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sexta-feira, 12 março 2021 06:32

Um Rapaz Tranquilo e uma nação que se chama Moçambique

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Aos domingos, às 11:57 de Roma, o bispo de branco assoma-se à janela central do 3º piso do Palácio Apostólico, esboça um sorriso, estende a mão para a multidão que enche la Piazza San Pietro e antes de fazer sua alocução aos romani e peregrini diz sempre o mesmo

 

Cari fratelli e sorelle, buongiorno!

 

Acabei de ver o bispo de branco agorinha, confesso. Não a partir da multidão devota ou curiosa que enche la Piazza, mas sentado no meu quarto que está no terceiro piso de um prédio que fica numa rua de Lisboa.

 

Da janela, entra no meu quarto uma luz opaca que o céu cospe neste domingo de Inverno e vejo gotículas de chuva que tombam numa sofreguidão que me corta o coração aos pedaços. Acabei de ver ouvir A Hard Day's Night agorinha, confesso! Sob o olhar de nuvens cinzentas que cobrem Lisboa acabei de ouvir A Hard Day's Night, confesso! Mas na minha cabeça não o grito extasiante e libertador dos Beatles ou a voz do bispo de branco a dizer que o deserto não é um lugar físico, mas uma dimensão existencial onde se calar. Na minha cabeça apenas as vozes do Pedro, da Guida, do Nuno, da Lena e tantos outros que vivem nas letras que compõem o Um Rapaz Tranquilo: memórias imaginadas. Na minha cabeça apenas as vozes dos portugueses que viveram em Moçambique antes de 1975, dos que foram e dos que ficaram. Palavra de honra, na minha cabeça as vozes dos cidadãos de uma nação que ainda não existe que habitam o Um Rapaz Tranquilo: memórias imaginadas de Álvaro Carmo Vaz!

 

Passaram-se quase dois meses deste que o Professor Catedrático de Engenharia me presenteou com este mimo! Um calhamaço cuja capa traz rostos de várias pessoas submersas num mar vermelho que colore a capa e a contracapa. Era manhã de sexta-feira, tinha acabado de começar a trabalhar quando a campainha tocou. Levantei-me a resmungar por estar a ser interrompido logo no início da maratona pelos códigos e solucionamento de questões jurídicas que me ocupam por estes tempos. Os pés descalços a pisarem o chão frio e as minhas mãos a abrirem a caixa que tinha acabado de ser entregue pelo homem dos correios. Palavra de honra, como que corrigindo o resmungo que tinha feito abri a boca e deixei o sorriso falar por si. Não se tratava de uma encomenda qualquer, era o romance que amavelmente há dois dias o Professor Álvaro Carmo Vaz disse que me ofertaria.

            

Com o livro fora da caixa desatei a folheá-lo com o mesmo entusiamo que toco o rosto de uma mulher bonita que acabou de entrar na minha vida! Não é o primeiro calhamaço do autor que vejo. Há dois anos partilhei o quarto com um estudante de Engenharia Civil que tinha sempre na sua secretária o Hidrologia e Recursos Hídricos assinado por Álvaro Carmo Vaz e João Reis Hipólito. É claro que nunca cheguei a folheá-lo, para material científico na altura apenas interessavam-me os códigos e livros de Direito que tinha de papar e já me roubavam muito tempo para a leitura e escrita literária. Mas este Um Rapaz Tranquilo, é claro que me interessa!

 

Ando com a mania de ler muita coisa em simultâneo, mas nestes dias os olhos apenas colados a ele nas horas de lazer que se confundem com as de labor literário! Começa-se a ouvir o primeiro choro do bebezinho e a malta já se sente amigo dos protagonistas e quer ouvir tudo o que a sua voz tem para contar.

 

Ah parou de chover! Alguns buracos azuis a se fazerem de moços para as nuvens cinzentas que cobrem o céu. Sem dúvida, não demora e as gotículas voltam a ser enxotadas cá para baixo como cães sem dono.

 

Na madrugada de hoje, acabei de ler a Parte I: A Hard Day's Night do bebezinho. Sinceramente, não só valem muito a pena as história de amor entre Pedro e Guida ou a entre Pedro e o Moçambique que ainda não existe como também valem a rica descrição do contexto social, político, económico e cultural que se viveu em Moçambique e no mundo entre os anos 1966 a 1975.

 

Ao ler-se a primeira parte de Um Rapaz Tranquilo sente-se que se lê um romance actual, sobretudo pelo que se vive em Moçambique: o constante clima de guerra no Centro e Norte do país, os ciclones que constantemente destroem um país que se arrasta para sobreviver, a pobreza na periferia dos grandes centros urbanos, a deficiente liberdade de imprensa ou o frágil direito a liberdade de expressão, a sistemática violação de direitos humanos e a cambaleante autonomia universitária. O presente que vive a pátria amada nos dias de hoje parece uma cópia do passado.

 

É claro que enquanto lia a Parte I do Um Rapaz Tranquilo fez-me falta a poesia e a musicalidade do tipo de prosa que costumo ler, mas isso não diminui a sua grandiosidade. Em Um Rapaz Tranquilo o autor narra sem nenhuma vergonha e de uma forma muito bem desenhada os tortuosos caminhos que alimentaram a utopia e conduziram Moçambique à independência. As páginas da primeira parte de Um Rapaz Tranquilo são páginas grávidas da nação que o autor amou, colocou em primeiro plano e ajudou a construir desde a primeira hora; um testemunho de como a classe académica combateu a opressão colonial em Moçambique; uma lição magistral do amor de um jovem por um país; uma lição magistral de como os jovens moçambicanos de hoje podem lutar por uma utopia que ainda tem tudo para dar certo e com notas bem claras de como evitar escorregar no mesmo lamaçal que as gerações de outra escorregaram. Nesta margem do mar, os miúdos do secundário leem Camões, Eça, Camilo, Pessoa na escola para conhecerem as suas origens, quando cansarem de brincar às fantochadas e decidirem criar um Plano Nacional de Leitura não esqueçam de incluir o Um Rapaz Tranquilo, faz favor!

 

Muita violência em Moçambique e pergunto-me se o rapaz tranquilo continua amando a pátria incondicionalmente ou se foi com esta pátria que sonhou. Sinceramente, muita violência na pátria amada e pergunto-me se hoje o rapaz tranquilo arrepende-se por ter colocado o amor da sua vida e a brilhante carreira académica que teria na Europa em segundo plano.

 

Ainda não vou nem à metade do livro. Lisboa hoje é nossa outra casa, como foi para Guida quando abandonou Moçambique. Ainda não vou à metade do livro, mas não sou capaz de deixar de escrevê-lo, Rapaz Tranquilo, sobretudo depois de saber que aquela matreira de olhos verdes não respondia às cartas que o nosso Pedro mandava a partir da então Lourenço Marques.

 

Aos domingos, às 11:57 de Roma, o bispo de branco assoma-se à janela central do 3º piso do Palácio Apostólico para falar aos Romani e peregrini. Acabei de ver o bispo de branco confesso. Mas na minha cabeça não a voz do bispo de branco ou dos Beatles que o Pedro tanto escutou na juventude ou o mesmo do Divenire de Ludovico Einaudi que me faz celebrar a vida sempre que escuto, palavra de honra. Na minha cabeça, apenas as vozes de Pedro, Guida, Nuno, Lena e todos os cidadãos de uma nação que ainda não existe que habitam o Um Rapaz Tranquilo: memórias imaginadas de Álvaro Carmo Vaz!

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