de racionalidade e muito menos de sustento. Eles não entendem se as suas vidas se fazem de política ou religião, ou se nenhuma delas. Instala-se, então, a desilusão, e a fé e a esperança são esvaídas.

 

Nestas explicações, prestei atenção ao canto das mulheres que aproveitam a maré vazia para colectar crustáceos. O seu canto tem tanto de melancolia como se desespero. Falam de jovens que partiram mais para o Norte e nunca mais regressaram. Mas, também, falam sobre os filhos que não aprendem o essencial na escola. Comenta-se também sobre os jovens que bebem incessantemente durante os finais de semana, começando na noite de quinta-feira e só parando no domingo. Os seus filhos bebem de tudo possível e imaginário; vorazes consumidores. Elas desencontram esse sustento e usam o tempo para ensaiar novas melodias e asseguram que precisam de repetir às canções. Os tempos difíceis oferecem temáticas inesgotáveis. As vozes são afinadas e libertam as suas emoções e almas. ‘Quem canta seus males espanta’.

 

Como escreveu o poeta e filósofo Rainer Maria Rilke, “O futuro entra em nós, para nos transformar em algo que ainda não somos”. A tarde se esfumava lentamente, ameaçando desaparecer com o crepúsculo, cujas cores vibrantes iam do laranja à púrpura, tingindo o céu com tons tão profundos quanto os pensamentos de Nahota Mustafa. Ele queria continuar a conversa, mas não parecia convencido pelas minhas explicações, talvez achando minhas palavras tão efémeras quanto o vento que soprava ao longe.

 

Eu, que não sei prever os ventos do dia seguinte, sentia o peso de sua desconfiança, pois ele, com sua experiência milenar, sabia ler o tempo e entender a linguagem oculta da natureza. Por isso, duvida da minha capacidade de falar sobre os tempos que virão, as dificuldades que o país enfrentará, e os ventos que, segundo seus instintos, serão mais fortes e constantes.

 

Dou exemplos, tentando ser didáctico, mas percebo que ele finge acreditar. Seus olhos, que se perdem de forma vigilante no horizonte, revelam a verdade de sua descrença. Ele vê além das minhas palavras e sente o que eu não consigo prever – os sinais da natureza que sempre foram seu guia. Nahota, com sua sabedoria enraizada nos ciclos do mar e do vento, percebe que o futuro, tão incerto para mim, para ele está escrito nas águas e nas brisas que, sem erro, moldaram sua vida e a de seus antepassados.

 

Teríamos de interromper para que ele pudesse regressar à Mesquita, a Masjid, em busca de reconciliação com Allah. Contudo, aquela casa de oração havia sido alvo de novas regras, e muitos dos sermões já não traziam o apelo nem a convicção de outrora. Os jovens, que estudavam no estrangeiro, voltavam falando de outras escrituras sagradas, levantando questionamentos que antes não faziam parte da rotina daquela comunidade. No entanto, a fé ainda permanecia firme, como a última esperança de que os tempos pudessem, de alguma forma, regressar à normalidade.

 

Hoje, a segurança marinha tornou-se essencial. Estes experientes comandantes de Dhows, que carregam consigo os sonhos e o sustento de tantas comunidades costeiras, precisam agora estar mais atentos do que nunca aos procedimentos de segurança e outros cuidados necessários. As exigências sobre os Nahotas vão além do conhecimento tradicional, requerendo novos saberes sobre como proteger vidas nas águas oceânicas, onde os riscos estão sempre à espreita. Pilotar um dhow continuará sendo o privilégio de poucos, mas a sobrevivência e bem-estar de muitos dependem dessa habilidade.

sábado, 26 outubro 2024 16:40

O cargo (N)

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O facto de haver concorrência para o cargo de Prresidente da República significa o reconhecimento implícito do pluralismo político no país. O pluralismo, na sua essência, não significa que quem pensa diferente é, por inerência, contra os outros. Significa apenas que essa pessoa tem desejos e anseios diferentes, mas que têm o bem comum no centro das suas preocupações. A diferença de opinião é, no fundo, a celebração da força vital que percorre as veias de Moçambique e faz do país um espaço verdadeiramente histórico, isto é um espaço de aprendizagem, de mudança de opinião e de adaptação. É frágil toda a nação que depende da unanimidade para justificar a sua existência.

