O caso do Banco Austral teve agora um “volte face” na justiça, com a pronúncia de três arguidos, que sentar-se-ão no banco dos réus dentro em breve. A decisão do Tribunal Superior de Recurso de Maputo, que revoga um despacho de não pronúncia exarado em 2009 pelo juiz Cinco Reis, é tomada quase 15 anos depois do recurso do Ministério Público e do assistente contra aquele despacho.
Quinze anos depois? Afinal, o que andam a fazer os juízes do TSR? Este caso devia ter a devida celeridade, tratando-se de um caso que teve contornos de delapidação dos cofres do Estado, que foi obrigado a recapitalizar o banco para privatizá-lo novamente, da última vez para o ABSA.
Quinze anos, e um dos arguidos atingiu a velhice da vida, anda doente. Com 84 anos de idade, a justiça ainda acredita que ele pode pagar pelo alegado crime cometido em 2001, esquecendo-se que o direito do homem a que se faça justiça em tempo útil e razoável é um dos princípios fundamentais de um Estado de Direito.
Este arrastamento do caso sugere nuances de denegação da justiça ou, o que é pior, de justiça tardia.
Já alguém escreveu: “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no património, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir ao delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.”
Se é para embarcamos na justiça tardia, então que ela seja feita em toda a extensão do caso. Não basta fazê-la apenas no caso do assassinato, para responsabilizar apenas os autores do homicídio. É também preciso responsabilizar os autores da gestão danosa do banco.
Para quem não sabe. O caso Banco Austral tem duas vertentes. A vertente do assassinato e a vertente da gestão danosa. As duas têm uma relação intrínseca, de vasos comunicantes.
A gestão danosa foi a principal causa do assassinato. Logo após o assassinato de Siba Siba Macuácua, o Estado começou a investigar apenas este crime. Sobre o assassinato, o Ministério Público acusou alguns indivíduos em 2009, mas o Tribunal da cidade de Maputo rejeitou as acusações, soltando os suspeitos que haviam sido detidos (Parente Júnior, entre outros, nomeadamente dois guardas do antigo banco que se suspeita tenham sido os autores materiais do crime).
O Ministério Público (MP) recorreu ao Tribunal Supremo, havendo ainda a esperança/possibilidade do Tribunal Supremo dar razão ao MP e vir a pronunciar os acusados. O recurso foi aceite, agora pelo TSR.
Parte dos antigos administradores, nomeadamente Octávio Muthemba e Jamu Hassan, haviam sido constituídos arguidos como autores morais, mas o Ministério Público se absteve de acusar, também por alegada falta de indícios. Espera-se que, se o Supremo der razão aos argumentos do Ministério Público e o caso for a julgamento, possa haver clareza em relação à identidade dos autores morais.
A investigação da gestão ruinosa do Banco Austral nunca foi preocupação de primeira hora por parte das autoridades. As investigações sobre a gestão danosa só começaram depois da pressão dos doadores e da sociedade civil, tendo culminado com a realização de uma auditoria forense, por uma firma estrangeira. A realização da auditoria, sob pressão dos doadores, enquadrou-se, como se sabe, no contexto dessa recapitalização que teve como pano de fundo a cobertura dos prejuízos acumulados do Banco Austral – na ordem dos 400 milhões de USD – e no qual foram envolvidos dinheiros dos contribuintes moçambicanos e estrangeiros, nomeadamente daqueles países que prestam o apoio directo ao Orçamento do Estado. A auditoria forense encontrou sinais evidentes de gestão danosa.
A Procuradoria Geral da República (PGR) sempre disse que estava a investigar a gestão ruinosa, mas nunca revelou em que direcção as investigações seguiam. Aparentemente, só no ano passado é que foi instaurado um processo (53/A/PRC/2009) contra antigos administradores e gestores do Banco Austral, entre os quais Octávio Muthemba e Jamu Hassan. Em Abril de 2009, o Ministério Público decidiu abster-se de acusar os antigos gestores alegadamente envolvidos na gestão danosa. O argumento é de que a lei aplicável começou a ter efeitos posteriormente aos actos de gestão danosa.
