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terça-feira, 26 março 2024 07:05

Estamos a apodrecer

Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto,  nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.

 

Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.

 

É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.

 

Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.

 

Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada  e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.

 

Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!

segunda-feira, 25 março 2024 17:05

A EDM e a chuvada sobre Maputo

Quando a chuvada arrasadora do fim de semana desabou sobre o Grande Maputo, eu apostei que ela arrastaria consigo o habitual apagão de eletricidade.

 

 

Foi sempre assim.  Ao mínimo ruidoso trovejar, o mundo ficava às escuras, um barulhão entre trevas. 

 

 

Chuva e escuridão, tanta maldade junta, uma natural e outra decorrente da incompetência ou desleixo humano (chamem-lhe o que quiserem, rede de distribuição precária, etc). 

 

 

No meio do desconforto, o habitual desfile das nossas lamúrias, vituperando contra o Governo e o bando de incompententes que gerem a EDM. 

 

 

Minha aposta caiu no fundo do vaso sanitário. A chuvada trouxe à tona a habitual pobreza das nossas infraestruturas, tanta incúria acumulada na área do saneamento e ordenamento urbano. 

 

 

Minha aposta foi qualquerizada. A EDM derrotou-me de forma retumbante. 

 

 

Durante a chuvada fui paulatinamente desgrudando a vista de um apagão relampejando lá nos confins de um horizonte imaginário, O  apagão, que já era uma obsessão, um desejo reprimível, não chegou. 

 

 

Pela primeira vez na minha memória, Maputo enfrentou o caos da chuva longe da escuridão. 

 

 

Para mim, isso é obra. No meio de muita ineficiência e inconsistência na gestão do sector empresarial do Estado, a EDM mostrou que é possível fazer o mínimo: cumprir sua missão sem as recorrentes trevas. Valeu. Serviço público deve ser assim. 

segunda-feira, 25 março 2024 15:19

JOÃO DIAS, escreve Nelson Saúte

“e se tu és negro, e eu sou branca,

a mesma terra nos gerou”

 

Alda Lara (in “L.M. Guardian”, 6 de Janeiro de 1952)

 

A 25 de Março de 1949 morreu em Lisboa o escritor João Dias aos 23 anos deixando uma obra precursora da ficção narrativa moçambicana que seria editada postumamente. A 8 de Junho de 1950, Noémia de Sousa escreve o poema “Godido” e dedica-o à memória de João Dias: “Dos longes do meu sertão natal, / eu desci à cidade da civilização. / Embriaguei-me de pasmo entre os astros / suspensos dos postes das ruas / e atracção das montras nuas / tomou-me a respiração. / Todo esse brilho de névoa, ténue e superficial / que envolve a capital, / me cegou e fez de mim coisa sua”. Assim começa esta homenagem que adiante exclama: “Ah, mas eu não me deixei adormecer! / Levantei-me e gritei contra a noite sem lua, / sem batuque, sem nada que me falasse da minha África, / da sua beleza majestosa e natural / sem uma única gota da sua magia! / A luz verde incendiou-se no meu olhar / e foi fogueira vermelha na noite fria / dos revoltados”. Noémia terá desde logo uma intuição certeira em relação ao contista desaparecido e da sua importância: “Ainda grito, / porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora, / o que fui outrora”// “Como tu, meu irmão negro, desorientado e perdido, / na cidade cruel.../ Como tu!”

 

Muitos anos depois, em 1990, interpelei Noémia de Sousa e quis saber se ela conhecera  João Dias: “Foi a mesma coisa com o Rui de Noronha. Nunca convivi com o João Dias. Via-o na rua. Depois soube que ele tinha vindo para Portugal, mas devia ser miúda nessa altura.  As irmãs dele foram, durante algum tempo, visitas de minha casa. Eram amigas das minhas primas. Falavam muito do irmão, que era o único rapaz, que andava no liceu, e todos aqueles sonhos à volta dele, que iam mandá-lo para Portugal. Eu nunca tive nenhum contacto com ele. Vi-o às vezes na rua. Encontrávamo-nos na matinée de domingo”.

