O Motor Tanker (MT) HEROIC IDUN, que pertence à Hunter Tankers AS e tem seu porto de origem na Noruega, escandinava, foi detido pela Marinha nigeriana ao tentar levantar petróleo bruto ilegalmente na Nigéria. Numa colectiva de imprensa na sexta-feira em Abuja, o Chefe Naval de Política e Planos (CPPLANS), Sa'idu Garba, um contra-almirante, deu a conhecer esse facto.
De acordo com a Marinha, o MT HEROIC IDUN entrou no ambiente marítimo nigeriano e dirigiu-se para o Campo de Akpo sem qualquer forma de autorização. O navio chegou ao Campo de Akpo à meia-noite de 7 de agosto, de acordo com o CPPLANS, com a intenção óbvia de extrair petróleo bruto dentro do campo, ilegalmente, mas foi interrompido pelas autoridades locais.
Após realizar todas as investigações necessárias, a agência controladora concluiu que a embarcação não estava autorizada a estar no campo petrolífero de Akpo.
“Esta revelação exigiu a implantação do navio de patrulha costeira da Marinha nigeriana, NNS GONGOLA, para investigar as actividades do super-tanque em Akpo em 8 de Agosto de 2022. O NNS GONGOLA chegou ao campo petrolífero de Akpo e interrogou MT HEROIC IDUN, entre outras coisas, sobre sua missão e aprovação para entrar no Akpo Field”, disse ele. Ele também revelou que o navio foi posteriormente preso na Guiné Equatorial após uma perseguição marítima.
Este caso levanta um alerta para Moçambique. As autoridades locais ainda não revelaram como será feita a fiscalização da exportação de gás da plataforma flutuante Coral Sul, localizada em águas profundas (offshore), a mais de 50 km de Cabo Delgado continental.
A plataforma de gás natural liquefeito é pertença de um consórcio liderado pela italiana ENI, controlando uma participação indirecta de 50 por cento na Área 4, através da sua subsidiária ENI East-África Oriental, que detém 70 por cento da concessão. Os outros 20 por cento pertencem à companhia chinesa CNPC. Os restantes parceiros, com dez por cento cada um, são a Kogas da Coreia, Galp Energia de Portugal, e ENH.
Sabe-se que a plataforma vai bombear o gás liquefeito produzido directamente para os navios tanque da BP Poseidon Ltd., uma empresa totalmente controlada pela BP Plc, que comprou em 2016, através de um contrato de 20 anos, toda a produção do consórcio, cuja capacidade de produção ronda as 3,3 milhões de toneladas de GNL por ano.
Por outras palavras, Moçambique não vai receber nem um litro do gás produzido por este consórcio mas a questão que se coloca é: nossa marinha estará preparada para monitorar um eventual carregamento ilegal do gás a partir da plataforma flutuante?; a hipótese de um carregamento ilegal, como no caso da Nigeria, pode ser colocada com justeza? (Carta)
“...ela estava entre as estrelas mais brilhantes deste país, no sentido próprio da palavra.”“...ela estava entre as estrelas mais brilhantes deste país, no sentido próprio da palavra.”
Nelson Mandela
Naquele infausto dia 17 de Agosto de 1982, há precisamente 40 anos, quando ouvi, na rádio, a notícia do brutal assassinato de Ruth First, por intermédio de uma carta-bomba, eu não passava de um adolescente de 15 anos. Vivíamos, é certo, tempos vertiginosos e empolgantes, ulteriores a uma emancipação política recente. Eram tempos de engajamento, tempos de exacerbamentos ideológicos, tempos disjuntivos, sem dúvida, entre a revolução e os seus acérrimos defensores e aqueles que eram os inimigos figadais da mesma, ou que estavam nos seus antípodas. Mesmo sendo um jovem adolescente, tinha a noção do que estava a acontecer no território movediço da política em Moçambique e da África Austral, então em ebulição, numa encarniçada e violenta disputa.
