Parte do espólio histórico do património da Cidade de Maputo são alguns locais/edifícios (emblemáticos) que foram pertença de antigas (coloniais) comunidades forasteiras em Moçambique cuja funcionalidade era a interação social e cultural da respectiva comunidade e não só.
O “Palácio dos Casamentos” (Comunidade Grega), o Museu Nacional de Arte (Comunidade Goesa), o Sindicato Nacional dos Jornalistas (Comunidade Inglesa) e a antiga Escola Nacional de Artes Visuais (Comunidade Chinesa), constituem alguns desses edifícios. A par destes estão também outros edifícios de comunidades religiosas.
Com a independência de Moçambique em 1975, estes locais/edifícios foram nacionalizados e transformados em utilidades ditadas pela revolução moçambicana.
Depois dos anos 90, novas comunidades forasteiras se instalaram no país, casos de comunidades provenientes da África subsaariana como a ruandesa, nigeriana e burundesa.
Da presença destas novas comunidades, e em caso de reedição de um novo processo revolucionário em Moçambique (tudo é possível), que espólio ficará como marcas ou sinais da sua passagem ou presença no país?
Fiz a mesma pergunta a uns vizinhos que das várias respostas dadas, anotei, concordando, a seguinte: “Certamente os Bottle-Store”.
Há dias um teste rápido da Covid-19 colocou o Presidente da República de Moçambique Filipe Nyusi e sua esposa Isaura Nyusi no radar da Covid-19, a doença que está a arrasar o mundo. O resultado positivo do teste rápido do Mais alto Magistrado da nação, o Comandante em Chefe das Forças de Defesa e Segurança (FDS) gelou alguns circuitos de opinião nacional, levando muita gente, que ainda não acredita que a Covid-19 é coisa séria, a começar a acreditar, que afinal não é mentira! O facto é que muita gente na província de Maputo que acompanhou a situação, através da comunicação social, inundou o Hospital Provincial da Matola atrás de testes da Covid-19.
Nos “chapas”, algumas pessoas só comentam que até o chefe maior que é controlado todos os dias por especialistas pegou a Covid-19. Quem é você para não se proteger, logo alguém que salta de “chapa” em “chapa”! Noutros locais, vozes atentas vasculhavam fotos e notícias em que o Chefe de Estado moçambicano aparecia a vacinar - havendo algumas pessoas que argumentavam que não chegaram a ver o homem forte da Pérola do Índico a vacinar. Do mesmo modo que tantos outros altos dirigentes nunca vieram a público demonstrar este nobre exemplo que na PRM muitos "chefes" podem vir a levar "txaia" com o magnífico da casa.
Sobre os dirigentes vacinados, a única figura estatal que veio a público e foi vista a ser vacinada é o Ministro da Saúde, Armindo Tiago, mas o restante, talvez, no dia em que vacinaram havia corte de energia nacional, porque não chegou a ser referenciado - nem os nossos Mickeys, Tom e Jerrys da escolinha do barulho demonstraram tais gestos - mas talvez façam nos próximos dias!
Mas voltando ao Chefe de Estado, é que desde o período da manhã da última quarta-feira (05.01) começaram a circular informações de que o exame PCR do PR havia dado negativo e a coisa ganhou forma já no princípio da noite com um comunicado oficial da presidência confirmando que, de facto, o exame foi mesmo negativo - o caso veio agitar a sociedade que começou a questionar-se sobre a seriedade do Sistema Nacional de Saúde (SNS) e a qualidade do material usado. Os outros dizem que, caso os cidadãos que foram diagnosticados com Covid-19 tivessem a oportunidade de fazer mais um teste talvez daria negativo também e que muita gente estava a tomar talvez a medicação sem estar doente - argumentam os cidadãos!
Que bagunça, este resultado trouxe! Havendo aqueles que dizem que o exame foi martelado, uma vez que se precisa inaugurar a Plataforma flutuante e que os jornais, rádios e televisões estão sedentos da notícia oficial para começar o longo período da publicidade e das vantagens que nunca chegam para o povo sobre a operação do gás e petróleo no país! As más línguas entendem que houve uma má gestão de comunicação e informação sobre a situação do Chefe maior com seus assessores, uma vez que o presidente Masisi do Botswana também acusou positivo através do teste rápido - ya o assunto está mesmo quente!