 

Levou muito tempo para entendermos a importância do reconhecimento do pluralismo. Na verdade, o reconhecimento é apenas formal. Ainda falta muito para interiorizarmos a sua importância para o devir do país. A forma como a Luta de Libertação foi narrada produziu no imaginário dos principais actores políticos não só a ideia de que a unidade de propósitos era crucial para se lograr a independência como também alimentou o sentimento de que pensar a independência de forma diferente era pôr em causa o próprio projecto de independência. Joana Simeão e Uria Simango são alguns dos exemplos mais destacados de moçambicanos que pagaram com a sua vida o preço dessa narrativa.

 

A abertura formal do sistema político não mudou significativamente esta maneira de pensar. A polarização criada pelas circunstâncias em que se chegou à abertura do sistema político fez com que todas as forças políticas continuassem a privilegiar uma narrativa política alicerçada na ideia de que quem não está connosco, está contra nós. Parte da criminalização do Estado que caracteriza Moçambique hoje explica-se desta maneira. Foi porque a governação foi cada vez mais vista não apenas como gerir o país, mas sim como gerir o país de modo a impedir que qualquer outra força política algum dia cheirasse o poder. As redes neo-patrimoniais que isso alimentou não tinham necessariamente como objectivo garantir o assalto privado aos recursos públicos. Tinham como objectivo concentrar tudo nas mãos daqueles que se consideravam – na verdade, que se consideram – os únicos com legitimidade para governar o país no melhor interesse de todos.

 

Daí que parte da sua estratégia política tenha também consistido no enfraquecimento da oposição. O uso consequente da força da lei para limitar os movimentos da oposição, o abuso da maioria parlamentar para ignorar os pontos de vista da oposição, a inviabilização económica e financeira da oposição através da concentração dos recursos do Estado no partido no poder, tudo isto configurou um cenário parecido com uma estratégia consciente de trivialização do pensamento diferente. As únicas concessões feitas foram as que se tornaram necessárias para não levar a oposição – sobretudo a oposição armada – ao abismo do desespero como aconteceu amiúde com o malogrado líder da Renamo.

 

É neste contexto que o Artigo 74 (Partidos políticos e pluralismo) se reveste de muita importância. Ele contém duas disposições: 1. Os partidos expressam o pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país; 2. A estrutura interna e o funcionamento dos partidos políticos devem ser democráticos. A primeira disposição constitui não só um reconhecimento do próprio pluralismo como também é uma instrução para que quem governa o faça com atenção para o facto de que as pessoas que nele votaram são apenas uma parte do pensamento diverso que faz o nosso país. A implementação prática dessa instrução consiste em criar condições para que as decisões governamentais beneficiem sempre da assessoria que a crítica que vem da oposição presta. Consiste também na integração da oposição no Estado – não por via de postos diplomáticos – mas sim por via de responsabilidades de gestão de instituições públicas. Acima de tudo, a implementação requer que quem governa abandone o hábito nutrido pela Frelimo de criar grupos de choque na esfera pública, cuja única função é implicar com que diz o que pensa.

 

Só é guardião da verdade encontrada na constituição quem está aberto ao pensamento diferente e sabe nutri-lo.

segunda-feira, 21 outubro 2024 09:42

Trilogia do Amor, da Emancipação e da Libertação

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O Eco da tua voz grafa a verdade de uma biografia que é autobiográfica. Estes volumes são o testamento de que os princípios fundacionais de Moçambique, a despeito dos contextos revolucionários nacionalista, pan-africanista e internacionalista da sua luta pela independência, consagraram centralidade política à mulher e ao homem.

A harmonia entre Janet e Mondlane, retractada nestes textos, elucida na plenitude que a ética intelectual e a liderança política de Mondlane foram moldadas, também, pela parceria com Janet, seu maior amor. O provérbio africano, que diz “Numa família africana, o homem é a cabeça e a mulher é o pescoço”, resume bem essa dinâmica: Eduardo Mondlane liderava, mas Janet, com sua força intelectual, ajudava a direccionar o movimento e universalizava a causa.

 

Podemos traçar paralelos entre o relacionamento de Janet e Eduardo Mondlane e a emblemática relação de permeio, entre Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Ambos não viveram, apenas, histórias de amor, mas, também, protagonizaram profundas alianças intelectuais que deixaram marcas no curso da história.

