Samora Machel é citado como tendo respondido a um jornalista de que nunca lera pela primeira vez o livro “O Capital” de Karl Marx.
Samora Machel, ainda na resposta, refere que da vez em que lera Karl Marx, durante a luta de libertação de Moçambique, descobrira que estava a lê-lo pela segunda vez, pois o relatado era semelhante ao vivido por ele até então. Aliás, algo que já vinha de gerações e que alimentara o seu espírito nacionalista.
Há pouco mais de 10 anos, num “Show” de Azagaia, ouvi de um amigo uma resposta algo parecida. No auge do “sermão” de Azagaia perguntei ao dito amigo, por sinal de longa data e de parcas palavras, sobre quando é que ele teria ouvido Azagaia pela primeira vez.
Ciente de que me espantara por vê-lo completamente de avesso, tal possuído pelo vírus da rebeldia e em plena sintonia com o Azagaia, o até então pacato amigo, respondeu-me de que “nunca ouvira Azagaia pela primeira vez”.
Nesse instante lembrei-me da resposta de Samora Machel e, sobretudo, tomei consciência da dimensão de AZAGAIA: UM LIBERTADOR DE SILÊNCIOS!
Esta dimensão - ora renovada nas homenagens por conta da sua súbita partida, a partida de Edson da Luz, ou simplesmente Azagaia (1984-2023) - certamente que continuará na longa Marcha pelo Povo no Poder.
Saravá, Azagaia!
Nenhum moçambicano, depois de Mondlane e Samora, viu seu ideário de combate político, de verticalidade e cidadania, ser reconhecido em Moçambique e no estrangeiro, tornando-se fonte de inspiração de novas lutas contra a opressão e a marginalização dos povos. Só Azagaia! Ele tornou-se no terceiro grande símbolo da mocambicanidade. Quando a História deste país for reescrita, esta verdade será registada.
EU BEBEU SURUMA DOS TEUS ÓLHO ANA MARIA
XICUEMBO
eu bebeu suruma
dos teus ólho Ana Maria
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco
agora eu quere dormir quere comer
mas não pode mais dormir
mas não pode mais comer
suruma dos teus ólho Ana Maria
matou socego no meu coração
oh matou socego no meu coração
eu bebeu suruma oh suruma suruma
dos teus ólho Ana Maria
com meu todo vontade
com meu todo coração
e agora Ana Maria minhamor
eu não pode mais viver
eu não pode mais saber
que meu Ana Maria minha amor
é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
todo gente todo gente
menos meu minha amor
Rui Nogar
O Poeta Rui Nogar, um dos mais insignes nomes da poesia moçambicana, pseudónimo de Francisco Rui Moniz Barreto, nascido em Maputo a 2 de Fevereiro de 1932, morreu, aos 61 anos, a 11 de Março de 1993, em Lisboa, passam hoje 30 anos. Quase sempre esquecido, como estão esquecidos uma data de nomes e figuras importantes da nossa cultura, esta é uma daquelas personagens literárias por quem cultivo, sem tréguas, uma admiração reverencial, o que proclamo aqui sem nenhum rebuço. A minha geração muito lhe deve. Para além da circunstância de ter sido o primeiro secretário geral da AEMO e de ali ter albergado uma geração intrépida de escritores da nova geração, como seria a nossa, ele foi um dos mais exemplares escritores moçambicanos.
Numa vetusta entrevista a Luís Bernardo Honwana, que realizei quando intentava a busca da memória literária e cultural do nosso país, fiz algumas perguntas veementes, que se justificavam pela minha entusiasmada e impetuosa juventude. Duas delas: “Considera que há grandes poetas hoje em Moçambique?” A resposta do celebrado autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foi indubitável: “Sim”. A minha questão ulterior: “Quem são os grandes poetas moçambicanos?” Luís Bernardo Honwana seria assertivo: “Não gosto de citar nomes, mas há nomes óbvios: Craveirinha, Noémia, Rui Nogar”. Estávamos em 1990.