 

João Bernardo Dias era filho de um nome insigne do jornalismo – Estácio Bernardo Dias, da geração dos Albasini e de “O Brado Africano”. Nascera a 21 de Maio de 1926 (o mesmo ano em que nasceria Noémia de Sousa), na então cidade de Lourenço Marques. Colaborou, entre outras publicações, em “O Brado Africano” e dedicou-se, para além da ficção narrativa, ao jornalismo e à crítica cinematográfica. É curioso que o mítico grupo dos ruis, anos mais tarde, também se interessavam pelo cinema. Rui Knopfli fez crítica de cinema, Ruy Guerra é hoje um dos nomes mais importantes do Novo Cinema Brasileiro. A ligação com o cinema é um esteio literário interessante e por explorar.

 

Numa entrevista a Michel Laban, Noémia de Sousa relembra-o: “Pareceu-me sempre uma pessoa muito metida consigo e solitária. Faço ideia o que deve ter sido o liceu para ele – frequentou o liceu em Lourenço Marques – o que deveria ter sido, naquela época: o único negro que andava no liceu. Deve ter sido uma experiência horrorosa.”

 

João Dias, através da personagem Godido sobretudo, mas também de outras personagens, relata-nos, nos seus contos, essa experiência dolorosa do quotidiano dos negros. O autor foi vítima dessa discriminação e viveu dilacerado numa sociedade preconceituosa e extremamente racista. Mesmo nos textos ulteriores, nos quais se relata a experiência como estudante em Portugal, é possível detectar o vexame do racismo e da discriminação.

 

No pórtico do seu livro póstumo escreve João Dias: “Lei de bronze! Com os seus armamentos de ferro, o reino de Godido era então o mais forte da região. Superava  quantos lhe apareciam. Em todo o sítio  a voz do vátua era indiscutivelmente a voz de baixar a cabeça e saudar Bayette! Bayette!!! E não se toleravam insubmissões. De uma vez, para castigar um induna revolto, o régulo chamou-o à sua cubata e ele próprio lhe enterrou uma navalha nos pulmões. A vida de glória enchia todo o povo vátua que corria de norte a sul, escangalhando com majestade tudo que lhe aparecia pelo caminho.”

 

Desde os seus escritos da adolescência que se nota o seu espírito indómito e combativo, revoltado e insubordinado. Aliás, aos dezassete anos escrevera: “Mais uma vez bradamos pela justiça porque todo o homem sujeito à opressão tem o direito de reagir, de destruir tudo o que se oponha a sua liberdade”. Foi incompreendido. Viveu, na sua passagem de cometa por este mundo, sempre dilacerado com esse anátema da incompreensão. Escreveu uma obra escassa, mas significativa. A sua escrita, fortemente marcada socialmente, tendo como personagem recorrente Godido. É uma personagem-metáfora. Nela se faz a alegoria de um tempo, a representação de uma sociedade, a figuração do colonialismo e das suas acintosas tropelias e enormidades. “Godido será gente? Talvez...talvez tivesse nascido cão; e talvez seja homem.” “Porque és negro e de negro não passas”. “Sua negra! Cadela! Safa-te quanto antes. Sua...”  (“Godido”) “Canalha!!!” (“Sonho negro”) “Se fosses como teus irmãos, mero carregador do cais, ou desentupidor de fossas!...não levantarias novos problemas a ti e a nós. A  vida seria suavemente menos alcantilada. Serias feliz porque eras do teu mundo, e te bastava nele.” (“Individuo negro”).

 

João Dias estudou Direito em Coimbra durante três anos e posteriormente transferiu-se para Lisboa. Morreu, aos 23 anos, vítima de doença incurável. Para além dos escritos que enforma a edição póstuma de “Godido e outros contos”, deixara alguns escritos de juventude e colaboração diversa em “O Brado Africano,  “Itinerário”, “L.M. Guardian”, “Agora”, “Gazeta de Coimbra”, “Via Latina”, “Meridiano”, entre outras publicações.