Aparentemente, e em contraste com o que aconteceu no caso Cambaza (Aeroportos), o Ministério Público parece não ter feito muito esforço para ir rebuscar leis anteriores à Lei 15/99. No caso Cambaza, quando se viu que a Lei Anti-Corrupção (Lei 6/2004) era ineficaz para condenar os arguidos, o Ministério Público e o Tribunal recorreram à Lei 1/79 (Lei sobre Desvio de Fundos), uma lei elaborada num contexto de repressão estatal.
Temos indicação de que outras leis podiam ser usadas para se ir avante com a responsabilização criminal da gestão danosa, no mesmo espírito que se usou a Lei de Desvio de Fundos no caso dos Aeroportos. Uma delas é a Lei de Defesa da Economia (Lei 5/82, de 9 de Junho, posteriormente alterada pela Lei 9/87, de 19 de Setembro), que criminaliza actos de gestão danosa, negligência, violação de regras de gestão, abuso de cargo ou função, fraude, pagamento de remunerações indevidas, etc., quando estes actos atentem contra o bem-estar do povo. Não consta que esta lei tivesse sido usada exaustivamente para responsabilizar os gestores em causa.
Esta lei (9/87) foi apenas usada para se abrir um processo autónomo contra os gestores malaios do Banco Austral, nomeadamente Koonjambum Mugathan, Marcus Young e Leong Yit Ket, que representavam o accionista SBB (um banco da Malásia). Mas não foi usada para responsabilizar os administradores moçambicanos, alegadamente porque eles não participavam da gestão diária do banco.
O caso Banco Austral é um caso político sério que envolveu a delapidação dos cofres do Estado (cerca de 400 milhões de USD). O saneamento do banco, para poder ser privatizado definitivamente, foi à custa de dinheiros dos contribuintes nacionais e estrangeiros (através do dinheiro da ajuda externa). Por outro lado, a gestão danosa foi o principal motivo do assassinato de Siba Siba Macuácua. O comportamento do Ministério Público neste caso sempre foi dúbio e aparentemente denotando estar a agir sob instruções do poder político.
Por isso é que, mesmo tendo sido chamado a atenção para o facto, o Ministério Público nada fez para viabilizar a responsabilização civil dos antigos administradores do banco. Em 2001, na altura em que o Banco de Moçambique interveio no “Austral”, o Ministério Público, como defensor dos interesses do Estado (e sendo o Estado sócio do Banco Austral e sendo o accionamento da responsabilidade civil uma competência dos sócios) devia ter usado o Decreto-Lei 49381, de 1969, para accionar um processo de responsabilização civil. Hoje, passados todos estes anos, esta acção de responsabilidade civil já prescreveu.
A justiça moçambicana está perante um desafio enorme de credibilidade. Para vencer esse desafio, o MP deve esgotar todas as possibilidades de accionar a responsabilização criminal da gestão danosa sem receios de qualquer insucesso. O Banco Austral (e o assassinato de Siba Siba) deviam ser investigados em todas as suas vertentes.
Boa tarde a todos
Sinto-me bastante honrado em estar aqui neste lugar que hoje nos acolhe, e dar-vos as boas vindas. Na verdade estamos todos em igualdade de circunstância, não exactamente para um almoço de confraternização, mas para uma viagem no tempo, em busca de algo que nos faça ressurgir como geração, ou como testemunhas da geração constituída por uma panóplia de homens e mulheres nascidos para brilhar, cada um com a sua luz, porém do mesmo maná. E eles luziram enquanto vagueavam por aqui, como manhambanas típicos de uma cidade que se recusa a mudar, para além dos seus limites demarcados pela pacatez.
Estamos aqui para uma conversa espontânea, sem alinhamento. Sem compromisso. Se calhar com o propósito de homenagear pessoas que se tornaram personagens vivas, e sentir os cheiros guardados na memória e recordarmo-nos de lugares como por exemplo, Bángwè, onde jogávamos a bola em liberdade, com muita amizade, sem almejar absolutamente nada para além da alegria de viver.