Os virulentos ataques da então Rodésia do Sul (actual Zimbabwe, independente em 1980) e os da África do Sul do apartheid, quotidianamente demonizados na imprensa, estavam na origem de mossas visíveis no tecido social e económico. Para além disso, os indícios da guerra de agressão eram já ineludíveis. O nosso apoio sem tréguas às lutas pela libertação do Zimbabwe e pelo fim do apartheid na África do Sul traduziu-se numa impiedosa agressão, cuja devastação tem efeitos ainda hoje. Os nossos dias, nos quais tudo escasseava, de bichas para tudo e de uma miséria material e social inelutáveis, eram já o testemunho do desastre. Tínhamos, afinal, consignado o nosso presente e o nosso futuro a esta causa. Teríamos nós a noção do que estávamos a penhorar? Ou estávamos cegos imbuídos pelo arroubo do proselitismo que nos movia?
Quando o infortúnio atingiu Ruth First, eu já estivera em comícios na Praça da Independência, vira Samora Machel de mãos dadas com Oliver Tambo, ouvira as suas diatribes contra o regime vigente na África do Sul, marchara a favor da libertação de Nelson Mandela, abominava visceralmente o regime do apartheid, tinha devotado muito antes a mesma bílis em relação a Ian Smith. Era já, de algum modo, um jovem politizado. Não estava imune à propaganda e à ideologia dominantes. Antes pelo contrário. Os meus versos daquela noite foram de ira, ódio, fúria, repulsa. Não os tenho mais, perderam-se, mas guardei a lembrança do facto de terem desencadeado, em mim, naquele momento de cólera, o escritor que se iria revelar com tempo. Ali, naquele acontecimento plangente, estava inscrito, de algum modo, o meu destino literário e o nome sacrificado de Ruth First ficaria assim ligado à minha mitologia pessoal.
Heloise Ruth First, filha de judeus oriundos do Mar Báltico, entre a Lituânia e a Estônia, no Leste europeu, nascera, em Joanesburgo, a 4 de Maio de 1925. O pai era um dos membros fundadores do Partido Comunista Sul-africano. As causas que ela iria abraçar e o seu aguerrido carácter parecem advir da ascendência. A estirpe da lutadora tem uma origem indissimulável. Na Universidade de Witwatersrand, que frequentou entre 1942 a 1946, foi contemporânea do futuro marido e companheiro de vida e de luta - Joe Slovo -, bem como de Nelson Mandela. Estudou ciências sociais que lhe garantiram os instrumentos para o combate intelectual e político. Estava do lado dos oprimidos, dos vexados pela História, dos amofinados pelo regime – os violentados, os aviltados, os molestados, os injustiçados. Sempre esteve. A sua vocação, por assim dizer, era o jornalismo, era a denúncia, era a contestação, era a rebeldia. Apoiou a luta dos mineiros em 1946, esteve na campanha da resistência pacífica dos indianos em 1950, ou nos protestos contra o banimento do Partido Comunista nos anos 50. Esteve sempre do lado certo da História.
Casa-se com Joe Slovo em 1949. A casa de ambos converter-se-ia numa célula política, lugar importante para a conspiração, para reuniões e debates, naqueles duros anos 50. Ela é já então uma activista intrépida. O legendário fotógrafo Peter Magubane, que tem a provecta idade dos 90 anos, tem uma fotografia de Nelson Mandela confabulando com Ruth First nos tempos em que ambos combatiam o apartheid. É uma belíssima imagem desses tempos acirrados e fascinantes da História - testemunho e testamento da História. First e Slovo são brancos e combatem a supremacia racial e incivil instalada no seu país.
Ruth é presa, tal como Nelson Mandela, no processo e, depois, Julgamento por Traição (1956-1961). No entanto, as acusações do regime foram retiradas e todos os réus absolvidos. Aquando da declaração do estado de emergência, na sequência do massacre de Sharpeville e da dura repressão, foge do país, contudo retorna a Joanesburgo seis meses depois. Torna-se editora do “New Age”. Importa citar a sua passagem pelo “The Guardian” e pelo “Fighting Talk”, igualmente. Aliás, seria novamente detida, em 1963, por conta do seu activismo e dos artigos que escrevia. Esteve na solitária 117 dias e redigiu um testemunho dessa experiência. Foi, indubitavelmente, a primeira branca a experimentar essas agruras.