Ninguém está interessado em entender a eloquente e informada análise do Director-geral do INS de que casos do género podem acontecer. As pessoas já estão a passar um certificado de incompetência às autoridades de saúde por causa deste "milagre do chefe"- agora todos querem saber sobre a mamã Isaura, como ela está – será que foi susto também? - Comuniquem também...!
E caso aconteça o mesmo com o Presidente Masisi, como fica a nossa reputação perante os aliados? Opah! Deixemos que tudo venha à tona e que as explicações sejam de facto claras!
O certo, companheiros e companheiras, é que a Covid-19 mata e que erros humanos podem existir, embora a este nível sejam bastante questionáveis e problemáticos. Mas vamos vacinar, protegermo-nos e seguir as orientações das autoridades, mesmo que haja privilegiados e sacrificados!
Cuidem-se!
Está a virar moda promover o ridículo, o insano e os maus exemplos daquilo que ocorre na sociedade moçambicana e todos nós alimentamos a ridicularização com partilhas e publicações. Ano após ano, as redes sociais são usadas para fazer “viralizar” actos que não contribuem para boa convivência social. Carentes de bons exemplos e de algo construtivo, acabamos apadrinhando tais situações.
Escrevo esta reflexão, num momento em que quase todas as contas pessoais, páginas e grupos de WhatsApp em Moçambique, do Rovuma ao Maputo, promovem um nome: "Gambeta", é Gambeta por tudo que é conta. Até órgãos de comunicação social televisivos concedem entrevistas. A princípio, dá-se a entender que o tal do Gambeta terá feito algo extraordinário, com risco de no fim do ano, alguém o indicar "figura do ano".
Esta carência de heróis está a ridicularizar a nossa sociedade e o nosso status quo enquanto moçambicanos. Estamos sempre a promover o ridículo, foi assim com o famigerado Dércio, que lesou uma família, com a promessa de casamento e andou a fazer coisas erradas com outras e no final transformou-se numa estrela e com direito a um programa televisivo, apresentado por si e um leque de fotografias.
Não é em vão que um forasteiro como Mariano Nhongo teve toda a audiência e capas de jornais. A princípio, penso que precisamos de reflectir sobre o modelo de sociedade que pretendemos. Que país as futuras gerações irão encontrar, se a coisa continuar neste prisma? É complicado quando demos tanto espaço aos Escobares ou Bonomades em miniatura.
Enquanto não sabermos distinguir o que deve merecer atenção e o que não merece, continuaremos a assistir este apego a coisas ruins e que não contribuem para a moralização da nossa sociedade já doentia. Precisamos de começar de algum lado, porque isto não é normal. Não podemos continuar a transformar o mau em bom. O acto de Gambeta, embora inconsciente, deve merecer o nosso repúdio. Não deve ser algo que deve servir de exemplo para ninguém, porque a sorte esteve por detrás das pessoas, caso contrário, estaríamos a chorar por aquele acto irresponsável. Várias famílias e propriedades públicas e privadas estariam destruídas pelos danos colaterais que o acto acarretaria.
Precisamos de romper de uma vez por todas a promoção da mediocridade, de assuntos nocivos da sociedade. A promoção daquilo que não deve ser feito e publicitado na sociedade. É importante que passemos a atrair o "bom cheiro". Os bons exemplos, porque só assim dançaremos num ritmo aceitável e dentro dos ditames aceitáveis socialmente. Se for para “viralizar”, que “viralize” o repúdio a actos nocivos. Que “viralize” a nossa crítica a coisas perigosas.
Precisamos de romper este olhar positivo para o mal, em casos como os parte-cocos, os C4 Pedro de Namicopo e outros maus exemplos para as milhares de crianças que um dia serão os cidadãos deste país jovem e que precisam de crescer numa sociedade sadia e banhada de boas referências sociais, políticas, culturais, económicas, académicas e religiosas.