 

Em suas famosas correspondências, Beauvoir e Sartre revelaram como seu vínculo transcendia o romance convencional para alcançar as esferas da reflexão filosófica e do compromisso político. Eram parceiros de vida, porém, acima de tudo, aliados na luta por causas sociais que exigiam coragem, integridade e uma constante redefinição do papel do indivíduo no mundo.

 

De maneira semelhante, Janet e Eduardo Mondlane estabeleceram essa parceria que ia muito além do romance e laços matrimoniais. Eles foram companheiros de ideias, de luta e de visão revolucionária e, até, messiânica. Janet, ao lado de Eduardo, tornou-se uma figura essencial no movimento pela libertação e independência de Moçambique e, mais especificamente, na emancipação das mulheres moçambicanas dentro deste contexto. Sua experiência cristalizava a centralidade da mulher na luta armada e a relevância dessa paridade.

 

Diferente de Simone de Beauvoir, que, apesar das pressões da sociedade, teve aceitação nos círculos intelectuais de Paris, França, Janet Mondlane enfrentou desafios bem maiores e mais complexos e subjectivos. Ela se inseriu em um movimento onde a maioria dos combatentes era iletrada e nutria uma visão clara e compreensível do “branco” como o inimigo a ser combatido. Num contexto de colonialismo e opressão racial, Janet, sendo uma mulher branca e estrangeira, representava, aos olhos de muitos, uma figura difícil de se assimilar no processo de luta de libertação nacional. O dilema de uma outra luta , dentro da esfera da própria libertação.

 

Essa resistência se manifestou, claramente, nos eventos de 1968, no Instituto Moçambicano, onde a insatisfação e o desconforto, com a liderança de Janet, transbordaram. Esses acontecimentos não eram, apenas, uma reacção a questões administrativas, mas, também, um reflexo desse sentimento latente de desconfiança e de rejeição à ideia de que uma mulher branca pudesse ocupar um papel central numa luta anticolonial. Entretanto, ao longo do tempo, Janet provou, por meio de suas acções, dedicação e inteligência, que seu compromisso era genuíno e profundo.

 

A relação da Janet e Eduardo Mondlane constitui a dimensão romântica da fundação da ainda complexa história revolucionária moçambicana. A ascensão de Eduardo Mondlane ao cargo de Presidente da FRELIMO, nas eleições de 25 de Junho de 1962, em Dar es Salaam, Tanzânia, marca o início de sua experiência maior na história internacional da época, cujo florescimento intelectual de sua personalidade acontece, desde Agosto de 1951, em confidencialidade de consciência com a Janet Era, nos Estados Unidos da América.

 

Essa confidencialidade chega-nos de sua carta na qual Mondlane partilha com a Janet, em Setembro de 1951, a sua consciência intelectual sobre a história política, económica e social de Moçambique. Lê-se:

 

[…] não é preciso obrigar uma pessoa esfomeada a [ir] trabalhar em qualquer sítio para ganhar ordenado. Uma pessoa esfomeada trabalhará até no inferno […] se souber que, se trabalhar o suficiente, terá algo para comer. É uma questão de escolha entre a fome e a degradação. Penso que todos os seres humanos normais iriam escolher a última.[1] 

 

Como companheira romântica e intelectual de Eduardo Mondlane, e por esta presença na história da fundação da FRELIMO, é justo reconhecer que esta presença da Janet Mondlane, senão ela mesma, em abono da verdade histórica, é a fundadora do movimento político emancipacional feminista moçambicano. O Instituto Moçambicano, por ela fundado e dirigido, em 1963, é a ilustração histórica da sua presença fundacional, não sendo por acaso que tenha sido sob a presidência de Eduardo Mondlane que o discurso da emancipação das mulheres, de início, caracterizou a ideologia da libertação da FRELIMO.

 

Com efeito, Janet pode ter interiorizado do pensamento de John Stuart Mill, que exercia grande influência no contexto intelectual do período. Na verdade, a preocupação de John Stuart Mill com a justiça social inspirou movimentos progressistas e políticas voltadas para a distribuição de rendimentos e criação de oportunidades, como o 'welfare state', reflectindo-se também nas suas acções e visão no contexto moçambicano. A partir do seu livro ‘Sobre a Liberdade’, se entende a apologia ao tratamento da mulher como pessoa com todos os direitos.

