Viver é melhor que sonhar/o amor é uma coisa boa – Elis Regina
Veio-me à memória, não propriamente a Elis Regina, meu farol também, mas a sua desconcertante música, “Como os nossos pais”, de onde ceifei esses dois versos profundos: viver é melhor que sonhar/o amor é uma coisa boa.
Estava eu sentado sòzinho na varanda, escutando o silêncio debruado pela música dos pássaros, a contrastar com as feridas vivas que se avolumam dentro de nós. E senti a chuva vestida de poesia chovendo dentro de mim: viver é melhor que sonhar/o amor é uma coisa boa.
Mas se de um lado a poesia e a música vencem, evocando o amor, do outro lado esse mesmo amor apelado e cantado, entra e estado de vaporização. Sublima-se aos poucos, como as hienas que nos comem vivos. É isso que eu sinto aqui sentado a escutar a música da natureza, ou melhor, a música do silêncio. Sinto também que o tempo de amar está escasseando, está fugindo. E percebo absolutamente que estou para além das minhas lucubrações, não estou a sonhar.
Até as crianças, que não páram de vir à minha casa arrancar mangas dependuradas na copa das minhas duas mangueiras, já perceberam que o amor está-se diluindo. Vejo isso na expressão dos seus rostos precoces e na maneira como elas falam. Algumas delas, prestando bem a atenção, não procuram a fruta por prazer de saborea-la, mas por fome. Vê-se nos lábios gretados, nas camisas rotas de parte destes passarinhos humanos. Então, deixo-as tirar as mangas como elas querem, sem limites. E não chamo a este gesto uma devastação, mas sim, uma necessidade urgente. Inadiável.
Onde existe o amor tem harpas. E na vida destas crianças não há harpas. Elas não sabem o que é o amor, nunca ninguém lhes deu. Mesmo assim, e isso dói muito, cantam comigo canções de paródia na nossa praia que fica aqui perto, a dois passaos. Cercam-me. Desabrocham a sua aparente alegria no palco de areia, pois dentro delas há um vazio. Físico e espiritual, e sentimental. Sim: o rosto é um pouco a janela da alma, e a alma destas crianças oscila em tonturas. O corpo está desprovido de energia, e onde não há energia não há luz.
Se houvesse o amor! Se houvesse, estas crianças não iriam sofrer. Mas a própria Gal já o diz, e eu não me cando de repetir: eles venceram/e o sinal está fechado para nós/que somos jovens.
É isso: os barcos de cabotagem já não chegam aqui, passam de longe com todos os bombos que eram para as nossas crianças. Nunca tomaram leite estes petizes, vejo isso nos seus rostos. Vejo a fome na forma como devoram as mangas, que serão, com certeza, a primeira refeição do dia, e já passa das 12.00 horas.
Como dói! Então o silêncio que me rodeia não faz sentido. Seria, este sossego, o meu retiro de inspiração e paz, mas quando olho para estas crianças, assim como elas (sobre)vivem, destroça-se todo o meu ser.
Está caindo uma chuva mal-cheirosa um pouco por todos os cantos do nosso país, mas isso pode ser o prenúncio de que o dilúvio chegou. Relampeja nos Céus, com raios gotejando luz letal sobre a terra libertada com sangue, agora regada com sangue novamente. Há trovões a rugir como os felinos mais portentosos da selva, anunciando a hecatombe, porém, ao que parece, ninguém se importa com a sinaleta.
Aquela mulher também , no tempo do Noa, dizia: nunca vi chuva nenhuma a engolir montes e montanhas, e árvores gigantes! Mesmo que venha o tal dilúvio, eu sei nadar, de mariposa e de bruços e costas e de livre. Por isso, não tenho medo de nada!
Chove em Maputo e Gaza e Inhambane/Chove em Sofala e Zambézia e Tete e Manica/Chove em Cabo Delgado e Nampula e Niassa. Chove uma chuva mal-cheirosa e pegajosa em todo o país, e ainda dizem, isto vai passar! Relampeja e troveja em todo o lado e ainda dizem, isto não é nada!