Continuo a concordar com Luís Bernardo Honwana, ele próprio um nome estelar da nossa literatura. Tenho para mim que o Rui Nogar foi um extraordinário poeta. Leia-se o seu livro “Silêncio Escancarado”, leia-se o seu belíssimo poema “Nove Hora” (que seria levado à cena pelo Mutumbela Gogo), leiam-se os seus poemas dispersos, entre os quais o aclamado “Xicuembo”, que encima esta prosa. Há ali uma sintaxe própria, há ali uma gramática pessoalíssima e há ali uma construção poética que denuncia, por assim dizer, um homem apaixonado pelos homens do seu tempo, um homem com causas, um homem com uma ética que faz da condição humana a matéria prima da sua poesia e da sua vida.
A vida difícil, o sofrido quotidiano, as desigualdades sociais e as iniquidades do sistema colonial, que ele abominava e contra as quais lutou acirrada e tenazmente sempre, fazem o lastro da sua escrita, da sua poesia, dos seus gestos, quase sempre arrojados, do seu grito visceral e da sua revolta enérgica. Cumpriu uma dura penitência na Cadeia da Machava, onde escreveu alguns dos seus mais emblemáticos poemas. Ali, também, denunciou o “silêncio”, que era, no fundo, a ausência de humanidade: “tratávamos o silêncio por tu / dormíamos na mesma cama / acordávamos do mesmo sono” – escreve em “Da fruição do silêncio”, um dos seus mais belos e pungentes poemas: “era o silêncio devorando o silêncio / era o silêncio copulando o silêncio / era o silêncio assassinando o silêncio”.
Ali “na líbida cegueira da avidez láctea” (note-se-lhe este verso extraordinário!), “um farrapo de música nos basta / para remendar / esta longa longa solidão”. No mesmo lugar “do silêncio às palavras”: “a vigília obrigatória / dos que se obrigam a vigiar-nos” e onde “o rastilho da razão / e a pólvora da ciência / nas celas da ignorância // e o escorpião do medo”. Ali mesmo, naquele lugar, “estes pirilampos de esperança”.
Da “Mensagem da Machava” avultam estes versos: “tudo ganhou novos ângulos novas luzes / é mais volátil é mais livre o voo das aves // (...) o amor é tão fácil como o sorriso das crianças / o amor é tão puro como o sémen das chamas /(...) e apesar das grades dos cães-polícias / sinto-me cada vez mais perto de vós”. Ou do poema “Pavilhão 7 Cela 20”: “à noite as almofadas / são mais duras e desconexas / o colchão regurgita / famintas maçarocas / mordendo-nos o sono / e a crosta dos pensamentos” (...) “e mosquitos minuto a minuto / mergulhando céleres / suas adagas no cerne da nossa angústia / despertam-nos o cosmos da impaciência”. Ou ainda do poema “As palavras dantigamente”: “as palavras / e sobretudo o silício do silêncio / dilacerando-nos as fontes de inspiração”. Isto é de um grande poeta. Isto é extraordinário.
Rui Nogar foi sobretudo um audacioso nacionalista. Era um poeta engajado. Isto não lhe diminuía, informava o alto sentido moral da sua existência e da sua práxis. Não estava interessado na sua imortalidade literária. Tinha assumido um combate, um combate feroz e fazia disso o viático da sua jornada. Era um homem indignado – um inconformado. Conhecia a tremenda realidade social para além da “fronteira do asfalto” (Luandino Vieira dixit). Era mítica a sua incursão pelos labirintos dos subúrbios ditos laurentinos. Glosando Craveirinha: Nogar não ia visitar os subúrbios, o Nogar era de lá, aquele era o seu mundo. Era, também, por isso, arreigadamente moçambicano.
A sua poesia não é apenas uma poesia de denúncia. Não é apenas uma poesia de protesto. É também, ou sobretudo, uma poesia que inventa a moçambicanidade, uma poesia de afirmação, de afirmação nacionalista, uma poesia que institui uma pátria, a nossa pátria - pátria moçambicana, muitas vezes aviltada nos dias de hoje. Há quem lhe aponte um tom panfletário nos seus poemas, principalmente os mais afeitos à recitação. Isso não me inibe de lhe extrair belas imagens, soberbas metáforas, um universo vocabular que enuncia um grande exegeta. Um esteta comprometido com os homens e as causas do seu tempo. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.