 

Em 1952, chancelado pela África Nova, impresso na Casa Minerva, em Coimbra, sob a iniciativa dos amigos Alda Lara (de Angola), Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo (de Moçambique), com o patrocínio da secção Moçambique da Casa dos Estudantes do Império, é dada à estampa, a reunião “Godido e outros contos” de João Dias. Albuquerque, poeta e médico, que se casaria com a poeta  e médica Alda Lara, redige a introdução: “João Dias morreu quando começava a mostrar-nos a reais possibilidades do seu talento. A obra que nos deixou é pequena e inacabada. Entretanto, mesmo assim, é suficiente para nos dar o quanto das suas possibilidades e justificar a iniciativa de alguns dos seus amigos em lha editar, evitando que, lamentavelmente, se viesse a perder no esquecimento que, tarde ou cedo, acaba por cobrir aqueles que a morte leva...”

 

Em 1987, no jornal “Domingo”, Nikos Kakurios, interroga-se: “João Dias: escritor maldito?”: “Embora sabendo que havia sido publicada uma obra intitulada “Godido” não havia forma de ter acesso ao livro.” “A curiosidade sobre esta estranha maldição de um livro que nem os meus amigos com bibliotecas pessoais de qualidade possuíam ou conheciam sequer”. Um grupo de jovens cria nesses anos 80 a Brigada João Dias. A “Charrua” faz-lhe menção no seu número inaugural (Junho de 1984) e publica o seu conto mais emblemático.

 

Trinta e sete anos depois da primeira edição, a Associação dos Escritores Moçambicanos haveria de reeditar esta obra seminal em Agosto de 1989, com um prefácio de Cyprian Kwilimbe, que foi um entusiasmado divulgador da obra e figura de João Dias, lutando, ele também, contra o esquecimento. Kwilimbe, que participou da aventura da revista “Charrua” escreve no referido prefácio: “Com uma ressonância ao mesmo tempo individual e universal, João Dias, numa linguagem clara e rica, bradou pela justiça humana: individual porque ele mesmo sofreu a injustiça; universal porque descreveu as arbitrariedades e a injustiça comuns no mundo através da História.”

 

Hélder Muteia, da geração da “Charrua”, assina o texto da contra-capa: “Várias vezes humilhado e vexado, João Dias nunca se rendeu ao acanhamento e, entregando-se inteiramente à luta, numa originalidade que sempre o caracterizou na arte e na vivência, deixou por onde passou, gravado bem o fundo, o cunho de uma personalidade ímpar”.

 

Noémia de Sousa intuíra a sua importância, Orlando de Alburquerque vaticinara-lhe um lugar cimeiro na fundação da literatura moçambicana, Cyprian Kwilimbe apostrofava a questão central do racismo e do preconceito que sofrera na sua obra, Hélder Muteia relevava a “voz humanitária e realista”. João Dias seria, quanto a nós, a consciência inicial da moçambicanidade na nossa ficção narrativa, que se elevaria, quinze anos após a sua morte, na pluma esplendente de um outro jovem, Luís Bernardo Honwana, com a sua obra genial “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.

 

Para além dos quinze textos que integram a edição inicial de “Godido e outros contos”, o livro traz um novo prefácio, sem excluir o anterior, apondo-lhe um poema, de Alda Lara, em jeito de posfácio: “É tempo companheiro! / Caminhemos.../ Longe a Terra chama por nós, / e ninguém resiste à voz / da Terra...// Nela, / o mesmo sol ardente nos queimou, / a mesma lua triste nos acariciou, / e se tu és negro, e eu sou branca, / a mesma terra nos gerou..”

 

A denúncia, o grito, a revolta. A imputação do colonialismo, a acusação contra o racismo, a incriminação contra as desigualdades marcam a obra de ambos. Os dois são contistas – João Dias e Luís Bernardo Honwana -  de apurado sentido estético e de um poder de observação poderoso. A economia da linguagem e a riqueza vocabular também os aproxima. Os textos são curtos, marcantes e marcados. Sobretudo socialmente. A obra de João Dias é claramente incipiente, denuncia ainda certas tibiezas, como lhe apontava Orlando de Albuquerque, mas é, ao mesmo tempo, um referencial histórico fundador.