A tonalidade do canto dos pássaros baixou de nível. As estradas estão nuas de um lado. Do outro lado ganharam feridas vivas e, no lugar do pus, cheiram a petróleo. As balas são aspergidas contra os corpos dos jovens e das crianças. Os militares aprumam-se enchendo os carregadores das armas de guerra. Há uma voz de comando que grita para que o sangue jorre nas cidades. E as nossas casas tornaram-se grutas onde nos esconderemos, em vez de nos acomodarmos.
Continua a chover chuva pegajosa em Moçambique. E mal-cheirosa. O céu está encolhendo para que as nuvens se adensem e escureça. Cheira a pólvora na atmosfera. Os músicos recusam-se a subir aos palcos para cantarem as músicas da esperança. E quando se chega a essa fase, significa que serão os crocodilos e as hienas a triunfarem sobre a luz.
As noites tornaram-se longas, ninguém dorme. Os jovens estão unidos, mais do que nunca, no mesmo cacho da luta. Eles sabem que o caminho pelo qual se guiam, é íngreme, mas vão. Sabem igualmente, que para se chegar ao topo do monte mais alto da cordilheira de Namuli e de Catandica e de Chimanimani e de Binga, é preciso alimentar-se devidamente com xima e carne. E os jovens não têm nem xima nem carne, mas vão com a fome que vêm acumulando. “Nós já nascemos com fome”!
É esta a cascata que desce impetuosa, não para destruir. É esta catarata do tempo que já não pode voltar para trás. São estes os ventos que sopram de todos os pontos cardiais levando a força da restauração do amor e da paz. E aos ventos da paz e do amor, não há barreira que se interponha.
Chove chuva mal-cheirosa e pegajosa. Troveja em todo o lado. Relampeja sem parar nas ruas e nos becos e em todas as veredas de Moçambique. Mas ainda é um sinal que podemos entender com sabedoria, para que não haja mais sangue. Para que voltemos a acender as luzes apagadas.
Deus disse a Moisés, vai ao Egipto libertar os meus filhos presos nas masmorras de Faraó! E Moisés retorquiu: Deus, como é que hei-de ir libertar os Teus filhos, eu sou gago! E Deus retumbou: quem te deu a gaguez sou Eu! E ainda disse mais, Jehová: tu não precisarás de falar, abre apenas a boca, quem vai falar é o teu irmão, o Arone!
Mesmo assim, com as palavras irreversíveis do Leão de Judá, Moisés oscilou no silêncio da planície onde, ao som do doce zumbir das abelhas produzindo mel, apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Mas Deus o tinha escolhido, era a ele que recaía a missão de rebentar as correntes da escravidão do povo, pisado e torturado e humilhado e cuspido na dignidade. Então Deus retumbou: deixa cair esse cajado que trazes na mão! E Moisés largou o cajado, que se transformou em serpente.
E Deus, do pedestal da Sua plenitude, observava o Seu servo tremendo perante o gigantesco réptil que o atacava. Moisés vacilou em movimentos trôpegos em gritaria, e logo a Voz dos Céus bramiu do meio da sarsa: pega a serpente pela cauda! E Moisés obededeu, e a serpente retornou ao seu estado de cajado. E Deus trovejou pela últim vez: agora vai libertar os meus filhos!
Nunca tivemos antes, a necessidade urgente de que amanheça, não para escutar a música que brota da orquestra dos pássaros, mas para guerrear com as nossas próprias canções de luta. Nunca antes, tivemos tanta certeza de que a hora já chegou para que a chuva caia nos campos e regue a terra e as sementes brotem retumbantes. Nunca!
Mas a hora já chegou. De rebentarmos a cangarra colectiva de todos nós. Chegou a hora de dançarmos perante os nossos verdugos. E na verdade vamos dançar sem as grilhetas nos pés, as novas danças do novo amanhecer que já desponta na aurora das gaivotas. Aí sim, a nossa marcha não voltará mais para trás. Recusamos a continuar alagados de sofrimento como pássaros engaiolados. Não queremos mais que as nossas canções sejam de melancolia.