Nelson Mandela e muitos dos seus companheiros, na sequência da “Operação Mayibuye”, são presos. As anotações de Mandela sobre a guerrilha e os seus diários da sua célebre viagem de 1962 (ilegal para o regime) eram incriminatórios. Walter Sisulu, Dennis Goldberg, Govan Mbeki, Ahmed Kathrada, Raymond Mhaba, ou Andrew Mlangeni estão entre os réus. Estavam todos arrolados no célebre Julgamento de Rivonia. Oliver Tambo, Joe Slovo e Ruth First também foram envolvidos.
Joe Slovo exilara-se no Reino Unido. Quando Ruth ganha o direito à liberdade, ela e as três filhas, juntam-se-lhe. Nas décadas 60 e 70, a viver na Grã-Bretanha, é uma activista anti-apartheid destemida e escreve uma série de livros audazes e tem uma brilhante carreira acadêmica. A sua história em Moçambique está umbilicalmente ligada ao Centro de Estudos Africanos, onde desempenhará o papel de directora de pesquisa, coadjuvando Aquino de Bragança, seu director, pela mão de quem viera. Ao abandonar o Reino Unido juntava-se a uma geografia que lhe devolvia a proximidade com o seu país e a sua luta. À época, Slovo vivia em Angola. Posteriormente, estabelece-se em Maputo. A fronteira era importante para a luta e para as actividades do Umhkonto we Sizwe.
Quando chega a Moçambique, em meados dos anos 70, Ruth First é uma intelectual afirmadíssima e autora de uma importante obra. O Centro de Estudos Africanos, inspirado no remoto CEA criado em Lisboa por Mário Pinto de Andrade e seus companheiros nacionalistas africanos, que funcionou inicialmente em casa da Tia Andreza, tia da santomense Alda do Espírito Santo, é uma experiência, de laboratório social, reproduzida não só em Moçambique. Na Guine Bissau, o próprio Mário de Andrade será propulsor de um dos CEA mais activos e formará importantes investigadores e intelectuais, entre os quais está o proeminente Carlos Lopes, uma das mentes cintilantes de África hoje, que é dessa fornalha.
Em Moçambique, o CEA tem um papel decisivo no estudo e na problematização social do novo país. Uma abrangente pesquisa colectiva de campo, por si dirigida, entre 1977 e 1979, sobre a situação do trabalhador migrante moçambicano de origem camponesa, nas minas sul-africanas, é um dos trabalhos pioneiros no campo da economia política ou da sociologia económica em Moçambique, ou, se quisermos, das ciências sociais moçambicanas, e um dos vibrantes legados de Ruth First. Seriam estes camponeses migrantes, expostos à indústria do Rand, fautores da industrialização na nova realidade social e política de Moçambique?
Ruth era uma militante engajada na luta anti-apartheid, mas nem por isso deixava de ser uma cientista social de grande gabarito intelectual e com um aparato metodológico inatacável. As suas causas não lhe tolhiam a racionalidade. Sendo uma socióloga marxista, por assim dizer, mesmo quando a realidade social desmentia a ideologia ou aquilo que se pretendia politicamente, não pervertia os números. Os seus trabalhos estavam alicerçados em dados estatísticos e em evidências empíricas sólidas. Não os torcia a favor da política.