 

“Godido” é, no entanto, um texto precursor, pioneiro, vanguardista. O seu autor é um arauto, alguém que anuncia, que nos dá notícia de um tempo novo na nossa literatura. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” estabelece o cânone e será a obra referencial da nova ficção em Moçambique. É uma obra fundadora. É, no entanto, tributária, de certo modo, de “Godido e outros contos”.

 

Num ensaio notável e pioneiro, ulterior a dois textos importantes, um de Rui Knopfli de 1974 e outro de Orlando Mendes de 1980, Fátima Mendonça, numa periodização da literatura moçambicana, em 1987, refere: “Em 1949 morria em Lisboa um jovem moçambicano, estudante de direito, João Dias, que deixava inédito um conjunto de textos, “Godido e outros contos”, publicado postumamente pela C.E.I. (1952). É neste período que “surge uma literatura marcada pela rejeição do carácter colonial do contacto com Portugal”. “A sua génese encontra-se no clima provocado pelas alterações históricas determinadas pelo final da 2ª guerra mundial”, considerava Fátima Mendonça, sem omitir as condições políticas específicas ocorridas em Portugal na sequência do movimento à volta de Norton de Matos em 1948 e que teve repercussões no caso moçambicano, acrescento aqui, no caso da geração de Noémia de Sousa e da sua acção reivindicativa, política e cultural.

 

João Dias foi um incompreendido. Há quem tenha visto nele um “germinador de ódios”, mas Godido e, por extensão, João Dias, são a metáfora pungente da vida dos negros numa cidade e numa sociedade extremamente segregada, as suas desventuras, o seu quotidiano, o seu infortúnio: dão-nos conta do destino de um povo que se viu historicamente privado da sua dignidade. Bem podem os defensores do indefensável proclamar os avatares do colonialismo, querendo apregoar que o colonialismo português era benevolente, altruísta ou generoso, a realidade histórica demonstra o contrário. Leiam, entre outras obras, “Godido”. Está lá a notícia do colonialismo e das suas perversidades.

 

Por outro lado, aqueles que ainda hoje persistem em fazer da cidade de Lourenço Marques justa, magnânima, copiosa ou supina, em artigos e invocações superabundantes, bastaria uma leitura destes contos para ficarmos esclarecidos sobre a cidade e a sociedade excludentes, uma cidade discriminatória, hostil, segregada, preconceituosa, intolerante, racista, classista, diferenciada. João Dias, que sofreu o facto de ser negro, soube descrevê-lo e denunciá-lo e os seus escritos são um alerta contra a desmemória e a mistificação da história.

 

Este e outros escritores de juventude, podemos subsumir, colocam João Dias entre aqueles que empreenderam, antes da geração dos libertadores, um acérrimo combate pela liberdade. Há uma geração, sobretudo do movimento negro, que combate o racismo, exige direitos para as populações das então colónias, criticam o sistema. Esse movimento negro tem importantes ligações ao pan-africanismo e aos movimentos civis negro-americanos. Parte dos chamados proto-nacionalistas, como Mário Pinto de Andrade, irá caracterizar a geração que antecede à “Geração Cabral”, são a consciência primeira da luta, do combate, do empenho ou contenda pela emancipação política dos africanos. É importante lê-lo também para perceber que o gérmen libertário vem de longe. A nossa história é redutora, lacunar e maniqueísta.

 

João Dias morreu muito jovem, sem tempo para aprimorar esses escritos e essa consciência combativa, mas o seu desagravo, o seu desacordo, a sua briga, a sua discórdia ou dissentimento são inequívocos. Também, daí, resulta, de algum modo, a sua importância. Sendo que, no seu caso, temos a fortuna do seu talento e do seu génio, que a morte prematura impediu que se desenvolvesse. Seja como for, é impressivo e expressivo os primórdios do cânone que aqui se intenta ou desenha. Não obstante o facto de ser uma obra fragmentária e inacabada.