É isso! A hora já chegou! De enfunar as velas da nossa liberdade. De convocar todas as nossas energias e abrir o peito em desafio às balas daqueles que nos subjugam. Somos as ondas imparáveis do Índico, que se esbatem na terra e voltam a esbater-se na terra, sem parar. Vão se esbater sempre, até que amanheça.
É essa a nossa luta. Queremos dançar em liberdade e em paz, o nosso Nyau e o mapico. A nossa timbila e a makharra. O nosso xigubo e o n´fena. A nossa Maphandza e o golomondo. O nosso tufu triunfante em Muhipiti!
Nós vamos guerrear com as mãos nuas até que as árvores do medo tombem. Todas elas. Queremos amar em liberdade as nossas mulheres. Fazer filhos com sonhos da sua própria terra. Usufruir de todo o maná que se estende na superfície e no mar e debaixo dos solos. Queremos isso para todos nós. Então deixem-nos passar. Este país é nosso!
Entraram na cidade com pólvora e chumbo e balas, cantando canções jamais ouvidas debaixo das luzes fluorescentes. Traziam consigo a euforia e o entusiasmo, e ainda o sangue quente da morte e da vontade de vencer. Vibravam, por dentro e por fora, como se a guerra tivesse chegado ao fim para que a paz prevalecesse. Mas as armas, embora repousadas à tiracolo, diziam outra coisa. Continuavam com os carregadores cheios e os dedos suados dos guerrilheiros, tremiam muito perto dos gatilhos. Sendo assim, significa que alguma coisa vai acontecer logo a seguir, mas ninguém foi capaz de ler os sinais, e fazer algo para evitar que o sangue voltasse a jorrar nas matas e nas estradas.
Cantávamos todos em harmonia. Em júbilo. Em celebração. Sob batuta de Samora Machel que ia à frente e dizia, “tiyendi pamodzi (vamos juntos)! E na verdade seguimo-lo, enchendo estádios e praças e todos os lugares por onde passasse, sem saber que onze anos depois de anunciar a vitória no vale do Infulene, num diz de chuva branda, ininterrupta, ele, o Samora, apagar-se-ia para sempre.
Depois o tiyendi pamodzi esvaziou-se e, em vez de continuarmos a ir juntos ao encontro da luz, com a vitória agarrada nas mãos de todos, os companheiros de Samora separaram-se de nós. Corremos na mesma pista da maratona mas quem chega são eles. Fumamos a mesma cannabis mas quem apanha o voo são eles. Estão felizes como os animais da selva, quando morreu o leão que rugia nos palanques da realeza. Estão grávidos de dinheiro e fartura. Esqueceram-se dos milhões de braços e, mais do que construírem uma pátria deles à parte, venderam o país inteiro, que é de todos nós.
É verdade! Está a anoitecer outra vez, para que se dê lugar ao piar dos mochos e ao triunfo dos demónios. No fundo nunca amanheceu na nossa terra, para além dos poucos dias que se seguiram ao desfraldar da bandeira que alimentava as nossas utopias. Fomos dados o cheiro da liberdade, mas quase no mesmo dia começaram a ser construídas novas masmorras. Deceparam-nos as asas. E agora estamos a verter novamente o nosso sangue na luta pela regeneração!
Mas é mentira, eles estão com medo de nós os pobres. Sabem que a nossa luta é irreversível. Sabem também que estão entre rios que avançam imparáveis contra os seus falsos baluartes. Não dormem nas noites de insónias onde as vozes do povo ecoam cantando as canções da nossa luta, “povo no poder! Povo no poder!
Estão abalados. Sabem muito bem que chegou a hora de repetir a metáfora de Samora Machel, “se o fruto não cai por si, é preciso abanar a árvore”. É por isso que nos matam. Mas todas as armas que têm e usam, serão em vão. O dia deles chegará como as ondas que não voltam para trás!