Gillian Slovo, a sua filha do meio, é uma escritora reputada no Reino Unido. É autora, entre muitas obras, de “Every Secret Thing”, um relato biográfico onde retrata, com evidente e comovente candura, a sua mãe, os seus pais - melhor dizendo -, as suas lutas e as suas heranças políticas. É um poderoso testemunho. Por outro lado, Rob Davies, que chegou a Moçambique em 1979, jovem branco activista anti-apartheid, integrou a equipa do CEA, trabalhou com Ruth, faz o testemunho disso no seu mais recente livro “Towards a New Deal – a political economy of the times of my life”. São as suas memórias depois de servir os governos do ANC ao longo de duas décadas. Ele relata os tempos de Moçambique e da revolução e dos sonhos que então acalentavam naqueles anos. Chegou a estar na mira de Craig Williamson, o carrasco de First.
Williamson é uma figura tenebrosa. Está na origem de assassinatos e atentados em vários países, de Angola ao Reino Unido, passando por Moçambique, visando activistas e combatentes anti-apartheid. Seria, no entanto, beneficiário de uma amnistia da Comissão da Verdade e Reconciliação, o que exasperou as filhas de Ruth First e Joe Slovo, que intentaram, inclusive, a postergação da mesma. Paradoxos da nova África do Sul.
No dia em que a mataram, no Centro dos Estudos Africanos, que tem um memorial com o seu nome e o de Aquino de Bragança, Ruth estava na companhia de Aquino, que ficou ferido, bem como do seu camarada Pallo Jordan e da investigadora americana Bridget O´Lauglin. As imagens deste atentado são pungentes. Depõem sobre um tempo que tendemos a esquecer e que foi distinto na história entre os nossos países. No ano anterior, Matola tinha sido atacada, resultando na morte de activistas sul-africanos e de moçambicanos inocentes. O que quitávamos deste esforço era a destruição da nossa economia e a morte dos nossos concidadãos. Dois anos depois, em 1984, Samora Machel e Pieter Botha intentam um Acordo de Nkomati. O ANC viu-se atraiçoado. Ainda hoje vivemos contrafeitos desse pacto e as nossas relações continuam irresolutas.
A distância destes 40 anos não vejo referida, entre nós, a sublime figura de Ruth First. É a nossa congénita amnésia? Não fosse o seu vulto de intelectual, ou o seu combate intrépido contra o regime de segregação racial, a sua marcante passagem pelo CEA, em Moçambique, num tempo e numa circunstância em que as ciências sociais procuravam ser o laboratório da revolução em curso, ela mereceria de nós, no mínimo, um preito, um tributo, um reconhecimento. Para além da desmemória e do descaso, somos desagradecidos e deslembrados. Há uma história de sangue que nos une à África do Sul, contudo somos incapazes de a nobilitar. Dos dois lados da fronteira. O Acordo de Nkomati – e todas as contradições que encerra – não pode explicar tudo quanto à nossa displicência e omissão. Moçambique hipotecou, severamente, o seu presente e o seu futuro para a liberdade dos sul-africanos. A remuneração disso não pode ser a desatenção, o lapso e a indiferença.
Ruth First não viveria os tempos da liberdade que chegariam na década ulterior. Joe Slovo, o seu companheiro de vida, ainda viu a África do Sul livre e foi, por alguns parcos meses, ministro de Nelson Mandela, antes de ser tolhido pela doença e pela morte. Uma pintura emblemática pintura do seu marcante rosto, numa das casas sociais do bairro de Langa, na Cidade do Cabo, à beira da estrada, ilustra o lugar de Slovo na história da África do Sul. 40 anos após a sua morte, Ruth continua a ser, para mim, uma figura inspiradora. Descobri, amarrado, por uns dias, numa das docas da mesma Cidade do Cabo, há dois anos, um navio patrulha, com o seu nome e, confesso, fiquei emocionado. Sabia que o seu nome dera crédito à toponímia em algumas cidades da África do Sul, mas desconhecia a monta inscrita naquele navio.
