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No balanço do seu consulado de 10 anos, Filipe Nyusi vai debitar uma narrativa de sucesso de governação, tal como ele pontuou seus discursos de Estado da Nação ao longo destes anos segurando a batuta da Ponta Vermelha. 

 

Mas ele vai dizer que não fez muito porque encontrou o país já de tangas e um Tesouro de cofres vazios, herdados do calote guebuzista. Seu governo fez muito para reverter o cenário sombrio das finanças públicas - negociando com os credores e litigando contra a Privinvest e companhia (cujo desfecho foi conhecido na semana passada) - mas nenhum esforço serviu para recuperar a confiança dos mercados externos, resultando num endividamento interno quase insustentável, estimado agora em 14 mil milhões de USD. 

 

Ou seja, Nyusi vai também deixar um legado perverso, uma espiral de endividamento que manterá o país na cauda da pobreza. A questão central então é: ele não podia ter feito melhor? Talvez sim! 

                                                         

Mas sua governação foi um recorte de remendos mal urdidos, um despesismo ocioso e corruptivo e uma contradição insana entre princípios de políticas públicas e a prática no terreno (discurso e prática), como no caso da conservação ambiental, onde ninguém percebeu como é que o Governo aprovou a invasão da mineração de areias pesadas na costa sul de Moçambique em detrimento do turismo; muito menos a ressurreição do monstro obsoleto de Techobanine no meio de um santuário de preservação ecológica no sul de Maputo. 

 

Filipe Nyusi vai certamente engasgar-se no seu discurso. Na verdade, ele não tem nada para celebrar. A Educação está uma lástima e a Saúde pior. As crianças moçambicanas continuam sentadas no chão e a madeira nacional é exportada para o benefício de uma elite rendeira. Os hospitais não têm compressas. Médicos, enfermeiros e professores estão em constantes reivindicações, a começar pelas condições de trabalho. 

 

Nyusi vai citar o Sustenta, mas o desafio a longo prazo da agricultura e da segurança alimentar continuam intactos. Nyusi vai citar seu programa Um Tribunal Um Distrito, mas há cada vez mais moçambicanos detidos em cadeias precárias, com fome e doenças. Esse programa foi mais uma justificativa para a drenagem de fundos do Tesouro e nada que tivesse a ver com a humanização da Justiça em Moçambique. 

 

O mesmo se pode dizer do programa Um Hospital Um Distrito, que essencialmente visava expandir os negócios do seu amigo da Moçambique Holdings, José Parayukem, na sua relação com o Estado. 

 

O que mais dizer? 

 

Ah, Cabo Delgado. Nyusi vai deixar as armas da guerra troando. Seu governo foi uma lástima neste quesito. Andou de negação em negação ao longo dos anos, depois instrumentalizou o conflito para criar oportunidades de renda através do procurement militar e no fim foi se ajoelhar no espertalhão do Kagame, que abraçou a protecção da TotalEnergies como bandeira da sua relevância na geopolítica da segurança a sul do mundo. 

 

Mas onde está o gás? Nada!

 

“Carta” sabe que o projecto controlado pela TotalEnergies está retomando gradualmente suas operações, agora com uma componente humanitária mais consistente, mas nada indica que Nyusi assistirá ao levantamento da “força maior”.  Um grande fracasso político, também neste sentido. 

 

O país de Nyusi é um país de desesperança. A pobreza urbana é tremenda. A qualidade dos serviços públicos vem se degradando velozmente. O nepotismo impera. E o propalado combate à corrupção continua ainda nas boas intenções, tal como mostrou ontem o GCCC, que se agarra em estatística processual de casos ainda não transitados nem julgados para querer mostrar trabalho e sucesso.

 

Nyusi vai cantar hosanas à recente avalanche da PGR contra o branqueamento de dinheiro, mas esta reação penal decorre da demanda externa e não tem nada a ver com vontade endógena. De resto, como noutros casos, a PGR montou uma máquina de comunicação para mostrar o impacto da ofensiva, mas ninguém ainda foi julgado nem condenado. E a presunção da inocência é uma instância a considerar antes de qualquer vitória. 