O sinal da derrota deles é esse, são as mentiras. São as sementes do terror que semeam em todo o lado. Mas, como rezam as páginas da história universal, desde antes do nascimento de Jesus Cristo, quem semeia ventos colhe tempestades. É infalível. Eles colherão, na safra da sua saga, as pedras que continuam a semear. Então, nesse dia, será proclamada a derrota vergonhosa dos heróis. E içada a nossa nova bandeira.
Em Moçambique não se tem falado, ultimamente, de beleza, fala-se pouco. Até nos próprios quadros de arte, o belo é retratado pelas feridas. Não há alegria, nem esperança na juventude. E assim, com este anoitecer violento, avulta um verso da Elis Regina, que se ouve nas ruas e que diz assim: eles venceram e o sinal está fechado para nós, que somos jovens!
Há um medo que paira nas avenidas, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. As ameaças são aspergidas todos os dias pelo rosnar dos cães. A terra treme. Mas estes tempos jamais foram vistos antes, vivemos no fio da navalha. As cascatas deixaram de despejar água cá para baixo. As albufeiras estão baixando de nível, então pode ser que haja o risco de pararem as turbinas da luz que vai enfraquecendo dentro de nós. Pois, se os rios secam, seca o país também. E os rios somos todos nós.
Pedro Langa já dizia: esta bela árvore já não tem folhas, caíram/o que significa que aqui em casa reina o pranto.
Há latidos profundos em todo o lado, então somos iguais aos cães, talvez piores que os cães, é assim como somos tratados! Mas o que é isto? É preciso repetir que a morte agora é fabricada. É servida em garrafinhas com rótulos dos demónios, como por exemplo “dinamite”. Na verdade há um rastilho aceso no nosso chão inteiro, e não poderemos nos esconder nas grutas. Que serão estilhaçadas.
Já não se fala de beleza nos whatsap e no facebook e noutras plataformas digitais. Passamos a vida total a escarnecermo-nos uns aos outros. A despejar todo o nosso fel por cima de nós mesmos. Tudo que se escreve agora nesses sítios tem tendência de nos conduzir à caminhos íngremes, ao pricipício. As coisas lindas que se lêem e se vem nos whatsap e nos facebook, são as mulheres, que também estão vituperadas. Não têm receio de nos mostrarem a parte mais macia do seu corpo. E isso é sinónimo de desespero na juventude. Frustração.
O belo atrai o belo, mas em Moçambique o belo feneceu. Nos subúrbios das cidades é que se nota com maior ênfase o privilégio de ser cão, e nem é necessário o uso da lupa para que toda a nossa nudez se torne clara. Aliás, o músico moçambicano já cantava: vada voxe (comem sozinhos). E se comem sozinhos, então não nos resta mais nada senão ser cão, e andarmos por aí, na gandaia, revirando as latas dos ricos, até que todo o castigo e sofrimento termine. Não sabemos como, se de forma trágica, ou de outra forma.
A noite já vai longa demais, e não se vislumbra a aurora. Diz-se que não é por muito madrugares que o sol vai nascer mais depressa. Mas é preciso mudar esse paradigma, pelo paradigma da juventude. “Vamos madrugar muito, para que o sol nasça mais depressa”. Não precisamos de armas de fogo. A nossa pólvora são as mãos nuas que se abrem e se apertam a outras mãos. As nossas balas são as canções que vamos cantar de dia e de noite até que amanheça. Vamos dançar também, no palco dos becos e das ruas e da avenidas, com as matchatchulani (bailarinas chopes) à frente, esvoaçando as saiotas. São estas as nossas armas. Entregaremos, sem medo, o peito às verdadeiras balas que já começaram a chover como granizo de morte.