Em Moçambique, a despeito da pedra evocativa no CEA, não lhe conheço outra valia que a tenhamos prestado. A Slovo concedemo-nos a honra de uma rua na baixa da cidade de Maputo. Não obstante, o nome de Ruth First está irreversivelmente ligado à minha humilde história pessoal. Afinal, foi naquela noite ominosa que eu cometi os meus primeiros versos. Passam 40 anos! Lembro-a não apenas por isso. Ela é uma grande intérprete do destino da África do Sul, de Moçambique e da África Austral. É evidente que laboramos hoje no lodo de outros equívocos e outros ímpetos, aluviões incapazes de sufragar o que a História de bom nos designou, ou de autuar os excessos – afinal de contas assim ditam os eufemismos! – que estarão na origem dos desacertos que ainda hoje nos perseguem e assombram.
KaMpfumo, 17 de Agosto de 2022
Hoje está um dia solarento, polvilhado de pássaros diversos que incluem as fugidias rolas, que não se cansam de me visitar nas manhãs e nas tardes, arrulhando parábolas. Minha casa é um porto de chegada, e depois de partida dessas aves, e eu sou o ponto de referência das mesmas. Conhecem o meu cheiro. Mas eu quero sair. Andar por aí à toa sem me importar com os ponteiros do relógio, sinto um desejo ardente de liberdade.
Então, aí vou eu, um andarilho despreocupado, vestindo calções de ganga, uma camisa qualquer tirada da mala ao calha, um par de sandálias de napa, e um chapéu a Pablo Neruda, sinto-me confortável assim. Até porque dentro de mim existem muitos “eus” que me dão sustento na mesma proporção. De graça. Sou eu, o vagabundo da Fonte Azul, que nunca amealhou nada, e pensa que as palavras são bastantes.
Estou em frente à casa de Cassiano Ratagi, mas aqui ao lado viveu o senhor Matias, pai do jornalista Leonel Matias e, ainda encostado aos dois, avultava o Lóngwè, tenaz defesa do clube Beira-Mar, nos tempos em que o futebol em Inhambane era o hino das massas, pela elevada qualidade que assumia. Eu era um fedelho na altura em que estes três personagens reverberavam, cada um tocando a sua nota de piano. E eis que, ao pé da casa onde viveram, sorrio ao recordar-me desses momentos inolvidáveis.
Mas eu estou a caminhar. Ao léu. Sem outro propósito que não seja o de abstrair-me das dores, ao mesmo tempo que desfruto do sol que me vai aquecendo o corpo e o coração. Estou a voar como os pássaros que deixei em casa, e agora encontro-me na rua do Brehemo Guifototo, antigo árbitro de futebol, que será também lembrado pelo seu Peugeot 403. É como se estivesse a vê-lo. À ele e ao seu vizinho, o Giló, um homem distante. Discreto.
Isto é um filme buscado de aquivos de ouro, e eu estou vivendo esse filme ao vivo, como narrador-personagem, pois, se assim não fosse, não me lembraria de nada, como agora que me embrenho nos becos Chalambe em direcção à casa onde morava Vangyane, a mãe da Guegué. É aqui onde vinhamos nos esborrachar com sura, e essas histórias todas fazem-me reviver um tempo que não volta mais. Nem essas figuras que estou evocando, voltarão alguma vez, a não ser por via da memória.
Se calhar estou louco, não sei se faz sentido andar por aí a esgravatar os mortos, mas isso leva-me à lua. Estou na lua, ou melhor, agora estou na zona onde viviam assimilados finos, como Tsungu Maciel (pai do Djako Maria), Daniel Mosse (pai do Marcelo Mosse), Mbalango, Tsungu Teixeira e o célebre Manuelito, esteio e fundador da banda musical Inhambane 70. Eles todos pertencem a uma geração sem réplica nos dias de hoje. E estou aqui para prestar-lhes vénia. Por tudo que fizeram pela cidade de Inhambane. Quem sabe, um dia, eu volte para consagrá-los em livro. À eles, e a outros que não mencionei aqui neste espaço diminuto.
Inté.
Na semana passada, a organização CDD (Centro para Democracia e Desenvolvimento), liderada pelo activista Adriano Nuvunga, organizou uma "webinar" para discutir uma proposta de Lei da Acção Popular, a ser submetida à consideração dos deputados da Assembleia da República. O CDD juntou no evento algumas figuras de relevo dentro do espectro da sociedade civil moçambicana.