Brincar é sempre bom, mas devemos saber quando, onde e como brincar. É urgente que comecemos a “desgambetizar” e a mudar o cenário actual, porque assim já não dá!
Todo o sorriso que me é dirigido é como se fosse a aurora em si, não importa de quem vem. A vida só é bela quando há um sorriso a suportá-la. Sem isso, tudo o que formos a fazer tornar-se-á em comida salgada com sal insípido. Será um alimento que abastece apenas o corpo, porém o espírito vai manter-se vazio, deambulando sem sentido por caminhos escuros, onde o que reina serão os pássaros da noite, ou a gargalhada sarcástica das hienas.
Então, em toda a minha vida, jamais havia recebido um sorriso como este, de uma criança acamada no hospital, engessada em todo o corpo, do pescoço aos pés, incluindo os braços que não podem mover-se. Olhei para ela, colocada numa cama ortopédica cheia de sondas, na enfermaria onde há outras crianças de baixa, porém estas, em liberdade apesar da dor. E o que senti por dentro não tem palavras para descrever.
A enfermaria está arejada, mas isso não será suficiente para reconfortar um menino que não pode mexer nenhum membro da sua estrutura, para além da cabeça. A cabeça sozinha não se alegra, não vive. O corpo também, sem a cebeça será uma massa entulhada. E nesta circunstância, as duas partes sofrem pelo amor que as une.
Aproximei-me do miúdo que se mantinha em silêncio, no seio do burburinho provocado pelos companheiros da enfermaria que recebiam visitas. Vi uma senhora que também tomava a mesma direcção que eu, contudo, antes que chegasse perto, encheu-se de lágrimas e teve que recuar. Outras senhoras, vestindo a pele de mãe, choravam de longe sem coragem de avançar até ao pequeno doente. Não suportavam o choque profundo de ver um enfermo de tenra idade com todo o corpo embutido em gesso.
Mas eu tive que reunir todas as forças que tinha e cheguei perto da cama ortopédica que acolhia o petiz, e saudei-o: olá! E ele respondeu, de forma quase inaudível: olá, como está?
Não suportei a forma tão perturbante como a criança reagia à minha saudação, então não contive as lágrimas, mesmo sabendo que não devia manifestar aquele sentimento de comoção. Tremi de medo quando ela sorriu perante a minha fraqueza, como quem diz: este é o outro lado da vida para o qual ninguém está preparado! Ou, por otras palavras, quis lembrar-me que a qualquer momento podemos ser empurrados para os cactos!
Se eu fizesse alguma pergunta a este pequeno paciente, seria uma grande estupidez. Uma crueldade. Por isso mantive-me calado durante o pouco tempo que estive ali a ser fustigado por uma dor que parecia minha também, até chegar a hora de me despedir.
- Já vou, menino, só vinha te saudar.
- Obrigado, tio, quando é que hás-de vir outra vez?
Não respondi. A pergunta era demais. Superava as minhas capacidades de raciocínio.
- Tio, a próxima vez que vieres, traz-me bolachas, por favor.
Passei a noite inteira sem dormir, imaginando uma criança sofrendo, impedida de movimentos. Sonhando em voltar para casa, e entrar novamente em contacto com a natureza, contrariamente a este lugar cercado de paredes brancas, com cheiro forte a remédios.
No dia seguinte comprei um sumo de goiaba, uma pacote de bolachas sortidas e fui ao hospital para ver a criança que amanhã pode vir a ser minha amiga, quem sabe! Sentia-me feliz ao pensar que alguém muito especial estaria à minha espera, ansioso. Então, lá fui, dizendo para dentro de mim: aí vou eu, amigo!
Quando cheguei dirigi-me imediatamente à cama ortopédica, e alí, o menino não estava. Olhei para todos os lados da enfermaria e percebi que as outras crianças choravam, sem dizerem nada, mas eu percebi tudo, antes mesmo que a enfermeira acabada de entrar me dissesse: o teu amigo já não existe!