Rui Nogar foi também um grande declamador. Aliás, um mítico declamador, que ousava desafiar as autoridades coloniais, ou os seus biltres, nos saraus, dizendo, provocatoriamente, poemas que denunciavam a situação. Fê-lo diante de pides disfarçados, numa Associação Africana apinhada de gente, com o poema de Carlos Maria (“Balada dos homens da caça”) que tinha como estribilho: “Venham todos os homens da caça / Venham todos / Tragam as azagaias”. Fê-lo apontando para os pulhas que estavam na primeira fila.
Seria preso nessa madrugada. Outros que recolheram aos calaboiços: José Craveirinha, Cacilda Reis, Luís Polanah. O tristemente célebre Roquete, safardana de má memória, torcionário de serviço, seria assertivo ao interrogá-lo: “Por que é que você anda com pretos?”
Rui Nogar pertenceu à 4ª Região Político-Militar da FRELIMO e teve um papel importante na luta clandestina. Uma das casas onde se reuniam era a casa de Armando Pedro Muiuiane. Numa das rusgas da Pide, em 1964, foram todos presos. Adrião Rodrigues, Santa Rita e Almeida Santos advogam a favor dos presos nacionalistas. Rui Baltazar não pôde defendê-los. Estava identificado com um dos reclusos: Albino Maeche. Foi impedido de o fazer. Os presos são ilibados, mas não foi por muito tempo. O julgamento seria repetido. A sentença viria firme de Lisboa: prisão maior.
Craveirinha, Honwana, Malangatana são seus companheiros de prisão. O “Silêncio Escancarado” é, seguramente, um testamento literário que escrutina esses tempos ominosos. Craveirinha fá-lo-á em “Cela 1”. Existe, aliás, uma correspondência mítica entre Luís Bernardo Honwana e José Craveirinha na prisão. Malangatana pintará, dessa dura experiência, os seus duendes, os seus demónios e as suas figuras fantasmagóricas.
Nos tempos ulteriores à Independência, Rui Nogar desempenhará os cargos de Director Nacional de Cultura e Director do Museu da Revolução, será deputado da Assembleia da República. Poeta consagrado, a edição da sua obra ocorre em 1982, num contexto de liberdade, na célebre colecção Autores Moçambicanos, do INLD. Será o primeiro secretário-geral da AEMO. Não escapou, porém, aos esbirros da revolução. Irá para Nampula cumprir uma ignominiosa reeducação. Muitos intelectuais sofreram essas purgas, os chamados excessos no jargão da política. Foi o paradoxo, a contradição, a ironia. Não senti acrimónia no Rui apesar disso. Como não sentira no Albino Magaia, que esteve no chamado Gulag moçambicano.
Em 1990 também o entrevistei e ele disse-me o seguinte: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época”. Vi e vejo nesta afirmação a sua estatura moral e ética, a sua grandeza e nobreza. Aliás, recordo-me de muitas discussões que tínhamos, das nossas discordâncias amigáveis, calorosas sem serem necessariamente acerbas, sobretudo porque nós os mais novos não nos incumbíamos dos ditames da revolução. Antes pelo contrário. Estávamos, muitas vezes, nos seus antípodas. Estávamos sublevados.
O Rui dizia-me, entre outras coisas: se tivesse que escolher entre escrever sobre a flor e a luta ele daria primazia à luta. Dizia-o com a sua proverbial candura e não cerceava o nosso espaço de liberdade criativa e de crítica. Antes pelo contrário. Tinha abertura para o contraditório e levava o ideário da liberdade até às últimas consequências. Homem livre, não obstruía a liberdade dos outros. Não se ofendia com a objecção dos mais jovens, convivia bem com a nossa contradita, que era por vezes ácida. Politicamente afirmado, ideologicamente marcado, socialista intransigente, amava sobretudo a liberdade. Esta era também uma ética, a sua ética.