Bángwè tornou-se um centro de festas futebolísticas inolvidáveis, com jogadores que mostravam, ainda imberbes, ser talhados para grandes estádios, mas como a vida não é linear, pode ser que não tenham tido a sorte de receber os aplausos do reconheciomento. E da admiração. Noutras terras. Mas foram ovacionados aqui.
Não vou mencioná-los a todos, seria impossível, mas há dois que terão desfraldado de forma particular, a sua evolução no Bángwè: Nando Guihoto e Chumbo Lipato, para quem peço uma salva de palmas. Aliás há quem dizia que os mortos não morrem, então esta ovação é para estas duas vedetas que vão viver dentro de nós de forma indelével.
Pode ser que estejamos a fazer isso, a exaltar aqueles que fazem parte da tecelagem da nossa cidade, e não precisamos de ir às tumbas onde não há vida para render a nossa homenagem a eles. Então, Fernando Guipatwane não morreu. Repito o que alguém dizia: os mortos não morrem! Fernando Guipatwane era um actor alegre, predisposto a uma gargalhada estranha, porém doce. Vinda de de dentro de um homem que não tinha espaço para feridas dentro de si. Ele, certamente, vai nos ouvir a recordá-lo neste espaço que ficará assinalado na nossa caminhada colectiva: então, uma salva de palmas para Fernando Guipatwane!
A jornalista e escritora portuguesa, Agustina Bessa Luís já dizia: a história é uma ficção controlada! E nós aqui, ao evocarmos essas figuras, se calhar estamos entre a história e a ficção. Digo isso porque Matangalane Boby era ao mesmo tempo ficção e realidade.
Uma pessoa que se senta no encosto dos bancos de bentão que existiam na ponte cais de Inhambane, sem se importar com o perigo que isso representa, só pode ser actor de um filme de ficção. E Matangalane fez isso numa das suas façanhas. Deixou-se embalar pela briza, o sono tomou com conta dele, e caíu na água em maré cheia. A sorte dele, é que estava por perto o Adério França, nadador puro, que não pestanejou duas vezes. Mergulhou e salvou Matangalane Boby, já com água por demais engolida.
Mas, por ironia, Matangalane ainda dizia: Nhi digue, nhi digue... FidA PUTA (Deixe-me, deixe-me, filho da p..
Não importa de onde ele vem, se daqui ou de outras terras e outros mares. O que nós sabemos é que Matangalane Boby é património da nossa cidade. Um homem com olhar de felino, pronto a apedrejar-te se o provocasses. E a dor que deviamos sentir todos neste momento, é que depois morreu sem amparo, como quem não tem a quem chorar. E ninguém chorou no dia do seu funeral. E hoje estamos aqui para homenagea-lo. Por isso, vai uma salva de palmas para Matangalane Boby!
Pois é, a cidade de Inhambane tem um estendal sagrado de figuras relevantes em todas as áreas. E as consagrações não existem somente para os políticos e as elites. Os viventes da periferia também merecem que nos lembremos deles, como nos lembramos agora de Bernabé e de Bernardo Wonane e de Helena Maluca, Laura Maluca, Chura Boy, Abdul Nha Mbafa, Micaela, Hamad Guikolomane, Guibochane! Viventes das bermas da vida em todos os momentos de sol e de chuva e de frio e de calor. Mas são esses que fazem a sétima nota da escala diátónica da nossa urbe, então merecem uma salva de palmas! Assim como vai uma ovação para estrondosa para Otto Glória (o nosso Otto Glória e Guegué.
Senhoras e senhoras, eu sei que a lista das nossas estrelas é interminável, e não pretendemos ser exaustivos, e nesse aspecto estamos todos de acordo, não é verdade? O importante é que estamos aqui, de forma desinteressada para celebrar a vida, e a vida, em memória, daqueles que orbitam no cosmos da luz definitiva. Então, ocorre-me formar uma selecção de ouro composta por, Lóngwè, Babarriba, Berehemo Guifototo, Manwelito do Inhambane 70, Daniel Mosse, Tsungu Maciel, Tsungu Abílio, Guihoto, Tsungu Max, Manuel da Luz, Nuno Gobo, Siya Libendzi, Bata, Tsungu Thsoni, Guimesseryane, Madobolo, Naniá, Dogologo, Vangyane, Tsotsi, TAP, Tsungu Arouca, e demais estrelas.