Boa tarde a todos
Sinto-me bastante honrado em estar aqui neste lugar que hoje nos acolhe, e dar-vos as boas vindas. Na verdade estamos todos em igualdade de circunstância, não exactamente para um almoço de confraternização, mas para uma viagem no tempo, em busca de algo que nos faça ressurgir como geração, ou como testemunhas da geração constituída por uma panóplia de homens e mulheres nascidos para brilhar, cada um com a sua luz, porém do mesmo maná. E eles luziram enquanto vagueavam por aqui, como manhambanas típicos de uma cidade que se recusa a mudar, para além dos seus limites demarcados pela pacatez.
Estamos aqui para uma conversa espontânea, sem alinhamento. Sem compromisso. Se calhar com o propósito de homenagear pessoas que se tornaram personagens vivas, e sentir os cheiros guardados na memória e recordarmo-nos de lugares como por exemplo, Bángwè, onde jogávamos a bola em liberdade, com muita amizade, sem almejar absolutamente nada para além da alegria de viver.
Bángwè tornou-se um centro de festas futebolísticas inolvidáveis, com jogadores que mostravam, ainda imberbes, ser talhados para grandes estádios, mas como a vida não é linear, pode ser que não tenham tido a sorte de receber os aplausos do reconheciomento. E da admiração. Noutras terras. Mas foram ovacionados aqui.
Não vou mencioná-los a todos, seria impossível, mas há dois que terão desfraldado de forma particular, a sua evolução no Bángwè: Nando Guihoto e Chumbo Lipato, para quem peço uma salva de palmas. Aliás há quem dizia que os mortos não morrem, então esta ovação é para estas duas vedetas que vão viver dentro de nós de forma indelével.
Pode ser que estejamos a fazer isso, a exaltar aqueles que fazem parte da tecelagem da nossa cidade, e não precisamos de ir às tumbas onde não há vida para render a nossa homenagem a eles. Então, Fernando Guipatwane não morreu. Repito o que alguém dizia: os mortos não morrem! Fernando Guipatwane era um actor alegre, predisposto a uma gargalhada estranha, porém doce. Vinda de de dentro de um homem que não tinha espaço para feridas dentro de si. Ele, certamente, vai nos ouvir a recordá-lo neste espaço que ficará assinalado na nossa caminhada colectiva: então, uma salva de palmas para Fernando Guipatwane!
A jornalista e escritora portuguesa, Agustina Bessa Luís já dizia: a história é uma ficção controlada! E nós aqui, ao evocarmos essas figuras, se calhar estamos entre a história e a ficção. Digo isso porque Matangalane Boby era ao mesmo tempo ficção e realidade.
Uma pessoa que se senta no encosto dos bancos de bentão que existiam na ponte cais de Inhambane, sem se importar com o perigo que isso representa, só pode ser actor de um filme de ficção. E Matangalane fez isso numa das suas façanhas. Deixou-se embalar pela briza, o sono tomou com conta dele, e caíu na água em maré cheia. A sorte dele, é que estava por perto o Adério França, nadador puro, que não pestanejou duas vezes. Mergulhou e salvou Matangalane Boby, já com água por demais engolida.
Mas, por ironia, Matangalane ainda dizia: Nhi digue, nhi digue... FidA PUTA (Deixe-me, deixe-me, filho da p..
Não importa de onde ele vem, se daqui ou de outras terras e outros mares. O que nós sabemos é que Matangalane Boby é património da nossa cidade. Um homem com olhar de felino, pronto a apedrejar-te se o provocasses. E a dor que deviamos sentir todos neste momento, é que depois morreu sem amparo, como quem não tem a quem chorar. E ninguém chorou no dia do seu funeral. E hoje estamos aqui para homenagea-lo. Por isso, vai uma salva de palmas para Matangalane Boby!
Pois é, a cidade de Inhambane tem um estendal sagrado de figuras relevantes em todas as áreas. E as consagrações não existem somente para os políticos e as elites. Os viventes da periferia também merecem que nos lembremos deles, como nos lembramos agora de Bernabé e de Bernardo Wonane e de Helena Maluca, Laura Maluca, Chura Boy, Abdul Nha Mbafa, Micaela, Hamad Guikolomane, Guibochane! Viventes das bermas da vida em todos os momentos de sol e de chuva e de frio e de calor. Mas são esses que fazem a sétima nota da escala diátónica da nossa urbe, então merecem uma salva de palmas! Assim como vai uma ovação para estrondosa para Otto Glória (o nosso Otto Glória e Guegué.