 

Ao encabeçar todo este processo biográfico e autobiográfico, Janet mostra-se como a médium que, operando através das cartas da vida de Eduardo Mondlane e de ambos como companheiros, retorna o seu espírito, sob a metáfora de “Eco da tua voz”. Esta especialidade mediúnica da Janet Mondlane, a história reservou, na ausência de Eduardo Mondlane, unicamente a ela, não pela competência adquirida de sua biógrafa-mor, mas sim por ela ser a única pessoa em que o espírito de Eduardo Mondlane se corporificou e se apossou.

 

Por essa biografia que, em essência, é uma autobiografia, Janet Mondlane, muito para além de cumprir uma vontade, ela exerce uma mediação, que é uma dialéctica de amor e possessão pelo homem e sua história fundacional de um povo e nação. Aqui vale a pena ler a forma como ela epitomiza Eduardo Mondlane:

 

A existência de Mondlane foi um milagre porque, sob o ponto de vista lógico, não se compreende como é que um pequeno rapaz africano nascido com uma herança de opressão e de pobreza podia estar tão determinado a ter uma formação académica e, posteriormente, libertar o seu povo ao ponto de dar a sua vida por esse povo[2].

 

Janet documentou, ainda, que foi a personalidade extraordinária ou “especial” de Mondlane a condição que tornou possível a sua apropriação ou, melhor, adopção inicial pelo Rev. Sr. André Clerc e depois institucional pela Missão Suíça na África Austral, como a pessoa identificada para realizar a missão de formação de uma liderança africana no contexto histórico mundial da época de meados do século XX. Dentre várias menções, citemos as seguintes:

 

Quando mais novo, sempre demonstrou um verdadeiro espírito de abnegação. […] Mondlane é uma pessoa muito dotada. Embora tenha iniciado a vida estudantil tarde e em circunstâncias muito difíceis […].

 

[…]. A minha opinião sincera é que estou a dar apoio a uma das pessoas mais dotadas e capazes que podemos encontrar aqui.

 

Se as circunstâncias e Deus o permitirem, a minha intenção é ver Mondlane formado, e bem formado, para ser um Líder da Juventude para todos os jovens de Lourenço Marques, dando início a uma coisa noiva que nós, como missionários, não podemos fazer. […] Gostaria de acrescentar que EM conquistou a confiança das principais missões que aqui trabalham[3].

 

Em carta aos amigos, escrita pelo casal Darrel e Mildred Randall, depois de Eduardo Mondlane sair da Wits University e nos esforços coordenados para a continuação de seus estudos universitários nos EUA, lê-se:

 

Não podemos prever o que Eduardo Mondlane virá a ser no futuro. Mas estamos convictos de que Deus lhe deu uma maior capacidade intelectual do que aos outros jovens africanos que conhecemos, e África precisa imenso de líderes do seu calibre[4].

 

Inquestionável destacar o papel fundamental de Janet Mondlane como uma parceira tanto emocional quanto intelectual de Eduardo Mondlane. Ela não foi apenas um apoio silencioso para Eduardo; sua contribuição foi tangível, directa e decisiva na história revolucionária de Moçambique. É por esse motivo que, dentre as figuras históricas que podem ser consideradas Mães da Nação moçambicana – como Josina Machel, Marcelina Chissano, Graça Machel, Marina Pachinuapa, Celina Simango, entre outras – Janet Mondlane merece igual destaque e reconhecimento. Apesar de seu nome nem sempre ser lembrado ao lado dessas heroínas, seu papel foi igualmente transformador.

 

Janet não só ajudou a orientar e promover eventos que visavam aumentar a consciencialização sobre a luta de libertação de Moçambique, como promoveu a educação e a ascensão das mulheres combatentes. Ela tem de ser recordada como promotora do activismo e engajamento social na busca pela justiça. Ela é uma escritora nata e, como Mondlane dizia, uma repórter com quem partilhou o mesmo tecto.

 

[1] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950. Cartas seleccionadas e editadas de Eduardo Chivambo Mondlane. Fundação Eduardo Mondlane, 2012, p. 32, 33-34.

[2] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 20.

[3] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 129-130. Cf. Carta de André Clerc para Director da Jan Hofmeyr School, de 15 de Setembro de 1947.