 

Combate à corrupção? Não, ninguém está interessado. O Governo de Nyusi foi claro nisso, quando recusou ostensivamente a distinção operacional entre pequena e grande corrupção, dizendo que essa distinção não fazia sentido. Só não faz sentido para quem não pretende reformas. Não se combate a corrupção de enfermeiro com a mesma pílula destinada ao lobista de colarinho branco, que controla toda a traficância do colarinho branco. 

 

O próximo incumbente tem muito a fazer neste campo, mas ainda não vimos ideias sólidas sobre como reverter o problema. Mas este é tema para outro debate. Os dez anos de Filipe Nyusi foram um fracasso. Ele fracassou! 

 

Simplesmente isso! Para sustentar nosso argumento do fracasso nyusista podemos elencar vários indicadores. Aliás, já o fizemos nas linhas traseiras. Faltou mencionar a evidência mais pungente: os raptos. Aqui você foi uma desilusão total, Senhor Presidente, um autêntico logro!

terça-feira, 06 agosto 2024 14:11

Já cá não mora ninguém

De que o país vive momentos conturbados da sua história ninguém duvida. Eu ainda tinha alguma esperança, mas neste final de semana ela despencou. E foi num Chapa (transporte público) na rota Baixa-Facim.  

 

O Chapa, que depois de partir da terminal da Baixa com todos assentos ocupados, parou no cruzamento da “Brigada” para levar novos passageiros. Um destes passageiros era um senhor já de idade e com uma vestimenta solene que denunciava que vinha de mais uma jornada dominical com o divino.

 

Depois de ele subir o Chapa, este arranca, e o cota se posiciona no corredor central ao mesmo tempo que passava lentamente o olhar a procura de um assento vago ou de uma alma caridosa que o cedesse.

 

“Pai está com a braguilha aberta”. Era a voz de um dos passageiros que o alertava, na língua ronga, que tinha o zipe das calças aberto. Em seguida, enquanto o cota sentava no lugar cedido pelo passageiro que o alertara, ele responde: “ Não te preocupes meu neto, já cá não mora ninguém!” 

 

Esta tirada do cota foi seguida de uma gargalhada dos restantes passageiros, que até então seguiam o trajecto num silêncio religioso.  Em seguida, e em jeito de uma contra-resposta solidária, o jovem disse que o cota ficasse sossegado, pois a actual situação do país era igual a do seu antigo inquilino.   

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Senhor Júlio Parruque, os negociadores de ruas e terrenos alheios estão de volta no bairro Matola Gare. Há uma rua que acaba de ser vendida, no bairro Matola Gare, ali nas complicadas azinhagas do quarteirão 06. Essa rua não tem um segundo de sossego, nunca há um mínimo esboceto de sorriso nos rostos das famílias que dependem dessa rua para terem acesso às suas casas. Essa rua foi improvisada depois de se vender uma rua principal.

 

A primeira negociata da rua, ano passado, foi enxotada pela presidente Calisto Cossa e os mercadores de ruas levaram sumiço num rufo: a rua ficou livre, a rua voltou a ser rua depois de ter sido tatuada como um quintal. E agora a rua foi novamente vendida. E os negociantes, com um olhar dardejado, respondem a qualquer rosto que lhes põe a vista em cima “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.

 

As estruturas conhecem essa rua, mas ninguém faz nada. Esta, de certeza, é a primeira, de várias ruas que ainda serão engolidas por este grupo. Há gente que já se prepara para ver mais ruas vendidas.

 

Essa rua, que foi vendida, é entrada e saída de diversas famílias, é uma rua que os mocinhos, carregados de cadeirinhas e mochilas, usam como caminho quando vão à escola lá nas bandas da linha férrea. Se calhar, senhor Júlio Parruque, a partir de amanhã teremos de pendurar uma pequena placa a dizer “isto já não é entrada, saída e nem caminho”. O comprador da rua, o segundo, já esteve no local, já viu a rua que será seu quintal nos próximos dias. E a frase de ordem ecoa aos estrondos nos ouvidos dessas famílias “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.