Parece que a única coisa que as mulheres sabem fazer é dividir tudo e dividir-se em várias. Aos 04 anos via sempre a minha mãe correndo em toda casa, não era a minha mãe, eram as minhas mães porque eram tantas, imensas e atropelavam-se na porta; umas saindo e outras entrando. Uma corria para vestir-me, uma desenhava um nó liso na gravata do meu pai, uma corria com um fósforo em chama para lenhas unidas na fogueira, uma cimentava um botão na blusa da minha irmã, uma removia o silêncio das paredes com espanador de cançonetas e outra varria a casa inteira sem se importar com a outra que entrava de pernas sujas para acordar os meus irmãos que dormiam no mesmo quarto. A minha mãe dividia-se em várias e dividia tudo.
À hora do almoço sentava-se connosco à mesa, tirava do saco de pão uma enorme fatia de tempo e começava a dividi-la em pedaços: a fatia mais enorme era do meu pai, as outras médias eram dos meus irmãos e eu ficava com a última fatia; tinha tempo para todos, menos para ela. Ela dava-nos pedaços de tempo com a manteiga do seu sorriso e por vezes esquecia-se de deixar um pedaço para si. As migalhas de tempo que sobravam dava aos gatos e cães. E fui crescendo com a ideia de que uma mulher só vem ao mundo para dividir-se em várias e dividir tudo.
Poucas vezes vi a minha mãe inteira, completa comigo, sem partes dela mexendo em diversas coisas ao mesmo tempo; todas vezes chegava-me em um pedaço tão inteiro e cheiroso e ninguém, em casa, reclamava da sua ausência pois sabia dividir-se em várias.
Não sei se é por amor que ela se dividia, mas havia algo tão quente quando ela se dividia em várias, tão intenso e mais pesado que o amor. Recordo-me das noites em que a febre incendiava o desgraçado do meu pai e ela conversando com ele no quarto, mas mesmo assim ouvindo-a aquecendo água na sala, mas mesmo assim ouvindo a sua voz falando com os meus irmãos.
Ela dividia-nos a todos a fatia de tempo sem a deixar para ela, ela que já nos tinha dividido o leite do seu peito, seu colo cheio de baloiços de carinho, suas mãos ocupadas em carregar o mundo inteiro. O meu pai dividia-se apenas em dois: ele e ele. E sempre dizia à minha mãe: “quero água quente para o banho, ponha os miúdos limpos, o aparador está cheio de poeira, peço um chá bem quente”; e a minha mãe dividia-se em tudo, fazia tudo.
Chegavam os dias em que o meu pai trancava a minha mãe no quarto e todos entalados na sala ouvíamos ela a chorar, objectos sendo derrubados e insultos evaporando em toda casa; depois de tanto tempo saía com o rosto inchado e naquele momento dividia-se em duas mulheres: uma triste e outra feliz que nos lambia as cabeças com a língua das mãos. Nos dias tristes a minha mãe peneirava a tristeza e a colocava de lado e punha-se a dividir com todos os poucos bagos de alegria que encontrava dentro dela.
Falei agora com uma cabo-verdiana que me disse que sentia a voz da mãe em sua casa; a mãe que faleceu em 2005. E eu iniciei a conversa com ela do jeito que agora termino este texto: “as mães dividem-se em todos momentos, nem a morte divide o ofício de se dividir das mães”.
Por José P. Castiano & Jorge Ferrão
A narrativa teológica de Desmond Tutu teve profundas mudanças nos anos 70, como resultado da sua confrontação com as temáticas levantadas pela African Theology e Black Theology. Para Tutu, havia uma posição não negociável: Teologia, como qualquer outra área do conhecimento humano, tinha que ser contextualizada. Dito de forma mais simpática, ela deveria tomar em conta as condições concretas e contextuais em que viviam os seus crentes. Nenhuma teologia deveria ter a prerrogativa de ser “universal”. A Teologia Negra tinha a ver com um interesse existencial do negro, pelo facto de este estar diariamente entre a vida e a morte: se Deus era todo-poderoso, por que seria que Ele permitia o sofrimento, somente, de uma parte do seu rebanho, os negros?