[4] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 249.

quinta-feira, 17 outubro 2024 09:44

Moçambique – um País “sem conserto?”

9 de Outubro – a “recrucificação” da democracia moçambicana

I. Enquanto o furacão MILTON destrói a Flórida nos Estados Unidos da América de KAMALA e deixa mais de um milhão de desalojados e uma dezena de mortos, leio – a partir das regiões de Pretória, vizinha África do Sul de Nelson Mandela – que 9 de Outubro acaba de crucificar uma vez mais a democracia constitucional moçambicana; que a Frelimo de Chapo (através das suas armas eleitorais, a CNE, o STAE e “PRM”) tenta dar um tiro certeiro na democracia de Venâncio Mondlane legitimamente eleita pelo Povo segundo a contagem paralela da administração VM7; dá outro tiro certeiro na Renamo de Ossufo Momade, o teimoso, e passa a ferro quente as restantes forças políticas que concorreram as eleições gerais de 2024.

 

II. Escrevi, para discussão em provas públicas (uma década atrás), e mandei publicar em livro dois volumes sobre a democracia. O primeiro, sobre a democracia internacional e; o segundo, sobre a democracia moçambicana em especial… na democracia moçambicana, uma análise que perpassou pela constitucionalização e pela prática democrática desde a fundação da Iª República em 1975 às primeiras eleições gerais pluripartidárias de 1994, sempre deixando evidente – na análise sobre a qualidade da democracia eleitoral – as principais reformas eleitorais que, subentendi, o País devia seguir… sempre ciente que não somos os únicos a fazê-lo, os únicos com preocupação tamanha. Mas, como sempre: costuma ser de praxe, entre nós, afirmar que: “estamos a tocar os tambores africanos ao mais alto som, mas ninguém nos ouve…” se nos ouvem, não querem saber… fingem não ouvir, fazem-se de doentes com ‘surdez-mudez.’ Aliás, lembro-me de um amigo e renomado Jornalista moçambicano que me dizia: “a Frelimo só ouve, só negoceia, com uma pistola apontada nos cornos.” Infelizmente, parece-me evidente…

 

III. Será, pois, por isso que o saudoso líder da Renamo, DHLAKAMA, tinha sempre as negociações ganhas e as garantias transformadas em Lei por conta “destas táticas”? A diplomacia, forma tentada (ou não) por Ossufo, não funciona com a Frelimo que para além de nazista/fascista se transformou num Partido-Estado narcisista que se vai instalando como um demónio do Leviatã de Hobbes desde as terras de Mondlane (Império de Gaza) pelo Moçambique adentro. De facto, a Frelimo corrupta não ouve a ninguém… só a si mesma, a sua ideologia: interesseira, calculista e desumana. A democracia empregada pela Frelimo, diferente dos princípios constitucionais democráticos, é – desde os Acordos Geral de Paz assinado em Roma (em 1992) – uma democracia seletiva. A história do ‘Cartão Vermelho’ do ‘Partido-Estado Frelimo’ continua na moda. Chapo, apesar de parecer um ‘bom Samaritano’, não me parece que tenha o perfil político ideal para Presidente de uma República pelo menos sob ponto de vista internacional. Vai aprender a ser Presidente… certamente dizem muitos! Mas até lá, serão enormes os danos/estragos e a fatura a ser paga pelo contribuinte honesto. Sob ponto de vista constitucional, o Estatuto do Presidente da República determina que o Presidente representa o Estado/Povo no domínio externo, isto é, nas relações internacionais que o Estado estabelece com outros Estados. Ora, não consigo ver o povo representado por Chapo neste domínio. Pareceu-me de difícil adaptação as ideias do liberalismo económico, de cosmopolitismo e multilateralismo. Antes de ser Presidente, é preciso que o candidato seja um cidadão politicamente internacionalizado.  Chapo, cai de paraquedas para assumir um cargo de soberania na democracia moçambicana. Temos de acabar com essa estória de andarmos a pegar num simples «machambeiro» e fazê-lo acordar Presidente de uma República no dia seguinte a todo o custo. Nem todo o «machambeiro», pedreiro, até mesmo professor, etc., tem vocação para Presidente da República. O exercício da vida política, exige virtú. Todo o homem é por natureza ‘Zoom Politikon’, isto é, um animal político (Aristóteles), mas nem todos podemos exercer a política com mestria de Mandela – nem mesmo os cientistas políticos. A política exige ARTE/DOM… só os virtuosos, os eleitos por Deus, a detém…  Uma vez mais: a mania de querer enfiar o nariz de Pinóquio em tudo dá nisso… castigamos gerações, culturas e povos inteiros sem peso de consciência algum! Temos de saber ter a humildade de encontrar e aceitar os nossos limites…