 

Senhor Júlio Parruque, na Matola Gare as ruas são vendidas aos molhos como legumes, outras famílias são arrancadas terrenos e existem outras que são obrigadas a assistir, sem nada a fazer, os seus terrenos sendo comidos por uma fita métrica desses ilustres negociantes. Neste exacto momento que escrevo este texto, senhor Júlio Parruque, há diversas famílias que se preparam para se colarem asas e voarem para terem acesso às suas residências.

 

Ninguém mexe nesse grupo, ninguém coloca um basta a esse grupo, ninguém tira o apetite por essa e várias ruas a esse grupo. Parece que ninguém tem força suficiente para parar esse grupo. Na Matola Gare, eram os ladrões que tiravam a tranquilidade de todos, mas agora é esse grupo que vai arrancando as ruas, esse grupo que vai transformando ruas em poços e minas de moedas.

 

Venderam uma rua, senhor Júlio Parruque. O senhor Calisto Cossa, de forma excelente e corajosa, tinha colocado um basta a esse grupo, mas o grupo ressurgiu e já anda, à socapa, a fazer inventários de ruas para vendê-las. O grupo desce, pé ante pé, a farejar ruas e terrenos para enriquecer. E, agora, vomita a todos na cara a frase “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.

domingo, 04 agosto 2024 11:53

LEITE DE VASCONCELOS, 80 ANOS

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Entre as figuras de grande gabarito literário e intelectual que marcaram o tempo e o destino da Primeira República, o nome de Leite de Vasconcelos é dos que mais se destaca. Era um homem de uma soberba, eclética e monumental cultura geral. Como publicista movia-se por todos os meios de comunicação com um engenho invejável, da rádio à escrita nos jornais, da televisão ao teatro. Era, à época, a maior figura do nosso espaço mediático. Prolífero, fecundo, abundante. Poderia ser ferozmente mordaz, mas nunca deixava de ser afável ou até mesmo cordial. Tinha argumento vívido e sagaz quando polemizava e era um prazer ouvi-lo. Não tergiversava. Era acutilante, mas com urbanidade e elegância. Era facundo. Das vezes que tive a benesse de me entrevistar com ele nunca tive a pretensão de o ombrear na conversa. Escutava-o apenas. Falasse do que falasse, fosse de autores ou livros policiais (de que era um leitor omnívoro) ou de nomes exemplares da literatura universal, ou do país e dos nossos desencontros, era um prazer escutá-lo. Dominava a arte da argumentação. Era fino na análise, quase viperino na crítica. A sua conversa, também direi dele, melhorava o silêncio. Isso é apanágio de poucos.

 

Os seus pais haviam chegado a Moçambique entre os finais da década de 20 e primórdios dos anos 30. A sua família cultivava a primazia de ter os filhos no mesmo lugar. Não obstante a guerra, a mãe, grávida, embarcou para Portugal para o ter em Arcos de Valdevez. Com 4 meses trouxe-o de volta. Mocímboa da Praia, Chemba, Gorongosa marcam a sua geografia infantil e juvenil. Na Beira fundará a Associação dos Jovens de Moçambique. Escusado será dizer que a censura e a proibição irão exercer-se sobre a mesma. Ainda intentaram encenar uma peça de teatro. Debalde.

 

O pai era funcionário na indústria do algodão. Viveu sempre longe das cidades.  A importância da rádio na sua vida justifica-se, também, por esse facto biográfico.  Iria para a cidade prosseguir os estudos nos Irmãos Maristas. O espaço, a liberdade, a felicidade são os acenos do interior. Quando chegou a Portugal, já adulto, ficou chocado com a pobreza e a sua rudeza: viu, pela primeira vez, brancos pobres.

 

Cumpriu, como meteorologista na Força Aérea, o serviço militar entre 1964 e 1968. Estou Ciências Sociais. Regressa a Moçambique. Tem uma breve passagem pelo Banco Standard Totta. Considerava-a uma experiência atroz. A despeito, começa a escrever. Essa fase da sua investida poética está espelhada nos poemas à volta do “ciclo da cidade”. Era o tempo dos cafés e da tertúlia. A contradição entre o jovem branco criado no mato e a cidade revela-se neste ciclo e nesses poemas. Mas também as interrogações mais profundas – se quisermos mais ontológicas – sobre a sua condição social e a realidade política de Moçambique e a sua evolução histórica. Um sentimento de culpa exorcizado na poesia.