Tutu era defensor incansável de que a luta pela libertação cultural da Igreja deveria incluir a formação dos missionários porque, segundo ele, em África, antes de alguém tornar-se pastor ou padre, tinha, antes, que se converter ao cristianismo ocidental e à sua cultura. Por outra, antes de missionarem, tinham que negar a sua africanidade, incluindo a mudança de nomes tradicionais para, assim, obterem nomes verdadeiramente cristãos no acto do baptismo ou da ordenação.
Este princípio da dependência da mensagem da teologia para os seus crentes estava tão claro para Tutu que ele achava que, como exemplo, enquanto nos anos 70, na Europa, se discutia nas universidades se «Deus existe?» ou mesmo em alguma literatura se proclama a «Morte de Deus!», “a nossa população — escrevia Tutu — não duvida da existência de Deus e ela sabe perfeitamente bem o que quer dizer Deus. Ela (a população) não precisa ser convencida que Deus é bom e omnipotente”[1]. O exercício linguístico de saber se Deus existe ou não poderia ser interessante para o Ocidente, mas tornava-se “irrelevante” para os povos africanos, acrescentava.
De facto, aspectos da vida pessoal de Tutu, conjugados com o contexto, influenciaram para que a sua Teologia sofresse profundas transformações. Desde 1972, Tutu assumiu, em Londres, a posição de director da divisão africana do Theological Educational Fund. O seu trabalho era emitir pareceres ao Fundo Teológico sobre estudantes de teologia provenientes da África Subsaariana e para as instituições religiosas onde poderiam estudar. Num momento em que muitos países africanos completavam uma década de independência, as lutas armadas de libertação nas colónias portuguesas estavam praticamente na sua fase final e, no seu país de origem, o sistema do apartheid se encontrava ao rubro, Tutu na sua qualidade de promotor dos recursos humanos para a Igreja Anglicana, viajava por vários países africanos, tais como Zaire, a Nigéria, os Camarões, o Gana, a Serra Leoa, Quénia, Uganda, etc. Em três anos, visita mais de 20 países subsaarianos tipificados por uma diversidade de condições políticas. Isto permite-lhe obter uma perspectiva das narrativas religiosas e, sobretudo, contrapô-las com as respectivas condições políticas em cada caso. Nesses países já proliferavam, nos seminários católicos, fortes discussões sobre as condições e possibilidades de uma teologia africana.
No Zaire, os debates teológicos eram, vivamente, influenciados pelo dilema entre a fidelidade à política do Coronel Joseph-Desiré Mobutu da authenticité, e a fidelidade às doutrinas teológicas europeias. Na sua qualidade de “presidente”, Mobutu tinha obrigado às cerca de 80 missões e igrejas protestantes existentes no Zaire a juntarem-se numa só Igreja Nacional, a chamada Eglise du Christ au Zaire. A par disso, concedeu um reconhecimento oficial a poucas igrejas católicas e à Igreja de Jesus Cristo na Terra fundada pelo profeta Simon Kimbangu, esta última baseada na “doutrina indígena”, ou seja, praticando curas tradicionais. Uma das “orientações” da authenticité era a africanização da liturgia e das lideranças das igrejas.
Na Nigéria, Tutu confronta-se com a já crónica divisão entre católicos e muçulmanos, sendo estes maioritariamente do Norte do país. Tutu visita o país ainda antes da recuperação da guerra de Biafra. Pela primeira vez, ele se confronta com a necessidade de fundamentar um diálogo teológico entre as duas grandes religiões, daí a sua proposta para a criação de um Centro de Estudos para o Islão e para o Cristianismo na Universidade de Ibadan.
As viagens de Tutu incluíram, extensivamente, a África Austral em países como Tanzânia e Moçambique, para além de Zâmbia, Rodésia (hoje Zimbabwe), Suazilândia e Malawi. Sobre Moçambique, Tutu declarava que a política da assimilação era bem mais discriminatória que o apartheid dado que enquanto neste havia “clareza” das fronteiras entre negros e brancos, nas condições da assimilação, os negros que só poderiam ser dirigentes do seu povo, assim que estivessem a ser “seduzidos” para aceitarem as condições de ser branco ou assimilados. Values and personhood lies in whiteness. What blasphemy! — escreveria Tutu no seu relatório sobre Moçambique.