Senhoras e senhoras, eu sei que a lista das nossas estrelas é interminável, e não pretendemos ser exaustivos, e nesse aspecto estamos todos de acordo, não é verdade? O importante é que estamos aqui, de forma desinteressada para celebrar a vida, e a vida, em memória, daqueles que orbitam no cosmos da luz definitiva. Então, ocorre-me formar uma selecção de ouro composta por, Lóngwè, Babarriba, Berehemo Guifototo, Manwelito do Inhambane 70, Daniel Mosse, Tsungu Maciel, Tsungu Abílio, Guihoto, Tsungu Max, Manuel da Luz, Nuno Gobo, Siya Libendzi, Bata, Tsungu Thsoni, Guimesseryane, Madobolo, Naniá, Dogologo, Vangyane, Tsotsi, TAP, Tsungu Arouca, e demais estrelas.
Não evocaremos os nomes de todos os nossos ídolos, obviamente! Há informações que a memória vai protelando, fechando a hipófeses, então ficamos limitados. Mas o própósito do nosso encontro aqui está claro: confraternizarmos e içarmos as bandeiras daqueles que viverão para sempre na nossa história colectiva. Os mortos não morrem!
* Texto de apresentação no almoço de confraternizaão dos manhambanas, havido no dia 5 de Outubro corrente na cidade de Inhambane
Nunca tivemos dúvidas de que a Estrada Nacional Número Um (EN1) será para sempre a coluna vertebral do nosso País. E se você tem esta comporta decisiva com danos profundos na sua estrutura, então todo o resto do corpo entrará em derrocada e não lhe restará outra saída, passarás a ser um cadeirante. Na verdade é o que está a acontecer, Moçambique é um país cadeirante.
A EN1 é o último testemunho de uma governação de dez anos, que passou quase todo esse tempo destruindo a poesia que existia dentro de nós. Agora só temos como alternativa, soletrar repetidamente os versos da sinfonia dos demónios, que nos atormentam de noite e de dia. É este o legado que fica para comprovar a incapacidade de juntar as pedras existentes em fartura na nossa terra, e reinventar as madrugadas e os amanheceres e as utopias.
A própria paisagem exuberante que se metamorfosea em espectáculo de harpas, de norte a sul de Moçambique, perdeu o esplendor aos nossos olhos, pois o miradouro que é a EN1 , construída para mover a economia e através dessa mesma estrada contemplarmos a dádiva em si, para gáudio do espírito, está absolutamente despedaçada. O pior é que o ilustre Carlos Mesquita, investido na pasta de ministro das Obras Públicas e Recursos Hídricos, jamais teve a humildade de vir cá fora dizer que o governo inteiro, por ele representado nesta área, degenerou em todos os sentidos.
Mas isso é falta de humildade, e a humildade é a parte mais luminosa da sabedoria. Então, não haverá nada que possa justificar o estado em que chegou a EN1, nem as ladaínhas de Mesquita que vai sair daqui a pouco sem nada no regaço, para além dos remendos que fez ou vai fazendo em determinados troços, mesmo assim sem muita garantia. Governar não é remediar.
A EN1 é o último testemunho mais importante que este governo vai deixar para os que vierem, e se houvesse humildade por parte dos actuais dirigentes, diriam, em uníssono, assim: “na verdade não fizemos nada! E o testemunho de que não fizemos nada, está retratado na EN1! Tentamos fazer qualquer mas não conseguimos, reconhecemos a nossa incompetência”!
São estas as palavras que os actuais “boices” deviam dizer ao povo, e não a costura desesperada de teorias que em nada lhes abonam. Não haverá estrofe alguma capaz de esconder a maior ferida cavada e aprofundada nos últimos dez anos, que é a EN1, envergonhando-nos a todos. Por inteiro.