Não evocaremos os nomes de todos os nossos ídolos, obviamente! Há informações que a memória vai protelando, fechando a hipófeses, então ficamos limitados. Mas o própósito do nosso encontro aqui está claro: confraternizarmos e içarmos as bandeiras daqueles que viverão para sempre na nossa história colectiva. Os mortos não morrem!
* Texto de apresentação no almoço de confraternizaão dos manhambanas, havido no dia 5 de Outubro corrente na cidade de Inhambane
AS MÃOS DE DEUS
Para a Mayisha Imara
Mr. Abdullah Ibrahim acena-me
no saguão do aeroporto de Joanesburgo
como se eu fosse um velho conhecido
do District Six na Cidade do Cabo.
Ou se o acaso nos tivesse interposto
numa dessas cidades do seu exílio
com aquele inexpugnável piano
desde que os verdugos do apartheid
fizeram-no proscrito da África do Sul.
Digo à minha filha Mayisha
que estamos diante de um soberbo pianista de jazz
e viro-me para o velho Mestre:
- Mr. Ibrahim
sou moçambicano
e antigo admirador seu.
O pretérito Dollar Brand anui
com aquele seu olhar translúcido
melancólico
e, curvado ao peso dos anos,
inclina-se em generosa mesura
e cumprimentamo-nos de punho cerrado
como comparsas de uma mesma progênie.
Mayisha faz-nos uma fotografia
e Mr. Ibrahim enlaça-me
num benevolente amplexo.
Faço-lhe uma vênia compungido
levo adiante a minha filha pela mão
enquanto o velho pianista se extravia
no azafamado átrio do aeroporto.
Explico à Mayisha
que aquele belo homem
de cabelo grisalho
alto
hierático
é um pródigo músico da Cidade do Cabo
que ela traz por domicílio.
Falo-lhe de Mannenberg
e a luta pela liberdade.
Conto-lhe a história do District Six.
Não me ocorre aludir ao pungente sax tenor
de Basil Coetzee também proscrito.
Ou citar o sopro metropolitano de Kippie Moeketsi.
Falo-lhe de Duke Ellington, pianista.
John Coltrane, saxofonista. Ornette Coleman, também saxofonista.
Todos eles cúmplices de Dollar Brand.
Ou o velho Thelonious no seu trôpego piano.
Ela sabe da minha insânia por Sibongile Khumalo
o meu desvario por Hugh Masekela ou Sipho Gumede.
Falo-lhe destes músicos intrépidos.
Não me atardo no jazz sul-africano.
Poderia falar do precoce Moses Molelekwa
ou do vetusto Jonas Gwangwa.
Retorno ao meu velho amigo
Adolph Johannes Brand
Dollar Brand
Abdullah Ibrahim
e ponho-me a pensar
na mandiga dos seus dedos
ubérrimos
sobre um piano melancólico
quando ele
compassivo prestidigitador
toca com as mãos de Deus.
Nelson Saúte
Joanesburgo, 29/06/2016
Óscar Monteiro, jurista, histórico membro do partido Frelimo, e ῎Caçador de Elefantes Brancos῎, veio a terreiro afirmar que era já tempo de o Estado ser emancipado. O pronunciamento foi no quadro do debate sobre o comando constitucional que veda ao Presidente da Republica (PR) o exercício de quaisquer funções privadas.
Para Óscar Monteiro é altura para o cumprimento imediato quer a montante, conformando o partido com a constituição, quer a jusante, imperando a obrigação constitucional.
Em debate semelhante sobre a acumulação dos dois cargos, quando foi da sucessão do ex-presidente Armando Guebuza, prevaleceram argumentos estatutários e a prática da Frelimo que obrigaram Guebuza a renunciar o cargo de presidente do partido e o então novo e actual PR, Filipe Nyusi, a assumir também, cumulativamente, a presidência do partido.