 

Trinta e cinco anos depois da segunda edição de “Godido e outros contos” não temos conhecimento de que a obra inspiradora de João Dias tenha conhecido outra sorte que não seja a ventura das vicissitudes a que obras e autores semelhantes estão sujeitos neste país: o opróbrio do silêncio, a ignomínia da desatenção e do descaso, o desconhecimento e a negligência. A indiferença, o abandono, a omissão.

 

Quando passam hoje setenta e cinco anos sobre a sua morte precoce, queria aqui lembrá-lo, neste breve tributo. João Dias é sem dúvida um dos nossos intérpretes ou, se quiseram, um dos nossos melhores. Socorro-me do auxílio da esplendente pluma da Noémia de Sousa, outra vez,  para esta reverência, vénia ou homenagem a João Dias:

 

“Por isso é que este meu canto ingénuo que soa banal,

traz no seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão

a marca rubra dum selo fraternal,

constante e imortal”

 

KaMpfumo, 25 de Março de 2024

Há situações extremas que nos deixam com um enorme amargo na boca. A ser verdade a foto divulgada, uma enorme pompa e circunstância se criou em torno da inauguração de uma casa para um Administrador de um dado Distrito. A casa assemelha-se em tudo a uma dessas vivendas de luxo situadas nos bairros ricos de Maputo. Casas que não apenas custam enormes fortunas para construir, como depois para equipar e manter. Acredito que a ser construída pelo Estado é um modelo que irá ser replicado em todos os distritos do país. Um gasto significativo que perante tanta necessidade básica fica impossível não causar indignação.

 

A lista de necessidades básicas é extensa e mesmo infindável. Temos milhares de crianças sem carteira ou mesmo tecto para estudar, hospitais por construir, equipar e suprir dos mais elementares consumíveis, estradas por manter e construir, salários por pagar e melhorar e por aí fora. Mas assistimos a um chocante despesismo improdutivo que não pára de crescer e que consome uma não contabilizada fatia do orçamento público. Infelizmente, essa lista é tambem extensa. São as escoltas que se multiplicam, as viagens que não param, os constantes “retiros” que muitas instituições do Estado fazem em estâncias turísticas como se não tivessem salas nas suas instituições, banquetes e comemorações luxuosas repletas de champagne, vinhos e whiskeys que nada de mal teriam se não fossem pagos com o erário publico. Temos até dois governantes por província que consomem muito e não sei medir o que realmente fazem. Temos um Estado cheio de chefes e directores, cujas regalias dificilmente se traduzem na produtividade que deles se espera. Temos milhares de viaturas, muitas de luxo, muitas vezes em triplicado para o mesmo dirigente. E, por  detrás disso tudo, uma enorme  alocação de pessoal e meios necessários para manter essa máquina dispendiosa.

 

Um exemplo desse despesismo e das necessidades básicas que ficam por suprir está hoje a acontecer. Como consequência da inexistência de um sistema de drenagem adequado, a chuvada intensa que caiu sobre a cidade está a provocar o sofrimento de milhares de citadinos a níveis chocantes. Esta situação não pode ser atribuída a mudanças climáticas pois as chuvas intensas são um fenómeno natural já há muito existentes. O problema de fundo tem sido apontado pelos especialistas e vem se agravando por um crescimento desprovido de planeamento urbano cuidadoso que inclui os sistemas de drenagem. Por isso as zonas correctamente urbanizadas pouco sofrem com as chuvas e as desordenadas enfrentam calamidades por demais conhecidas. Sem qualquer dúvida o enorme desperdício em consumos não essenciais tem de ser revertido.

 

Está na hora de quem de direito reequacionar toda a gestão publica e fazer cumprir o papel do Estado em tomar conta do país e das necessidades dos seus cidadãos. Uma tarefa muito complexa e difícil, mas totalmente necessária. Um trabalho gigantesco que, contudo, tem de ser feito se queremos ter uma gestão a nosso favor. E, enquanto agora temos de gerir esta emergência em que há que acudir as vítimas das cheias, deixemos de julgar que a caridade abafa as nossas consciências, e comecemos desde já a tratar do que tem de ser feito para que não haja necessidade de caridade e possamos viver tranquilamente com ou sem chuva.  