Hoje é deslembrado. Ao longo dos anos tem sido aludido em versos de poetas amigos que vão de José Craveirinha a Luís Carlos Patraquim. Mas não o lemos. “Ninguém liga peva aos poetas”, proclamava Eduardo White, um dos mais insurrectos da minha geração. Hoje muito menos. Tenho-me lembrado do Rui, amiúde. Por vezes, faço-lhe uma vênia na sua campa no Cemitério de Lhanguene e deixo-lhe uma rosa branca. Foi um amigo muito querido e tenho dele avultadas lembranças. No dia em que passam 30 anos sobre a data sua morte, quero aqui honrá-lo. Não cometo expectativas quanto à Pátria. Sei que nada farão para o homenagear. Assim são os nossos pressurosos intendentes, vivem solícita desmemória, são obstinados no esquecimento. Mas cabe a alguns de nós o ofício da memória. Aqui está um dos nossos grandes poetas. Um dos fundadores e esteios da nossa nacionalidade. Um homem probo, um excelente tribuno, um amigo e um camarada de ofício de saudosa memória.
RETRATO
mais do que poetas
hoje
somos sim guerrilheiros
com poemas emboscados
por entre a selva de sentimentos
em que nos vamos libertando
em cada palavra percutida
hoje
nós
em moçambique
1969
Rui Nogar
Em Memória de Edson da Luz (Azagaia) (1984–2023).
Sei que teu sonho sempre foi
Povo no poder um dia ver
Sei que tua luta sempre foi
Teus irmãos sustento e comida suficiente ter
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei que pelos teus irmãos lutaste
E contra As Mentiras combateste
Para que sua Babalaze não fosse de tentação
Mas de extrema revolta contra a fraternal exploração
Da tua amada terra que hoje pranteia endividada e em chamas
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei que pelas tuas amadas irmãs
Versos e cantos diversos grafaste
Para que seu real e maior tesouro
Não fosse apenas capulana em seu corpo envolto
Ou em uniões promíscuas com estrangeiros
Mas a pujança das mamanas dos mercados e machambas
Que como Josina, embora sem Machel,
Vergam as mãos e lutam para a miséria vencer!
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei que muitas Mentiras da Verdade em vida ouviste
Sobre Mondlane, Urias, Samora e até Dhlakama
Cujos detalhes ainda hoje somente jazem
Encriptados em cavernas dos deuses da governação!
Sei que continuarias a escrever
Sobre as desgraças de Matalane e Ndlavela
Esboçadas em espaçosos escritórios
Com carimbos de conhecidos grandes chefes
E em motéis implementadas à luz de vela
Cujas sequelas ainda hoje entre nós ressoam
Mesmo assim, similar aos tantos casos de rapto,
De mulatos, monhés e nossos irmãos em Cabo Delgado,
Enterraram-se as provas da real investigação!
Sei que continuarias a escrever
Sobre o patriotismo de Cardoso e Siba Siba
Cujos pormenores ainda se encontram algemados
Em conhecidas Procuradorias e Tribunais
Similares à tenda das revelações das dívidas semi-políticas
Escoltados por famigerados Esquadrões da Morte!
Sei que continuarias a escrever
Sobre os nossos vastos e raríssimos recursos
Que apenas ao povo favorece em vazios discursos!
Sei que continuarias a escrever
Sobre o nosso abundante Petróleo e Gás
Cujos benefícios apenas nos chegam
Em agabinetados relatórios e páginas de jornais!
Sei também que continuarias a escrever
Sobre os dados das nossas adoentadas eleições
Cujos resultados são em conluio e politicamente aprovados
Em rodas monetárias secretas, carimbados debaixo de lençóis!
Sei ainda que um dia havias de escrever
Sobre as nossas famosas três refeições
Que de Roma em nossas telas invadiram
Suplantando casos de crónica e aguda desnutrição
Que também se vê em nossa saúde e educação
Espalhados pelos cantos desta Pátria desleixada
Que caminha ao ritmo de teoria txova xitaduma!
Ainda sim, sei que também sabes
Que o verdadeiro aroma destas três doações, aliás refeições
Somente ao de longe pobremente sentimos
Em pátios de indivíduos muito bem partidarizados!