Decorridos dez anos, o apelo é para que Nyusi e Daniel Chapo, o actual candidato da Frelimo, este em caso de vitória nas eleições do dia 9 de Outubro, não devem acumular as funções. Por outras palavras, Nyusi deve imediatamente deixar a presidência do partido e Chapo, uma vez PR, não deve assumir a presidência do partido.
Este enredo aviva-me um meu comentário de há duas décadas em vésperas de eleições. Na altura defendi que a prioridade central do Governo que saísse das eleições devia ser a de ῎Organizar o Estado῎. Na réplica, um dos interlocutores disse de que antes a prioridade deveria ser a de ῎Organizar as pessoas῎, tendo até citado algumas personalidades da vida política nacional que seriam os primeiros da fila.
Hoje, e do pronunciamento de Óscar Monteiro, concluo que a sua tese de ῎Emancipação do Estado῎ passa pelas duas abordagens acima, ou seja: a ῎Emancipação do Estado῎ requer que se liberte antes as mentes para depois organizar o Estado. Talvez por aqui esteja o segredo para os próximo 50 anos de independência, e que justifica uma campanha de emancipação de mentes tendo como ponto de partida os militantes do partido do batuque e da maçaroca.
PS: Veio também a terreiro o sociólogo Elísio Macamo a defender que não via nenhuma ilegalidade/incompatibilidade entre os cargos por entender que o comando constitucional não especifica as funções privadas vedadas ao PR/Chefe de Estado. Diz este comando que ῎o Presidente da República não pode, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição, exercer qualquer outra função pública e, em caso algum, desempenhar quaisquer funções privadas῎. Se atendermos que o PR não pode ῎desempenhar quaisquer funções privadas῎, e por isso vedá-lo a presidência do seu partido, leva-me a concluir que o impedimento deve também abarcar outras funções privadas como, por exemplo, as de Chefe de Família. Se não, não vejo nenhum impedimento, salvo melhor entendimento, para que o argumento de Elísio Macamo proceda.
Quando há sete anos, num dia 5 de Outubro, uma esquadra Policial da República de Moçambique foi assaltada em Macomia, Cabo Delgado, os moçambicanos nunca imaginaram o horror que marcaria a vida dos seus conterrâneos nos distritos mais nortenhos da província do gás do Rovuma. O Governo de Filipe Nyusi desqualificou o ataque, memorizando seu significado simbólico e descartando a consequência nefasta para a segurança do Estado. Era um caso de Polícia!
Nas semanas seguintes, o horror implantou-se, a tragédia engravidou o horizonte. Os monstros haviam iniciado uma onda abjecta de decapitações. A tragédia horripilante se instalara em Cabo Delgado, qual guernica dos nossos tempos. Com o tempo, um cenário apocalíptico pintando os quadros do horizonte e as paredes do nosso quotidiano. A hedionda táctica do terror se implantara. Decapitações em massa, crianças esfaqueadas, mulheres esventradas, inclusive grávidas. Aldeias inteiras incendiadas.
Carta de Moçambique nascera em Novembro de 2018. Na altura, a generalidade da imprensa local cavalgava as ondas da auto-censura, expondo seu silêncio ostentado sobre a tragédia. Com recurso a um jovem repórter louco, Amade Aboobacar, nossa linha editorial dedicou atenção sobre a matança em Cabo Delgado. A carnificina era todos os dias exposta. E “cunhamos” a ideia de que estávamos perante uma "insurgência", com os vestígios marcantes do "jihadismo" tal como é conhecido.
Mas à medida que a carnificina se sedimentava, do aparato castrense se aplicava o silêncio negacionista. Basílio Monteiro e Bernardino Rafael seguravam as rédeas de uma narrativa governamental que minimizava da forma mais cruel a vida dos moçambicanos.
