Carta ao Engenheiro:
Com a sua permissão gostaria de Lhe dirigir um pedido de esclarecimento. Conforme a sua ordem emitida verbalmente no final do ano passado, candidatei-me muito pessoalmente às eleições nacionais de 6 e 7 do corrente mês. Fiquei muito orgulhoso de ter vencido essas primeiras eleições verdadeiramente africanas. A verdade é que saí exclusivamente vencedor aqui no meu bairro. Digo exclusivamente, porque ninguém mais compareceu na votação. A fila que o senhor mandou fazer era apenas constituída pela minha pessoa. Cumpri assim as suas ordens. Tudo transparente, tudo confirmado e tudo registado sem necessidade de nenhum papel, nem nenhuma autoridade. Os resultados iniciais e finais foram oficializados no facebook que é onde o meu cunhado diz que agora se emitem as leis em Moçambique.
Contudo, já passaram tantíssimos dias e eu pergunto, com o devido respeito: quando é vamos tomar posse? Ou organizamos aqui mesmo, nós próprios, sem esperar por Vossa Excelência? Outra pergunta: fazemos a festa só com o nosso próprio dinheiro ou podemos fazer um peditório nas redes sociais? Enquanto espero por esclarecimento, estou a pedir uma coisa: pode-nos enviar uma fotografia oficial de Vossa Excelência? Para nós colocarmos na nossa cerimónia de tomada de posse? Eu já tinha pedido a um amigo de Maputo que me trouxesse um desses “prints” que o senhor mandou toda a gente imprimir para exibir no dia da tomada de posse do Daniel Chapo. Mas o meu amigo não chegou a imprimir nada e ele também não encontrou no bairro dele ninguém que tivesse esse print. De maneira que ficámos assim, de mão a abanar, sem fotografia de Sua Excelência.
Ainda por cima, eu que sou carpinteiro, gastei toda a minha madeira para fazer molduras para as suas fotografias. Foi como o senhor nos mandou numa sua live: cada um tem de fazer caixilhos para emoldurar as fotografias oficiais do VM7. Agora, o que é que acontece: tenho umas vinte molduras, mas nenhuma fotografia para encaixilhar. Neste momento, já não há como cumprir com a nova ordem mandamento de fazermos carteiras para as escolas. E por causa de quê? Porque já gastei toda a madeira.
Agora, voltando ao assunto da minha eleição. O que posso fazer eu que gastei tanto tempo e tanto dinheiro na campanha eleitoral? Ainda pensei em tomar posse num aeroporto. Mas aqui não chegam aviões. Antes das manifestações, tínhamos uma estação de machibombos. Mas queimaram tudo. E agora aquele espaço está muito cheio de lixo e de restos dos pneus queimados. Eu pensei que quem tivesse queimado aquilo tudo fossem os jovens dos bairros que gritavam: “Venâncio!” e “Este país é nosso!”. Afinal, eu estava errado. Quem queimou esses pneus, como o senhor muito bem explicou à nação, foram polícias que estavam disfarçados de jovens à civil. Centenas de polícias todos mascarados de civis. O meu cunhado diz que alguém, ele não sabe bem quem, mas alguém viu esses polícias disfarçados de civis a tirar os pneus dos carros da polícia para depois deitarem fogo nesses pneus e, assim, impedir os seus colegas fardados de usarem os carros blindados. Não sei se expliquei bem, mas nestes dias a gente só chega à verdade quando já não entende nada.
Este país está muito confuso, Excelência. Porque para mim e para todos os meus vizinhos aqui do bairro quem saqueou, roubou e queimou foram os rapazes daqui da zona. Foram eles que meteram as barricadas, apedrejaram os carros, ameaçaram as pessoas que não tinham o seu crachat. Mas agora há essa outra versão: essas manifestações violentas, conforme o senhor explicou na sua “live”, foram todas feitas pelos polícias. O meu primo Zeca (que é agente policial) ele é que podia confirmar se foram os próprios polícias que fizeram toda essa confusão dos tumultos. Infelizmente, o primo Zeca deixou a farda em casa e já não se encontra em nenhum lugar. Está escondido, com receio. Até já me disseram que ele se aprisionou a si mesmo numa cadeia a fingir que era um manifestante detido durante os tumultos. E agora, ele está com medo de ser solto, conforme as ordens emanadas por Sua Excelência.