 

Em 1969 concorre e é admitido como locutor da rádio. Tivera uma experiência breve no Aeroclube da Beira com um programa da rádio. Aliás desde essa altura até ao fim será jornalista e a rádio será o seu meio primordial. Nesses anos fazia um programa que se intitulava “A noite e o ouvinte”, no qual divulgava a actividade literária de então. É através desse programa que contactará Rui Knopfli e Eugénio Lisboa. Na mesma altura participava, na Associação Africana, nos saraus de poesia. Um grupo de dança e de música, que iria redundar no Grupo João Domingos, animava os espectáculos da Associação Africana. Foi aliás nesta agremiação que conheceu José Craveirinha. Recitava os poemas de Craveirinha, de Noémia de Sousa e de Rui Nogar. Eram subversivos. Leite de Vasconcelos dizia espantosamente bem.

 

Nessa altura também irá colaborar no jornal da Associação dos Naturais de Moçambique, “A Voz de Moçambique”, chegará a ser seu chefe de redacção. Rui Knopfli, Eugénio Lisboa e Adrião Rodrigues faziam a vez do conselho editorial. Foi nessa época que conheceu (também) António Quadros, que irá animar, com Rui Knopfli, a publicação dos cadernos de poesia “Caliban”, iniciativa eivada de subversão. Por vezes, encontrava-os no café Djambo. João Pedro Grabato Dias (um dos heterónimos de Quadros) tem poemas que falam abundantemente dessa tertúlia, no Djambo, e da cidade alvoroçada. Leite de Vasconcelos ia lá ouvir os mestres. Um dia, Knopfli pede-lhe colaboração para “Caliban”, o que virá a ser uma circunstância biográfica e poética de grande significado.

 

Em 1972 proíbem-no de trabalhar na rádio. A sua voz é banida. Ironicamente será esta mesma voz que dois anos depois irá dar expressão à senha do 25 de Abril em Portugal. Vai para Londres, contacta a Frelimo, queria ir para a Tanzania juntar-se à Frente. Aconselham-no a ir a Portugal. Lá seria mais útil à causa. Trabalha, inicialmente, no “Expresso”, semanário fundado por Pinto Balsemão e alguns dos seus companheiros da chamada Ala Liberal, que estava nos antípodas do regime. Ele está no escol de jornalista precursores do jornal. Não muito tempo depois, com um angolano e um guineense, criam, na Rádio Renascença, um programa chamado “Limite”. Manuel Tomás que saíra com ele de Moçambique participa da aventura. Como o nome denuncia queriam experimentar os limites da censura. O programa tinha grande audiência, o que levou o Movimento das Forças Armadas a contactá-lo para passar a senha do 25 de Abril. A voz que lê os versos da canção de Zeca Afonso e que está na origem do desencadeamento da revolução é a de Leite de Vasconcelos.

 

A Frelimo pede-lhe para permanecer em Lisboa e vai trabalhar para a delegação do Rádio Clube de Moçambique. Ficará, entre Agosto de 1974 e Abril de 1975 quando, finalmente, retorna a Moçambique e para a Rádio Moçambique, sucedânea do Rádio Clube. Vive intensamente a utopia revolucionária, como repórter, como cidadão. Entre Maio e Junho de 1975 acompanha o trabalho do então Primeiro-Ministro do Governo de Transição, Joaquim Chissano, na preparação da independência. Contacta vilas, povoações, a população e o chamado país real. Acompanha, ulteriormente, o Presidente Samora na célebre e triunfal viagem do Rovuma ao Maputo iniciada em Dar-es-Salaam. Reporta a independência. Entre os seus companheiros da Rádio está outro poeta, Gulamo Khan. Vivem, exultantes, esses momentos tremendos de profundas mudanças.