A ladainha do caso policial mantinha-se incólume. E, na "média", todos os que ousássemos expor o terror em Cabo Delgado éramos visados pelos "mahindras digitais" do nyusismo, com toda a petulância que se lhe conhece. O regime activou “mahindras digitais” para expelirem seus uivos tenebrosos contras nós. Éramos os maus da fita, uns contra-natura. Amade Aboobacar foi detido em Macomia e levado para Pemba (mais tarde o jornalista Ibraimo Mbaruco foi silenciado em Palma).
Mas o recrudescimento do terrorismo fez parangonas cujo impacto levantou dúvidas sobre a perversa coexistência entre o terrorismo e a exploração do gás no Rovuma. Mesmo assim, a reacção governamental contra a insurgência – mais tarde cunhada de "terrorismo" pelo Governo – esteve centrada na acção policial, com protagonismo notório do Ministério do Interior, que controlava todo o procurement inerente, com os gastos militares subindo exponencialmente. Fontes seguras relataram a presença de uma festança corruptiva sem precedentes na cadeia dos gastos com o esforço de contenção do terrorismo.
Em Setembro de 2019, quando a coisa já estava demasiado preta, chegaram os mercenários da Wagner, naquilo que foi o primeiro envolvimento de forças exteriores em Cabo Delgado, e apenas depois de se considerar que o assunto era militar e ter sido desencadeado o envolvimento mais directo das nossas forças armadas, que se revelaram não preparadas para além de uma gritante pobreza logística.
A táctica dos mercenários da Wagner era a da “terra queimada”. Eles queriam incendiar o mato onde havia focos de terror, varrendo tudo o que fosse elemento vivo. Essa táctica foi recusada pelo regime de Nyusi e as incursões no terreno fracassaram, surgindo Lione Dyck, o falecido patrão dos mercenários africanos da Dyck, fazendo troça dos russos para conseguir o negócio moçambicano, sempre bem pago. O grupo Dyck chegou em 2021, em pleno Covid-19, para prestar apoio aéreo. E quando estava a obter algum sucesso, com violação dos direitos humanos à mistura, o General Eugénio Mussa, sua principal contraparte no Exército, foi “morto” pela Covid-19.
Depois da Dyck seguir-se-ia na fileira de apoio ao Governo a tropa de Kagame, do Ruanda, e a SAMIN (Missão Militar da SADC-Comunidade de Desenvolvimento da Africa Austral) e também da Tanzânia. Estranhamente, todo esse envolvimento estrangeiro em Moçambique foi feito à revelia das entidades representativas da soberania nacional.
Bertolino Capetine diz sem papas na língua que, na reacção contra o terrorismo em Cabo Delgado, nunca houve declaração de guerra. Tudo que foi feito não obedeceu aos comandos obrigatórios, incluindo a falta de consulta ao Conselho Nacional de Defesa e Segurança (CNDS). Sua palestra na semana passada, em parte vertida nesta edição de Carta da Semana, foi um autentico libelo acusatório contra uma conduta errática e ilegal da guerra em Cabo Delgado.
Durante estes anos todos, o esforço de guerra foi tremendo, com os gastos orçamentais. Só entre 2017 e 2020, nosso país tinha gasto mais de 1 bilião de USD por causa da guerra (de acordo com um relatório do CIP). Ou seja, o nosso Governo embarcou para um ostensivo despesismo de guerra sem ter declarado guerra, sem ter envolvido o CNDS e a Assembleia da República (AR) quando teve que abrir as fronteiras a países estrangeiros, incluindo a entrada e pagamentos milionários a mercenários.
Ou seja, estamos perante um novo calote que deve ser investigado, primeiramente em sede da Comissão Parlamentar de Inquérito. Para que isso possa vir a acontecer na próxima legislatura é do interesse nacional que a configuração da próxima Assembleia da República seja de tal modo equilibrada que a Frelimo não possa protelar o derradeiro inquérito ao nyusismo. A demissão de Bertolino na semana passada foi um indicador do seu nervosismo culposo. A guerra de Cabo Delgado foi uma maquinação ilegal e isso deve ser investigado e responsabilizado.
Marcelo Mosse