 

IV. Estamos numa era de acelerada ‘globalização multinível’, de concorrência internacional. Precisamos de cérebros capazes de dirigir os destinos de um Povo soberano, de um Estado-Nação a este nível de exigência internacional mais ainda num sistema de governo como o nosso onde o Presidente da República não é um gentleman, um corta fitas. Tem poderes presidenciais até excessivos. Mas nós continuámos a investir neste bando de corta-fitas que não sabem negociar como deve de ser uns simples contratos sobre megaprojetos atinentes ao carbono moçambicano. Moçambique, vive uma “democracia de protocolos.” Uma democracia não é guiada por meros protocolos, onde os nossos empregados dirigem o País, fazem até discursos para um Chefe de Estado e os representantes do Povo quando têm de apresentar contas na Assembleia da República apresentam relatórios copiados de anos anteriores. O cúmulo da estupidez há que chegamos! São “«gajos»” - porque «indivíduos» nem mesmo «tipos» não merecem ser chamados – que se metem a Presidente que não conseguem sequer pensar de per si; não têm visão longo alcance como a de Immanuel KANT que sem precisar de sair da sua terra natal era um mestre, um visionário em si mesmo! São os seus sipaios – vestidos de facto azul e gravata preta – que decidem sobre a vida de mais de 17 milhões de eleitores e mais de 33 milhões de moçambicanos.

 

V. Este velho discurso de ‘A Luta contínua’ nos moldes a que estamos a construir o ‘Estado de Direito democrático e de Justiça social’ é falacioso, tendencioso e já cheira a bolo fecal da Frelimo… Facto, é que a Frelimo nunca aceitou a alternância democrática em Moçambique ao mais alto nível de dirigismo constitucional… ora, pergunto: como saberá se ao longo dos perto de 50 anos de governança democrática governou bem…??? é preciso saber dar oportunidade aos outros para medir a sua capacidade de governança democrática… os verdadeiros democratas fazem isso… Em Portugal, nos EUA, etc., a democracia é rotativista… porque não podemos abandonar esses velhos hábitos de reprimir a democracia??? não tenham medo da democracia; ela tem a sua beleza… está sempre pronta para “mandar ao tiro” quem pisa no povo soberano… é para isso que servem os seus princípios constitucionais, o da contensão do poder que limita os mandatos constitucionais! Não precisamos roubar votos ou ter de comprar votos, de fraudes eleitorais escancaradas para legitimar o poder e impor a autoridade vitalícia das guengues frelimista que visam o carbono: gás, carvão, petróleo, impostos e ajudas financeiras internacionais… Quem tem integridade como VM7 por exemplo – a quem parabenizo pela astúcia/sagacidade democrática e sentido de Estado – faz a diferença por si só… não podemos permitir que Moçambique continue em desconserto! Haja um pouco de bom senso democrático… de respeito pela ciência – compromisso aed aeternum com a verdade – pela meritocracia e pela vida humana!

 