Nestas viagens, Tutu entra em contacto com a nata da academia e da teologia africanas do seu tempo, particularmente, nas universidades de Makherere (Uganda), Fourah Bay (Serra Leoa) e de Nairobi (Quénia). Nesta última tem encontros com Odera Oruka e com Ali Mazrui. Os encontros fortificaram suas convicções a favor da Teologia da Libertação latino-americana, com cujos líderes e teóricos Tutu mantinha contactos.
Um outro factor importante que, mais tarde, “formatou” as ideias de reconciliação de Tutu foram os contactos permanentes que ajudou a desenvolver e manter entre os negros da África do Sul e dos Estados Unidos. Alabama era o destino dos negros sul-africanos, desde o século XIX, em viagens facilitadas pela fixação dos missionários, primeiro da American Board, na zona da África Austral. Líderes do ANC, como John Langalibalele Dube, A. B. Xuma, Isaka ka Seme e outros receberam a sua educação na Tuskegee Institute em Alabama, uma instituição fundada por Booker Washington.
Assim, os debates sobre a libertação dos escravos, protagonizados principalmente por Washington e Du Bois, em torno do Black Souls, influenciaram-se mutuamente com os debates em torno da Teologia Negra e Teologia Africana, ao qual Tutu, mais tarde se mete no meio, principalmente após as viagens aos EUA, em 1973, por ocasião duma conferência sobre a Black Theology. Nesta conferência, participara John Mbiti que, na altura, ataca a African Theology como sendo a versão africanizada da Black Theology. Tratava-se, segundo Mbiti, de uma teologia praticada pelos negros americanos e não tinha legitimidade para qualquer adaptação ao contexto africano porque, na sua base, estariam o ódio, a amargura e o sofrimento dos escravos.
Por isso, ela expressava-se nos termos de um Deus negro, Igreja negra, libertação negra e tudo o mais “negro” possível. Este tipo de teologia baseia-se, acrescentaria Mbiti, na consciência sobre a cor negra. E, na óptica de Mbiti, nas escrituras sagradas, não se encontra nada sobre esta cor. Este tipo de Teologia poderia adaptar-se muito bem para o caso da África do Sul, onde os negros teriam o mesmo grau de “amargura” e “ódio” contra o branco, por causa do sistema do apartheid, mas não seria este o caso para o resto da África.
Naturalmente que Tutu defendeu a possibilidade da adopção da Teologia Negra, não tanto pela expressão black, senão, com base nos escritos do seu compatriota Steve Biko, como forma de mostrar o engajamento no repúdio à arrogância da Teologia Ocidental que foi produzida, principalmente com Paulo e suas epístolas, com a pretensão de ser universal. Segundo Alain Badiou, os esforços de Paulo consubstanciaram-se em evitar que o cristianismo se reduzisse a ser apenas uma seita judaica, por via da Ressurreição (Cfr. Badiou: São Paulo: A Fundação do Universalismo. Ed. VS, 2018).
Tutu viria a articular a sua teoria da reconciliação baseada nesta nova problematização da Teologia Negra Africana, algo assemelhada à política de reconciliação de inspiração de Mandela. O fim do apartheid na África do Sul, com a eleição de Nelson Mandela como o primeiro presidente negro, marca o triunfo, na sua plenitude religiosa e política, do espírito da reconciliação.
Desmond Tutu, bispo anglicano e Prémio Nobel da Paz, preside uma Comissão da Verdade e Reconciliação cujo princípio, uma justiça restaurativa, nos oferece exemplo, pelo menos por enquanto, da corporificação do espírito de reconciliação num contexto em que se devia evitar, a todo custo, o temido banho de sangue pós-apartheid.