Sei que continuarias a escrever
Sobre a nossa tão desgastada educação
Em Labirintos intencionalmente desenhada
Para deformar a tua e Minha Geração
Ensinando-a o ABC das Mentiras da Verdade
Que manterá este povo muito longe do poder!
Mesmo assim, sei que ainda sonhas um dia ver
Esta nossa juventude não mais adormecida
E como verdadeiros Soldados da Paz, desentorpecida
Rumo à marcha da revolução democrática!
Sei também que um dia quererás ver
E em páginas de jornais grafadas um dia ler
Quanto nossos heróis de libertação nacional
Que o povo finalmente ganhou coragem
E diante de todos matou o individualismo
Para juntos e como Nação, dar à luz ao associativismo
Que conduzirá este tão sofrido povo ao poder!
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei também que sonhas com um dia
Em que a consciência patriótica e nacional
Triunfará sobre os deslizes do estômago individual
E a tinta que a cada quinquénio nossos polegares suja
Finalmente conceberá o tão aguardado milagre
De o povo colocá-lo no poder!
Sei que ainda sonhas com um dia
Em que esta demo que chamamos cracia
Finalmente estará a favor do teu povo
E através de Testemunhas Alternativos
Derrubará os Cães de Raça da Maçonaria
Que Vendem o País com Memorandos de Entendimento
Que nos fazem calar e sequestram a revolução
Para desenhar uma nova estratégia da Nação
Que levará este povo ao poder!
Povo no poder, hoje sem poder!
Azagaia fez política com “P” maiúsculo. Sem se meter na politiquice barata. Não foi moço de recados nem do governo, nem da oposição. Questionou na sua arte a imoralidade da elite e disse que não havia muita diferença entre os diferentes partidos: um acesso privilegiado à mesma panela. Ele escapou do estereotipo de quem fala porque alguém mandou falar.
A maioria dos nossos cantores produzem vídeo-clipes que repetem o mesmo apelo quase obsceno: em redor de uma casa de luxo, com piscina de luxo, com carros de luxo e uma dúzia de meninas rodopiando como borboletas à volta da exibição do luxo. A televisão e as redes sociais reproduzem essa empobrecedora mensagem até ao infinito. Essa mensagem é um elogio à ganância, é uma agressão às mulheres e é um insulto à pobreza. A pergunta é simples: em que país essas cenas são filmadas? Que convite de vida fácil se esconde nestes vídeos, onde é que mora esse fausto num país que não tem dinheiro para pagar os seus salários? Que ideia de felicidade se transmite quando se sugere que, para se ser feliz, é preciso viver na mais ostensiva luxúria?
Nos seus vídeos, Azagaia escolheu cantar um país de verdade, este Moçambique em que a maioria anda a contar dinheiro para entrar num “chapa”. Essa é a verdade da sua arte. Esta é a sua fidelidade para com a grande maioria dos jovens do seu país.
Um dos argumentos usados pelos seus detratores foi que ele não era um moçambicano “autêntico”. Tinha um pai cabo-verdiano e isso, para esses seus inimigos, era uma espécie de pecado original. Azagaia era mais moçambicano do que todos os outros que se reclamam patriotas, mas enriquecem à custa do bem público do seu próprio país.
O antigo negociador-chefe da Renamo nas conversações sobre a paz no país, em Roma, apresentou finalmente as suas cartas credenciais ao governo do Vaticano, assumindo, assim, efectivamente, a sua posição de embaixador extraordinário e plenipotenciário de Moçambique junto da Santa Sé, posição para a qual foi nomeado em Julho do ano passado.
Foi, de alguma forma, surpreendente a nomeação do antigo "número dois” do partido de Afonso Dhlakama. Tirando Benjamim Pequenino, que foi destacado a dirigir os Correios de Moçambique até Fevereiro de 2006, muito pouquíssimas figuras da oposição foram convidados pelo nosso governo do dia desde a independência nacional, para gerirem instituições públicas moçambicanas.