 

António Prista

sexta-feira, 22 março 2024 08:51

Estamos a apodrecer

Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto,  nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.

 

Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.

 

É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.

 

Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.

 

Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada  e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.

 

Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!

sexta-feira, 22 março 2024 08:15

Simião Ponguane

Conheci-o em miúdo pelos ecrãs da televisão e quis a rota da vida que trilhasse os seus ofícios e nos tornássemos amigos. Simião Ponguane era um profissional de características humanas incríveis: sem complexos de geração nem de concorrência, principalmente os que se geraram entre a TVM e STV, quando esta última emergiu; um jornalista todo-o-terreno e de todos os temas; uma fortaleza de integridade moral e ética.

 

Enquanto os jornalistas da sua época “reformavam” do chamado jornalismo de rua, Simião Ponguane mantinha-se presente, por convicção e profissionalismo, para cobrir fosse política, economia, sociedade ou cultura. Certa vez, enquanto jornalista de economia, fui destacado para cobrir a apresentação dos resultados económico-financeiros da Mozal. Dez minutos antes do evento, lá estava o Simião Ponguane humilde, com o seu pulôver, microfone nas mãos e bloco de notas preenchido de perguntas provocatórias. Com aquele sorriso falso, interrompido com questões embaraçosas, obrigou a Mozal a ir a fundo e facilitou a vida dos colegas jornalistas que, a partir das suas questões, obtiveram linhas de abertura de jornal. 

 

Não me sai da memória a parte introdutória da peça de Simião Ponguane: “O gigante Mozal tremeu, mas não caiu”, um recurso à figura de estilo para resumir as dificuldades transitórias atravessadas pela empresa.

 

Aberto a formas diferentes de pensar, outra vez me ligou: “Oh, Mucipo, que entrada fulminante para o teu debate na espectaculosa!!! – é assim que gostava de chamar a STV –. Isso é que é ser jornalista: incomodar e sacudir a poeira. Peço-te, envia-me os dados e as fontes do teu tema, hei-de querer seguir para os meus programas”. 

 

No trabalho de televisão, o jornalista e o operador de câmara funcionam como gémeos siameses. Era habitual ver Simião Ponguane, mais velho e mais experiente, com o tripé pesado nas mãos e em plena sintonia com o seu operador de câmara, enquanto nós, os mais jovens, resmungávamos e discordávamos dos papéis de cada um. Ele ignorou os caprichos e “protocolos” de Director de Informação e continuou a fazer trabalho de rua com o tripé nas mãos, mantendo-se assim na África do Sul, quando foi enviado como correspondente.

 

Uma outra vez, coincidimos numa viagem internacional e, já o conhecendo, antecipava momentos disruptivos. Por razões de organização, fomos informados de que ficaríamos mais um dia, para completar o trabalho no tal país. Simião Ponguane logo se insurgiu e obrigou a organização a elaborar uma carta ao PCA da TVM, Armindo Chavana à época, para que fosse autorizado a estender a viagem. Simião Ponguane era assim: pontual, honesto, vertebrado e com um exagerado respeito institucional, chegando a devolver as ajudas de custo das viagens à contabilidade da TVM, caso sobrassem ou, por alguma razão desconhecida, fossem acrescidas.

 

A TVM era o seu grande amor, mas por ter sido fiel à profissão que escolheu, foi conduzido ao ostracismo. Nos últimos anos, já castigado pela doença, lamentava o condicionamento aos órgãos de comunicação social e lembrava com saudades os momentos de liberdade em que o lápis azul deixava espaços de respiração.

 

Encarou o maldito cancro com a coragem que sempre o acompanhou no jornalismo. Fiquei a dever-lhe uma visita no seu rancho, no bairro da Matola Gare, onde se refugiou para a convalescença. Terá de ser noutro lugar! Vá em paz, Simião Ponguane. A luta continua!!!

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