 

No número duplo 3 e 4 dos cadernos de poesia “Caliban”, em Junho de 1972, aparecem 3 poemas de Leite de Vasconcelos (“Sociedade de consumo”, “Sem causa” e “Sensualidade”) ao lado da colaboração poética de José Craveirinha, Orlando Mendes, Sebastião Alba, Glória de Sant’Anna, Frey Ioannes Garabatus, Jorge Viegas, entre outros. “Pelo entardecer / o sol será rubro e fulgurantemente marítimo / iremos mais sós que nós / no périplo costumado dos lugares permitidos / fazer amor com as montras e os cartazes / revestidos da passividade orgásmica / no passeio dos tristes”. A cidade, um dos seus temas obsessivos, na primeira fase da sua criação, assume já um lugar central na sua poética. Dará corpo, anos depois, ao “ciclo da cidade”. Poemas onde encontramos “pensamentos enlaçados / mãos afastadas / e na testa o mesmo vinco de ferocidade”. A cidade estava, por assim dizer, arraigada à sua poesia. Como a morte ou o amor. Sobretudo o amor sensual, táctil, corpóreo, inteligível e sensível.

 

Em “Sensualidade” escreve: “À porta da cantina bebia odor e seios pequenos / que passavam adivinhados ou nus nas muanacages / e segregava árvores e sombras onde deitá-las comprimi-las / iniciá-las no meu mistério de frio e de suor”. O lirismo amoroso aqui na sua indisfarçável sensualidade. Muitos anos depois, Leite de Vasconcelos escreverá alguns dos mais belos poemas da nossa lírica (“De imaginar Somente”): “Amo-te na rua quando passas / não pelo rosto / não pelas graças / que vão contigo quando passas” (…) “Amo-te na rua Rosa Ana Helena / quando passas / deixas (devagar despida) / imaginar somente Rosa Ana Helena” em “Irmão de Universo”.

 

Em Outubro de 1985 o poeta publicou, nas páginas da “Gazeta de Artes e Letras” da “Tempo” o poema “Lamento”. Lembro-me da impressão que me causou aquele belíssimo poema. Aliás, em Janeiro de 1987, num texto fatalmente juvenil (“A viagem da nossa poesia”) faço uma referência ao texto e ao espanto que então me causara. Leite de Vasconcelos, então Director Geral da Rádio Moçambique, onde eu debutava na profissão, chama-me à conversa e trata-me como seu igual. Não tenho sequer 20 anos. A minha admiração por ele, que já era bastante, ensoberbece.

 

“Lamento” é, seguramente, um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Na época encontrei alguma alusão estética ao poema “Namoro” de Viriato da Cruz. Leite de Vasconcelos não enjeitou a confinidade poética entre os dois textos, ambos de uma espantosa beleza e raro lustro. Não resisto a citá-lo na íntegra: “Cantei-te serenatas em noite de cetim / com timbilas e violinos / preparei-te um jantar de ushua e lagostim / com cebolas e pepinos. // Falei segredos a búzios da Macaneta / e mandei-tos pelo correio / aluguei à semana o estro de um poeta / e fiz um verso à curva do teu seio. // Colhi flores de madrugada nas Barreiras / abri uma machamba em Matutuíne / disse-te amor em trinta línguas estrangeiras / passeei-te no bazar em Xipamanine. / Comprei um anel de pêlo de elefante / um disco de sungura / um sofá, uma cama e uma estante / um fato azul e um garrafão de sura. // Levei-te às farras das noites de sábado. / À sombra das acácias / contei-te lendas de um tempo passado. / Deixei de ter notícias / e o fluir da tua ausência não se estanca. / Namorado, só, itinerante. / Busco-te nas ruas, encontro-te na Franca / perdi-te em casa dum cooperante.”

 

Bastava ter escrito este poema para Leite de Vasconcelos pertencer ao panteão dos grandes poetas. É, indubitavelmente, um dos meus poetas electivos. Escreveu tantos outros. A sua grandeza não lhe sobrevinha apenas dos textos líricos. Os seus poemas mais reflexivos ou até ontológicos são igualmente exemplares. Um dos mais belos, “Receita para uma infração" (lembra “Receita para se fazer um herói” de Reinaldo Ferreira): “Toma nas mãos uma manga / dessas que   verdes  o Knopfli sente / na infância do palato // Tens cinquenta anos / dois rins em greve até à morte / e um que pertenceu a alguém que desconheces / e por morto não soube a quem doou / a faculdade de mijar ainda”. Ou “Telegrama para Manuel Bandeira”, ou “O débito”, ou tantos outros.