Somente em Fevereiro de 2019 é que voltaríamos a ter figuras da Renamo a serem nomeados para posições nas instituições do Estado; como é sabido, tal decorreu de entendimentos militares, concretamente, da implementação do memorando de entendimento sobre assuntos militares, no âmbito das negociações de paz então em curso. Nos princípios desse mês, o então ministro da Defesa, Atanásio Ntumuke, nomearia três oficiais da Renamo para sensíveis funções de Director do Departamento de Operações, Director do Departamento de Informações Militares e Director do Departamento de Comunicações no Estado-maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique. Nos finais do mesmo mês de Fevereiro, teríamos também o então chefe do Estado Maior, Lázaro Menete, a nomear outros onze oficiais da Renamo para ocuparem cargos de chefia no Exército. Foi assim que tivemos batalhões de infantarias a serem comandados por oficiais vindos da Renamo; repartições de Pessoal do Ramo de Exército; de Artilharia Antiaérea; Educação Cívica Patriótica; a serem geridos pelos “outros”; e até chefes de Estados-Maiores de brigadas a serem liderados por pessoal da Renamo.
Com efeito, a indicação de Raul Domingos é bem-vinda! Muitas palmas para o Chefe de Estado. Quando se fala de reconciliação nacional, inclusão, falamos também de gestos como estes: a indicação de figuras que reúnem os atributos, competências e saberes que necessitamos para certas posições de Estado e/ou na gestão de instituições públicas, independentemente das suas cores ou crenças partidárias. Moçambique precisa de todos nós. O desenvolvimento, o crescimento e a solidificação do nosso Estado requerem uma atroz conjugação de esforços, de saberes, conhecimentos, sacrifícios, entrega e de engajamentos permanentes. É uma ventura que requer a priorização dos interesses nacionais acima de todos os demais, daí que não deva ser problema, muito menos algo que seja encarado com reservas, o ir buscar-se uma figura do rank da oposição para o preenchimento de uma posição. O princípio deve ser a competência, saber, conhecimento, capacidade e obra. Não sei se continua a fazer sentido ter no governo e à frente de instituições públicas pessoas que não falem inglês pelo menos, estando nós na região onde estamos e com interesses que prosseguimos. Só perdemos muito com isso.
Desejável é que identifiquemos mais Rauis Domingos que possam representar bem o país, terem um bom desempenho, serem úteis para a sua “pátria amada”, como esperamos que o ex-número dois da Renamo e agora presidente do PDD o seja, independentemente de pertencer a “outras” instituições.
Há dias, acredito que mais pela sua indicação para embaixador no Vaticano, Domingos concedeu uma grande entrevista a uma estação televisiva privada nacional. Como sempre, com revelações atrás de revelações. Não restam quaisquer dúvidas, Raul Domingos detém um saber importante e considerável sobre a história pós-independência do nosso país! Pudesse um historiador sério sentar com ele e extrair parte substancial do conhecimento que este cidadão possui e registar para a eternidade. Ou simplesmente ajudar-lhe a rabiscar as suas memórias, se é que o está a fazer!
Uma das revelações na última entrevista foi aquela de que um dos proeminentes colaboradores da Renamo na cidade de Maputo nos momentos mais intensos da guerra dos 16 anos foi o grande locutor da Rádio Moçambique (Emissor Inter-Provincial de Maputo e Gaza), Vieira Manala, já falecido, que Deus o tenha. Segundo Domingos, o famoso Manala, que tinha o cognome de Búfalo, é que era o responsável pela distribuição de panfletos da Renamo na cidade de Maputo!...
Grande revelação esta! O Vieira Manala está no coração de milhões de moçambicanos ao sul do Save e não só! Grande locutor! Grande relator desportivo em Changana/tonga! Grande jornalista. Muitos desses milhões estariam longe de imaginar que o seu ídolo fosse colaborador da… Renamo! Pena é que esta revelação Raul Domingo a faz na ausência do visado, que poderia comentar, condimentar e dar mais subsídios. Daí eu não ter a certeza se esta revelação é de boa fé ou não.
Fora isto, Raul Domingos é um nome a ter em conta na História de Moçambique!
ME Mabunda