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quinta-feira, 10 outubro 2024 08:22

ABDULLAH IBRAHIM, 90 ANOS

Escrito por

 

Abdullah Ibrahim.jpg

AS MÃOS DE DEUS

 

                               Para a Mayisha Imara

 

Mr. Abdullah Ibrahim acena-me

no saguão do aeroporto de Joanesburgo

como se eu fosse um velho conhecido

do District Six na Cidade do Cabo.

Ou se o acaso nos tivesse interposto

numa dessas cidades do seu exílio

com aquele inexpugnável piano

desde que os verdugos do apartheid

fizeram-no proscrito da África do Sul.

Digo à minha filha Mayisha

que estamos diante de um soberbo pianista de jazz

e viro-me para o velho Mestre:

- Mr. Ibrahim

sou moçambicano

e antigo admirador seu.

O pretérito Dollar Brand anui

com aquele seu olhar translúcido

melancólico

e, curvado ao peso dos anos,

inclina-se em generosa mesura

e cumprimentamo-nos de punho cerrado

como comparsas de uma mesma progênie.

Mayisha faz-nos uma fotografia

e Mr. Ibrahim enlaça-me

num benevolente amplexo.

Faço-lhe uma vênia compungido

levo adiante a minha filha pela mão

enquanto o velho pianista se extravia

no azafamado átrio do aeroporto.

Explico à Mayisha

que aquele belo homem

de cabelo grisalho

alto

hierático

é um pródigo músico da Cidade do Cabo

que ela traz por domicílio.

Falo-lhe de Mannenberg

e a luta pela liberdade.

Conto-lhe a história do District Six.

Não me ocorre aludir ao pungente sax tenor

de Basil Coetzee também proscrito.

Ou citar o sopro metropolitano de Kippie Moeketsi.

Falo-lhe de Duke Ellington, pianista.

John Coltrane, saxofonista. Ornette Coleman, também saxofonista.

Todos eles cúmplices de Dollar Brand.

Ou o velho Thelonious no seu trôpego piano.

Ela sabe da minha insânia por Sibongile Khumalo

o meu desvario por Hugh Masekela ou Sipho Gumede.

Falo-lhe destes músicos intrépidos.

Não me atardo no jazz sul-africano.

Poderia falar do precoce Moses Molelekwa

ou do vetusto Jonas Gwangwa. 

Retorno ao meu velho amigo

Adolph Johannes Brand

Dollar Brand

Abdullah Ibrahim

e ponho-me a pensar

na mandiga dos seus dedos

ubérrimos

sobre um piano melancólico

quando ele

compassivo prestidigitador  

toca com as mãos de Deus.

 

Nelson Saúte

Joanesburgo, 29/06/2016

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