Mas, nas vésperas do evento, aconteceu uma coisa inusitada. Jornalistas e actores da sociedade civil foram desencorajados a participar desse evento. Por quem? Pelo ex-político e agora activista Ismael Mussá (que já pontificou na Renamo e no MDM). Porquê? Há poucos anos, Mussá criou uma Organização Não-Governamental, chamada Observatório da Cidadania.
Na semana passada, ele usou “fundos e mundos” para mostrar que o CDD lhe estava roubando a ideia, que a agenda da Acção Popular era exclusivamente dele e da sua organização. Com esta narrativa, ele tentou “sabotar” o evento do CDD. Não terá conseguido seus intentos, mas deixou no ar a penosa imagem de organizações de sociedade se digladiando por uma agenda que pertence ao povo.
É um facto que há pouco mais de um ano, o Observatório da Cidadania, juntamente com outras organizações, entregou na Assembleia da República uma proposta de Lei da Acção Popular, da iniciativa de um grupo de cidadãos. A iniciativa do Observatório deve ser elogiada, pois insuflou mais oxigênio numa demanda legislativa que serve à democracia e não a qualquer ONG em particular.
No entanto, a primeira tentativa de se fazer aprovar uma lei semelhante não pertence à organização de Ismael Mussá, muito menos ao CDD de Adriano Nuvunga. Eis os principais factos históricos.
Em 2001, o Dr. João Carlos Trindade, Juiz Jubilado do Tribunal Supremo, era o diretor do Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ). Ele, o Dr. Carlos Serra Júnior e outros colaboradores do Centro elaboraram a primeira proposta de Lei da Acção Popular, a pedido da própria Assembleia da República. O documento foi entregue em 2001 ao Secretariado da AR, que o guardou num canto poeirento.
Mas, em 2004, uma revisão pontual da Constituição da República (CRM) foi pretexto para se introduzir o princípio da Acção Popular na Lei Mãe. Esse princípio está lá. Como? O legislador nada mais fez do que escarrapachar “ipsis verbis” um artigo da lei proposta, mas arquivada. E o princípio permaneceu na CRM.
Quatro anos depois, uma nova tentativa de fazer passar a Lei da Ação Popular foi engendrada pela antiga Unidade Técnica de Reforma Legal (UTREL), sob a liderança do Dr. Abdul Carimo Issá. A UTREL fez uma revisão enriquecida da anterior proposta e entregou-a ao Ministério da Justiça para que o Governo se apropriasse dela e a submetesse à Assembleia da República.
Foi por volta de 2008. A proposta fazia parte de um pacote legislativo anti-corrupção (onde o CIP participou no aprofundamento da legislação anticorrupção), que incluía uma revisão da Lei de Combate à Corrupção, a reforma do quadro legal sobre o Habeas Corpus e a Lei da Probidade Pública.
O Governo, em 2008/2009, deixou passar a Probidade Pública e a reforma da Lei de Combate à Corrupção, mas arquivou a reforma do Habeas Corpus e a introdução da Acção Popular. Na semana passada, quando o CDD trouxe o assunto à baila, tratou-se de um novo fôlego nos esforços para que a acção popular fosse legislada. Esta lei é cada vez mais importante.
O actual quadro legal em Moçambique permite apenas que se litigue sobre conflitualidades de natureza individual, deixando de lado a litigação no quadro dos Direitos Difusos, através da acção popular e visando a proteção da sociedade em casos de violação nas áreas, por exemplo, dos direitos humanos, dos direitos do consumidor ou a protecção ambiental.
Ou seja, a Lei da Acção Popular é propriedade da democracia, do povo, e ninguém, nenhuma ONG em Moçambique deve reivindicar que é seu dono. Por outro lado, quanto mais organizações estiverem advogando no sentido da sua aprovação melhor. Viva a democracia! (Marcelo Mosse)