 

A publicação de “Irmão de Universo” (1994) levou o tempo das nossas vicissitudes. Mas veio estabelecer um dos mais importantes revelados na década de 70, a geração à qual pertence Heliodoro Baptista, que tinha a sua firme admiração. Aliás, numa entrevista a Michel Laban afirma: “Penso que a literatura é uma literatura ainda em formação e que nós temos, neste momento, na poesia, uma voz que eu considero muito importante – além do Craveirinha, obviamente –, que é a do Heliodoro Baptista”.

 

Depois de um longo interregno a poesia veio-lhe numa enxurrada. Nascem os poemas que irão dar corpo a “Resumos, Insumos e Dores Emergentes” (1997) publicado após a sua morte. Escreveu teatro “As Mortes de Lucas Mateus” (2000), argumento para um filme “O Lento Gotejar da Luz” (2001) e não chegou a ver as suas crónicas coligidas em livro: “Pela Boca Morre o Peixe”(1999). “A Nona Pata da Aranha” (2004) revela-nos um contista primoroso. A cidade, o amor e a morte são os seus temas obsessivos. Todos os grandes poetas, afinal, têm os seus temas recorrentes.

 

Entrevistei-o em Julho de 1990 (eu tinha 23 anos e ele justamente o dobro da minha idade, 46 anos) e disse-me, nessa longa conversa, quando o interroguei sobre as suas influências, que se considerava próximo da poesia de Craveirinha, não formalmente, “mas pela atitude poética que se espelha na sua obra”, disse-me ainda que tinha “uma dívida para com o Rui Knopfli e com a revista “Caliban”. Outras referências? “Outros dois poetas com dívida importante são o António Gedeão – mesmo formalmente há algumas influências na minha poesia – e o Jorge de Sena. Mas depois há tantos outros.”  Fernando Pessoa, Luís de Camões.

 

Falámos sobre o país, o drama da morte de Samora Machel, o papel dos intelectuais ou a ausência dele, da autocensura que muitos jornalistas se auto-impuseram, da guerra que nos corroía e desgraçava e quando lhe perguntei que aspecto destacaria nos 9 anos da nossa independência fez o diagnóstico que ainda hoje nos persegue: aviltou o proselitismo.

 

Não viu o melhor do seu labor publicado. A 29 de Janeiro de 1997, Teodomiro Leite de Vasconcelos, nascido a 4 de Agosto de 1944 – passam hoje 80 anos – emigrou para o páramos dos eleitos. A sua voz ainda reverbera em alguns de nós, pese embora o esquecimento e o descaso a que votamos alguns dos nossos melhores seja a franquia dos néscios.

 

Leite de Vasconcelos, poeta, contista, cronista, argumentista, dramaturgo, jornalista, locutor, actor, publicista, homem de rádio e de televisão, polemista, homem de uma grande cultura e de um gabarito incomum, é, definitivamente, uma das mais belas vozes da poesia moçambicana, uma das suas plumas mais esplendentes, uma das suas mentes mais cintilantes e estimulantes, irrefutavelmente a maior figura mediática dos primórdios da nossa independência.  

 

Lisboa, 4 de Agosto de 2024

sexta-feira, 02 agosto 2024 07:26

JOSÉ PASTOR, 70 ANOS

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José Pastor, de seu nome José António Pastor Duarte Silva, nascido em Nampula, a 29 de Julho de 1954, foi poeta, contista, encenador, activista cultural, professor. Um homem dilacerado pela paixão pela vida e pela devoção aos amigos. Poeta solitário e, paradoxalmente, solidário. Encontrou na morte, aos 39 anos, uma espécie de redenção. Quase trinta anos depois do seu gesto extremo, o livro “Com a Saliva Mais ao Sul” subtraiu-o do silêncio.