VII. Continuo cético quanto a qualidade da nossa ‘Good Governance’… Não creio que Chapo consiga romper com essa surdez-mudez que corporiza a Frelimo… Não creio que Chapo seja a pomba branca, o mensageiro da Paz, o profeta Daniel. Apesar de jurista, temo que não consiga resistir a ser: farinha do mesmo saco! Afinal, há muitos juristas/Técnicos jurídicos nos Tribunais que de deontológico e ética não têm nada enquanto mais um jurista político… Em democracias autoritárias e/ou ditatoriais (como tende a ser a nossa) para fazer a diferença teria de optar: a vida ou a morte! O Problema da Frelimo são os seus radicais. E são uma esmagadora maioria. A velha guarda que vai deixando de herança a sua OJM o seu veneno. Virar as costas aos radicais da Frelimo é como tentar virar as costas a um leão faminto. Você não sobrevive! Como Nyusi, Chapo sabe disso. Não é louco… ou é??? Vamos lá entregar o poder por bem a quem de direito. Vamos comparar os editais, vamos ser justos. Vamos lá ser exemplo de democracia e dignidade. Vamos lá deixar Moçambique ser uma Nação civilizada. Vamos lá acabar com esses resquícios do império de Gaza. Vamos lá fazer de Gaza e Inhambane mais democrática assim como têm sido Beira, Nampula, etc., e está a ser Maputo. Vamos lá corrigir os erros do passado, do presente e construir um Estado Novo para todos. Vamos lá realizar o sonho moçambicano. Vamos lá ser gente, tentar diminuir ao máximo as gritantes desigualdades entre as classes sociais. Vamos lá incutir verdadeira paridade regional no País. Vamos lá mostrar ao mundo que Moçambique tem coração. Vamos lá…!!! Vamos ver se 21 de Outubro responde como um tiro certeiro aos “resultados viciados” a serem conhecidos no dia 24 de Outubro. Nós, PODEMOS!

 

Hamilton S. S. de CarvalhoPhD em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa Luís de Camões. Professor Visitante em Angola. Colunista do Jornal Impresso, Semanário Canal de Moçambique, e do Jornal Digital ‘Carta de Moçambique.’

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O caso do Banco Austral teve agora um “volte face” na justiça, com a pronúncia de três arguidos, que sentar-se-ão no banco dos réus dentro em breve. A decisão do Tribunal Superior de Recurso de Maputo, que revoga um despacho de não pronúncia exarado em 2009 pelo juiz Cinco Reis, é tomada quase 15 anos depois do recurso do Ministério Público e do assistente contra aquele despacho. 

 

Quinze anos depois? Afinal, o que andam a fazer os juízes do TSR? Este caso devia ter a devida celeridade, tratando-se de um caso que teve contornos de delapidação dos cofres do Estado, que foi obrigado a recapitalizar o banco para privatizá-lo novamente, da última vez para o ABSA. 

 

Quinze anos, e um dos arguidos atingiu a velhice da vida, anda doente. Com 84 anos de idade, a justiça ainda acredita que ele pode pagar pelo alegado crime cometido em 2001, esquecendo-se que o direito do homem a que se faça justiça em tempo útil e razoável é um dos princípios fundamentais de um Estado de Direito. 

 

Este arrastamento do caso sugere nuances de denegação da justiça ou, o que é pior, de justiça tardia.

 

Já alguém escreveu: “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no património, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir ao delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.”

 

Se é para embarcamos na justiça tardia, então que ela seja feita em toda a extensão do caso. Não basta fazê-la apenas no caso do assassinato, para responsabilizar apenas os autores do homicídio. É também preciso responsabilizar os autores da gestão danosa do banco. 

 

Para quem não sabe. O caso Banco Austral tem duas vertentes. A vertente do assassinato e a vertente da gestão danosa. As duas têm uma relação intrínseca, de vasos comunicantes.

 

A gestão danosa foi a principal causa do assassinato. Logo após o assassinato de Siba Siba Macuácua, o Estado começou a investigar apenas este crime. Sobre o assassinato, o Ministério Público acusou alguns indivíduos em 2009, mas o Tribunal da cidade de Maputo rejeitou as acusações, soltando os suspeitos que haviam sido detidos (Parente Júnior, entre outros, nomeadamente dois guardas do antigo banco que se suspeita tenham sido os autores materiais do crime). 

 

O Ministério Público (MP) recorreu ao Tribunal Supremo, havendo ainda a esperança/possibilidade do Tribunal Supremo dar razão ao MP e vir a pronunciar os acusados. O recurso foi aceite, agora pelo TSR.

 

Parte dos antigos administradores, nomeadamente Octávio Muthemba e Jamu Hassan, haviam sido constituídos arguidos como autores morais, mas o Ministério Público se absteve de acusar, também por alegada falta de indícios. Espera-se que, se o Supremo der razão aos argumentos do Ministério Público e o caso for a julgamento, possa haver clareza em relação à identidade dos autores morais. 