Tutu declara que há um outro tipo de justiça, cujo propósito central não pode ser punitivo; deve ser sim restaurativo, dedicado à “cura” das feridas. Ela tem como o centro a humanidade do causador das mais vis atrocidades. Este tipo de justiça acredita, diz-nos Tutu, na bondade essencial de todas as criaturas de Deus e que, na base dela, existe, em todos, a possibilidade latente de se tornarem bons e justos. Portanto, os perpetradores das injustiças devem ser reabilitados e não, em primeira linha, punidos ou ostracizados pela comunidade.
A comunidade tem, aos olhos da justiça restaurativa, o dever de reintegrar os que cometeram estas atrocidades. Tutu chega a declarar que uma ofensa (racial neste caso) deve ser considerada como um “distúrbio do equilíbrio social”. Por isso, o processo da restauração deve permitir que o ofensor e a vítima se reconciliem e a paz seja restabelecida. Era preciso buscar um ponto reconciliatório dentro das mesmas narrativas religiosas, ou seja, do interior da chamada espiritualidade originária africana (ubuntu). Algo que fosse tão engenhoso a ponto de evitar o que lavaria à uma derrota de todos: a guerra ou um “banho de sangue”, como se dizia. Neste caso, o espírito reconciliatório corporiza-se em forma de “princípio” que todos deveriam seguir, de um “consenso” ao qual supostamente todos deveriam aderir; enfim, um “compromisso” que todos deveriam acreditar: amnistia individual sim (não a uma amnistia geral), mas a troco da verdade, ou seja amnesty for truth, na verdade de “toda verdade”. E afirmaria Tutu, em 1998, perante Kerry Kennedy, activista americano para os Direitos Humanos:
“Nós não deveríamos temer confrontar-nos com as pessoas naquilo que eles fizeram de mal. Perdoar não significa tornares-te num tapete (na porta) para as pessoas limparem as suas botas [sujas]. O nosso Deus é muito indulgente.” (Cfr. Tutu, D. 2011: God is not a Christian, p.38).
A justiça restaurativa que parecia a única alternativa de “resolver” o problema dos que tinham medo de assistir o inferno ainda nesta vida, ela, porém, adiavam as convulsões sociais porque a «bomba social», esta que a justiça restaurativa, a todo custo, pretendia evitar que detonasse (e conseguiu), permaneceria latente, exibindo o seu fumo e potência ameaçadora, de tempos em tempos. Faltava o principal da justiça restaurativa: a justiça económica – ou seja a tal economic freedom do EFP de Julius Malema. As injustiças sociais continuariam a ser o problema na RSA.
Quanto a nós, a partir desta janela do Índico: é justo adiantar que o problema estava mal identificado: não era nem o branco, nem o negro; não o de confiar na bondade humana que há em todos nós, mas sim desconfiar o mal que também há em nós todos; o problema era a estupidez humana. E estúpidos encontramo-los em toda parte e de todas as cores.
O que também falhou é o modelo do “purgatório terrestre”; ele nunca havia de funcionar porque as almas feridas neste mundo vivem de verdade; elas sentem ainda a falta do pedaço de terra retirado, o emprego que falta, o piso da bota dos novos senhores, o sabor de um pão mal amassado ou ainda uma educação superior ainda não descolonizada e nem des-racializada. As greves dos estudantes universitários na África do Sul são uma prova disso. Os estudantes exigiam, no fundo, uma des-racialização da universidade e, consequentemente, de toda a sociedade.
A Igreja deve ser chamada a reformular a sua profecia consoante as dificuldades e os problemas das pessoas viventes, de carne e osso! E esses são os problemas para a nova Teologia dos Pobres. Estes que ainda não saboreiam os frutos da Rainbow Nation. Pois, que irá reinventar esta nova teologia reconciliatória, na qual os pobres terão o seu Banquete, não somente platónico, senão numa mesa real. God was not a Christian, indeed! (X)
[1] Cfr. Allen, J. (2006): Rabble-Rouser for Peace. The Authorised Biography of Desmond Tutu. Rider. London, Sydney, Glenfield, South Africa, India. p.136.