 

A geografia da sua breve vida resume-se a Nampula, Maputo, Xai-Xai e Cuba. Assinou também como Si Silva e Broeiro Duarte São Pedro. É quase tudo do muito pouco que se sabe desta personagem quase elusiva que passou, como um cometa entre nós e cuja poesia permaneceu desconhecida ao longo de décadas. Somos pródigos no esquecimento e na desmemória, no descaso e na displicência. Assim tratamos os nossos poetas.

 

É em meados dos anos 80 que faz publicar poemas e contos em páginas literárias, sobretudo na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta e mítica revista “Tempo”. Posteriormente, os seus textos irão corporizar algumas antologias de poesia e de conto dedicadas à celebração da literatura moçambicana.

 

Numa entrevista, recolhida no livro “Fazedores da Alma”, de Marcelo Panguana e Jorge de Oliveira, dado à estampa em 1999, José Pastor, que proferiu as palavras que servem de título e mote ao volume, narra um episódio que está na origem da destruição da sua produção literária e que seria aquilo que antecederia o seu suicídio. À pergunta sobre este seu gesto extremado, o poeta responde e eu cito: “Isso aconteceu-me quando um dia decidi: vou suicidar-me. Então preparei tudo, com um ritual dramaticamente bem preconcebido. Foram destruídos poemas, contos, cartas e fotografias. Morreu uma parte do passado. Nasceu uma fogueira. A memória ganhou com tudo isso. Organizado o plano, decidi dormir pela última vez. Acontece que me levantei de manhã muito bem-disposto e ri-me da ideia do dia anterior.”

 

Esta entrevista não está datada, pelo que só posso intuir que ocorreu muito antes de 26 de Agosto de 1993 e era o prenúncio de que o poeta ir pôr termo à sua vida. Parecia ter uma vida contagiante, empolgada, arrebatada, culta e inteligente. Na verdade, vivia atormentado. Os seus tumultos estavam, afinal, como sintagmas nos seus escritos.  

 

O tema do suicídio, que aparece nesta entrevista, não era inédito. Os seus amigos sabiam-no, pelo menos os mais próximos, com alguns dos quais ele partilhava as suas angústias, marcadas a cada página de “Com a Saliva Mais ao Sul” que exprime os seus tormentos e anuncia aquele epílogo trágico da sua vida.

 

Perguntado, na mesma entrevista, se a ideia de morte não o assustava, o poeta contrapõe: “Amo demasiado a vida, vivo-a com tanta liberdade e com tanto gozo, que temer a morte, algo absolutamente normal para um belo fim de percurso, seria, no mínimo, ridículo, e indigno para uma pessoa que amou a vida até à exaustão.”

 

Era um homem inquieto, as palavras brotavam-lhe das mãos, ocultavam o sol que ele cantava, com a espessa neblina que lhe ia no interior do seu ser, na sua alma, para usar um vocábulo que lhe era caro. Escrevia sobretudo poemas de amor. De um amor apolíneo quase sempre, mas num tormento dissimulado. Um amor dilacerado e dilacerante.

 

Era solar e lunar, impetuoso ou recolhido, expressivo e resguardado, assombrado e assombroso. Gostava dos seus amigos. Queria-os na sua solidão habitada. Sobretudo na Matola, à sombra das suas árvores. Amava os livros, falava abundantemente de escritores, comerciava leituras. Cuba era a sua segunda pátria. Era fervorosamente cubano. Fidel e a revolução tinham nele um implacável defensor.

 

Publicou muito pouco e o pouco que deu a conhecer eram textos brilhantes. O poema que escreveu sobre o massacre em Maluana é de uma beleza virulenta, é pungente e um dos marcos da nossa lírica. “A pessoa de Josefane ficou no massacre de Maluane, mas seu corpo veio a Maputo para pôr velas.” Este brutal, violento e belo poema não está no livro. Como não estão uma data de poemas que reclamam um resgate.