A EN1 é o espelho claro de um país tornado miserável. E se Moçambique foi despromovido à (des)categoria de miserável, significa que nós também, como pessoas, somos miseráveis. É assim como somos tratados pelos outros. É essa a nossa actual condição, não temos outra.
É isso, ilustre Carlos Mesquita, você pode ter tentado fazer algo em prol do desenvolvimento de Moçambique, mas foi incapaz. Então venha a terreiro dizer isso, com humildade, a sua pena será atenuada!
Conheci-o na cidade de Inhambane em 1974, depois dos Acordos de Lusaka, altura em que se anunciava o crepúsculo do amanhecer, eivado de euforias e canções jamais ouvidas antes, vindas das matas soberbas com cheiro a pólvora. Era um jovem que, assim mesmo, como o ressurgir dos tigres, colocava-se na linha de ataque com o cabelo por aparar, distinguindo-se deste modo, de todos os outros que se entregavam com denodo a uma aurora construída com sangue e balas.
Tomaz já tinha consciência do que fazia. Sabia que tinha asas tenazes, capazes de sobreviver aos temporais, então passou a usá-las em voos de grande altitude que não podiam esperar mais. Galgou rapidamente os degraus de forma segura, passando pelo Ministério da Defesa por indicação, a dedo, de Samora Machel, onde lhe colocou para lidar com falcões da luta de libertação nacional, sem que ele, o Tomaz, tivesse sequer manipulado uma simples carabina em toda a sua vida. Aliás, o próprio Tomaz não sabia o que ia fazer num lugar tão movediço, como é que aparecia no meio de lobos, ou melhor, na dianteira de felinos.
Tomaz cintilava, mas o que ele não sabia, é que ao longo do tempo, a sua aura, que passaria por dirigir ministérios importantes, iria diluir-se pouco a pouco, até ao ponto de olhar para trás e perguntar-se a si mesmo se valeu a pena todo este galope. Ora, os sonhos que trazia no regaço foram sossobrando. As orcas que ele dirigiu no Ministério da Defesa começaram a seguir caminhos diferentes dos que tinham sido traçados nas matas. Os projectos que ele ajudou a desenhar nas instituições do Estado, enfraqueceram. Então o homem começou a ser conduzido pelos receios.
Hoje não reconheço o Tomaz Salomão, aquele jovem de vanguarda que outrora eu gostava de seguir de longe, sem que ele soubesse. Tornou-se incapaz de inventar palavras novas que nos possam reaninar. Agora acho, depois de o comboio perder os carris, que Tomaz devia saltar do barco dos poderosos, aqueles que sugam o povo até ao tutano, e vir para o mar aberto, ajudar a salvar aos que vão naufragando em massa. Era essa a minha esperança, de que o meu ídolo vestisse também a luta do povo. Não bastam as palavras já esvaziadas pela realidade, ditas em intervalos, enquanto na calada da noite, e mesmo à luz do dia, ele mergulha no regabofe e na pompa indisfarçável.
Não vai valer a pena a tua luta, Tomaz, apesar de tudo o que fizeste. Não valerão a pena as tuas bonitas palavras, pois continuas sentado à mesma mesa com os poderosos, bebendo conhaque. Tu fazes parte desse poder que está-se marimbando para o povo, então perdeste a legitimidade de falar para esse mesmo povo, o que é lamentável, pois eu me tornara teu seguidor desde os tempos em que acreditava na tua força. Agora não!
Mas ainda vais a tempo de te perdoares a ti próprio, faça qualquer coisa para salvar o teu país! Faça qualquer coisa para que a poesia retumbe e a timbila da tua terra ressoe, reboando por todo o Moçambique. Faz isso, meu irmão, que o povo vai te agradecer.