 

A investigação da gestão ruinosa do Banco Austral nunca foi preocupação de primeira hora por parte das autoridades. As investigações sobre a gestão danosa só começaram depois da pressão dos doadores e da sociedade civil, tendo culminado com a realização de uma auditoria forense, por uma firma estrangeira. A realização da auditoria, sob pressão dos doadores, enquadrou-se, como se sabe, no contexto dessa recapitalização que teve como pano de fundo a cobertura dos prejuízos acumulados do Banco Austral – na ordem dos 400 milhões de USD – e no qual foram envolvidos dinheiros dos contribuintes moçambicanos e estrangeiros, nomeadamente daqueles países que prestam o apoio directo ao Orçamento do Estado. A auditoria forense encontrou sinais evidentes de gestão danosa. 

 

A Procuradoria Geral da República (PGR) sempre disse que estava a investigar a gestão ruinosa, mas nunca revelou em que direcção as investigações seguiam. Aparentemente, só no ano passado é que foi instaurado um processo (53/A/PRC/2009) contra antigos administradores e gestores do Banco Austral, entre os quais Octávio Muthemba e Jamu Hassan. Em Abril de 2009, o Ministério Público decidiu abster-se de acusar os antigos gestores alegadamente envolvidos na gestão danosa. O argumento é de que a lei aplicável começou a ter efeitos posteriormente aos actos de gestão danosa. 

 

Aparentemente, e em contraste com o que aconteceu no caso Cambaza (Aeroportos), o Ministério Público parece não ter feito muito esforço para ir rebuscar leis anteriores à Lei 15/99. No caso Cambaza, quando se viu que a Lei Anti-Corrupção (Lei 6/2004) era ineficaz para condenar os arguidos, o Ministério Público e o Tribunal recorreram à Lei 1/79 (Lei sobre Desvio de Fundos), uma lei elaborada num contexto de repressão estatal. 

 

Temos indicação de que outras leis podiam ser usadas para se ir avante com a responsabilização criminal da gestão danosa, no mesmo espírito que se usou a Lei de Desvio de Fundos no caso dos Aeroportos. Uma delas é a Lei de Defesa da Economia (Lei 5/82, de 9 de Junho, posteriormente alterada pela Lei 9/87, de 19 de Setembro), que criminaliza actos de gestão danosa, negligência, violação de regras de gestão, abuso de cargo ou função, fraude, pagamento de remunerações indevidas, etc., quando estes actos atentem contra o bem-estar do povo. Não consta que esta lei tivesse sido usada exaustivamente para responsabilizar os gestores em causa. 

 

Esta lei (9/87) foi apenas usada para se abrir um processo autónomo contra os gestores malaios do Banco Austral, nomeadamente Koonjambum Mugathan, Marcus Young e Leong Yit Ket, que representavam o accionista SBB (um banco da Malásia). Mas não foi usada para responsabilizar os administradores moçambicanos, alegadamente porque eles não participavam da gestão diária do banco.

 

O caso Banco Austral é um caso político sério que envolveu a delapidação dos cofres do Estado (cerca de 400 milhões de USD). O saneamento do banco, para poder ser privatizado definitivamente, foi à custa de dinheiros dos contribuintes nacionais e estrangeiros (através do dinheiro da ajuda externa). Por outro lado, a gestão danosa foi o principal motivo do assassinato de Siba Siba Macuácua. O comportamento do Ministério Público neste caso sempre foi dúbio e aparentemente denotando estar a agir sob instruções do poder político. 

 

Por isso é que, mesmo tendo sido chamado a atenção para o facto, o Ministério Público nada fez para viabilizar a responsabilização civil dos antigos administradores do banco. Em 2001, na altura em que o Banco de Moçambique interveio no “Austral”, o Ministério Público, como defensor dos interesses do Estado (e sendo o Estado sócio do Banco Austral e sendo o accionamento da responsabilidade civil uma competência dos sócios) devia ter usado o Decreto-Lei 49381, de 1969, para accionar um processo de responsabilização civil. Hoje, passados todos estes anos, esta acção de responsabilidade civil já prescreveu. 

 

A justiça moçambicana está perante um desafio enorme de credibilidade. Para vencer esse desafio, o MP deve esgotar todas as possibilidades de accionar a responsabilização criminal da gestão danosa sem receios de qualquer insucesso. O Banco Austral (e o assassinato de Siba Siba) deviam ser investigados em todas as suas vertentes.

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