Esta semana, o primo Zeca ligou para mim e tinha a voz dele a tremer. Estás rouco, Zeca? Perguntei. É de soprar a vuvuzela, disse ele. Mas tu não estás na cadeia, perguntei. Estou a soprar vuvuzela aqui na cadeia, nos horários superiormente determinados. E foi assim: conversamos, conversamos um tempo até que, no meio da conversa, tivemos de interromper para cantar o hino nacional. E tivemos de repetir o canto três vezes até completar o horário das 13 horas às 13:15. Depois, o meu primo, coitado começou a chorar com as dúvidas sobre o futuro dele. E eu sosseguei o rapaz: espera, primo, não vai demorar nem dois dias até o nosso Engenheiro decretar mais outras 25 medidas. Desliguei com a promessa que ia pedir ajuda a Vossa Excelência. Porque eu mesmo, juro sinceramente, eu estava com dúvidas: teria sido mesmo o Senhor Engenheiro a dar uma ordem dessas? Uma ordem para se matar uma pessoa? Ou, esse comando não terá vindo de uma gravação falsa, com uso dessa coisa que chamam de Inteligência Artificial?
Estava nessas dúvidas quando apareceu o vizinho Pascoal e me explicou: esta é a Lei do Tal Leão. Onde está esse tal Leão, perguntei. E o Pascoal mostrou o telefone dele. E vimos os dois que não há nenhum país do mundo onde se aplica essa justiça do olho por olho, dente por dente. Mas esse olho e esse dente são de quem? Da pessoa ou do Leão?
Assim posso confessar as dúvidas do primo Zeca também são minhas e são até do vizinho Pascoal. Como por exemplo: se um polícia matar um civil, isso significa que nós todos estamos autorizados a matar um agente da ordem? Ou vai haver os Tais Leões especializados em matar polícias? E vão matar exatamente aquele polícia? Ou pode ser um qualquer? No caso de ser nós os implementadores, nós o “povo no poder”, como vamos matar? Com catana, com pedras, à bala? Talvez o Senhor Engenheiro pode fazer uma “live” com instruções sobre as maneiras de executar um agente? Ou, quem sabe, no decreto presidencial número dois, Sua Excelência poderá explicar por escrito todos esses detalhes técnicos. Está com sorte o nosso Engenheiro: porque há muitas organizações de direitos humanos em Maputo que podem ajudar a elucidar melhor a implementação dessa Lei, de forma democrática e inclusiva. O vizinho Pascoal está com muita fé nessas organizações. Afinal, essas organizações recebem dinheiro de países democráticos para fiscalizar a integridade e transparência social das insituições.
Em obediência à sua orem de todos os moçambicanos se saudarem obrigatoriamente da mesma maneira, despeço-me respeitosamente:
Anamalala, Senhor Presidente.
Ou, em português: Acabou, Senhor Presidente.
Olívio Wenyema
PS 1 - Estamos a pedir, Sua Excelência: no próximo decreto mande para que o povo não tenha de pagar nada. Absolutamente nada. Nem nos serviços, nem nas lojas, nem em nenhum lado. Tudo grátis no público e no público. Com uma única exceção: pagar é só quando for para pagar a Sua Excelência. Vamos pagar quando o senhor nos pedir dinheiro para implementar as suas medidas. Para o concurso, para os peditórios, para os apoios que forem precisos. Isso vamos pagar. E nem é preciso nenhuma garantia sobre como e quem está a controlar esses donativos. O dízimo é como o voto: ambos são secretos.