Mas eu não sou o personagem principal nesta trama, também não sou um figurante. Sou o tabuleiro indicado para que todas as cenas passem por mim como nas pontes de betão, onde os camiões de grande tonelagem atravessam, fazendo com que os fundamentos de toda a estrutura estremeçam. Por vezes dá-me prazer vestir a pele que me atribuiram, de um inconsequente, porém noutras vezes sinto que o meu lombo não aguenta, sou frágil demais para suportar este papel, é como se o meu castigo viesse para ficar.
A informação que tenho é de vamos partir às quatro da manhã, então às três estarei de pé para aquecer água no fogareiro à carvão, e foi isso que eu fiz. A minha casa de banho é externa, e em cima da hora fui descobrir que a lâmpada fundiu, está escuro lá dentro. Recorri à lanterna do telefone que me dava a sensação de eu próprio ser um fantasma. Ou seja, não parece real alguém estar a tomar banho às três da manhã, num silêncio em que o único som que se ouve, é da água deslizando pela minha cutis.
Cheguei a pensar que a única pessoa que estaria acordada àquela hora, sou eu. Mas esses pensamentos não me perturbavam, o que me empolgava era a viagem que iria iniciar daqui a pouco. Uma longa viagem que terminaria numa cidade cercada de montanhas pedra, Tete, e eu conheço o percurso que passa pela espectacular cordilheira de Catandica. Do outro lado fica o Zimbabwe, onde se pode entrar também pela fronteira de Cuchamano. Pensava em tudo isto durante um banho que não durou mais do que dez minutos, um banho quente e agradável.
Ao sair da toilett vejo um homem parado em frente à porta da minha casa, na verdade uma silhueta virada de costas para mim, parecia Yupidu, e eu cubro as partes sensíveis com a toalha, entregando o meu tronco à cacimba fria que cai imperceptível, sem deixar, mesmo assim, de ser letal. Perguntei, quem é você!
Quem me responde é o silêncio, mas eu estou animado pela viagem que vai começar daqui a pocuo e já são quatro horas! Há uma rola que arrulha à esta hora e isso não é normal, pode ser sinal de mau agoiro. Ao mesmo tempo o meu telefone retine com um número desconhecido. Um cão que ladra lá fora de forma persistente, mas aqui na zona nenhum dos meu vizinhos tem cão. Sinto cheiro de tabaco aceso, alguém está a fumar.
Mas isto é um turbilhão, e o centro do remoínho sou eu, condenado com pena de tormenta, sem julgamento sem nada, o juiz da causa são os meus actos, os meus caminhos tortos. É por isso que estou aqui apenas com a toalha na cintura, e o tronco do meu corpo sendo molhando pela cacimba que cai em gotas microscópicas. Não consigo mexer-me.
Então já não tenho dúvidas de que estou perante as mandímbulas do lagarto mais frio do planeta, que se ri como as hienas, porém eu vou viajar. Em liberdade. Cantando as músicas copiadas do Salmos.
M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. Mas há quem por outro lado, investe na destruição do mwenje, árvore de onde se extrai a madeira usada na produção da timbila. Subjaz ainda a sensação, neste cenário constrangedor, de que todo o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique, está a desvanecer. E o testemunho disso são os últimos festivais a que tivemos a oportunidade de assistir.
Warethwa! (Cuidado!)! Este é o grito deles de guerra desde os tempos. Na verdade quando a xipalapala ecoa, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e de todo o corpo e da alma dos chopes. Ou seja, depois do grito, Quissico ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectada para o mundo inteiro. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila.
Mas hoje em dia o M´saho já não é o mesmo. É muito provável que esteja a ser diluído pelo tempo. Não se sente a vertigem, e ainda por cima estamos em presença de um Património Cultural da humanidade. Então, há coisas que os chopes não podem fazer sozinhos, mesmo sabendo-se que eles nunca se resignaram em nenhum momento.
Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras. Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos apelativos com pouca chama em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.
É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade. Talvez a decepção. Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplosÉ urgente repensar-se no local da realização dos festivais de Timbila. Zavala tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival, e, fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.
É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.