 

O livro “Com a Saliva Mais ao Sul” está dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Respirar do Fogo”, ocupa quase dois terços da obra, recolhe poemas de amor, de um amor arrebatado, incessantemente carnal, experiência de liberdade e gozo, vocábulos que ele usa na entrevista acima citada e no registo dessa fruição quase sempre desesperada, nessa solidão imperecível, nessa busca do ser amado, nesse encontro e nessa perda, nesse júbilo e nesse esmorecimento, nessa alegria e nessa consternação, nessa euforia e nesse desalento, muitas vezes, quase sempre, em belos versos, pungentes versos, melancólicos versos.

 

“Quando no chão da nossa

intimidade sulcamos a terra.”

 

Começa assim o livro que fala desse “Outono que desconhecemose “vive de amores possíveis”, mas “em a sua própria mitologia / a sua lógica da carne, do sangue, / do sexo e da lágrima”.

 

Poesia, magia, solidão, tormento: “Hoje faço-me o favor / de fazer um poema atormentado”, diz o poeta.

 

Arrebatamento, nostalgia: “Nunca mais foste tu.” Tristeza, sempre a tristeza: “Hoje o dia está tão triste, / tão triste como têm sido / os últimos dias”. Ou: “Há dias em que a tristeza me invade sem pedir licença.” Nessa poesia, diria o autor, “nocturna e esbatida”, onde se acrescenta: “sou triste porque lavro a minha dor”. Poeta solitário sempre: “Estou só e em casa.” Ou por outra: “Desperto sempre de madrugada / e a tristeza volta com / seu veneno.”

 

Apesar do título nos remeter para o “fogo”, esta é uma poesia lunar e não solar. É uma poesia onde se canta o abandono e a solidão, o inverno, o nevoeiro e o dilúvio, a morte, sempre a morte a rondar os versos e o poeta: “Quero morrer deitado  / porque sempre vivi de pé.”

 

Aqui está o testamento e o testemunho do “náufrago delirando na jangada” e sempre o canto do “amor possível”: “No teu corpo negro / lavrei o suor, / as minhas mãos rociaram /um perfume / natural e afrodisíaco / e bebi da intemporalidade do teu sangue /africano por excelência.”

 

Esse amor, cripticamente másculo, virilmente arrebatado, visceral e cantado em versos como estes: “E de repente, os músculos ficaram / tensos, as veias em relevo, os olhos / em teias de / lagrimas, e teu áspero  /cabelo passou pelos meus ombros.”

 

Ou estes versos: “de guerreiro à conquista / do meu corpo”, “Teu corpo tem a força / telúrica da Terra”, “Até quando o teu regresso / ao meu corpo selvagem”, “Roçar do teu corpo possante”, “Beijos, gemidos, e todo o suor, / órgãos genitais entrechocando-se.”

 

A perda está sempre presente, a ausência do ser amado, a saudade e a nostalgia, a melancolia. Mas também o desprendimento desse “amor possível” (di-lo obsessivamente) no qual o poeta exalta o facto de “nunca teres deixado / que o tédio fosse a principal neblina / nas nossas vidas”.

 

É dessa “respiração do fogo” do “Universo numa explosão/ de átomos dissimulados”, desses “corpos viris” e dessa “morte que agora me chama”:Vou embora, amor. Só tenho / pena de ti. As asas da morte / não são tão medonhas como se dizem.”

 

Há sinais muitos claros dessa morte anunciada. “Em breve serei a simples / cinza de um sonho (…) Largo a vida, tudo o que fiz, / o fardo da dor e da solidão.”

 

Muitos destes versos são a cartografia dessa busca do silêncio e da morte, desse desespero e do seu inevitável epílogo: “Falta pouco para a grande decisão, / para que haja uma explosão de noites / dentro de mim, para que sangrem as flores / que me fazem respirar, para que a seivaque me alimenta seja a da árvore abatida.”

 

Estes versos são de uma violenta beleza. São pungentes e belos, como é aliás a grande arte. E mesmo no fim desta primeira parte, ou primeiro livro, anoto ainda estes versos: “Não me esqueço que sou apenas / uma tintilação transparente / da grandiosidade da criação, / entre os benefícios e os custos / não reclamo glórias e alvíssaras.”

 

A segunda parte – “Com a Saliva Mais ao Sul” - é um longo e fragmentado poema e não se exonera do seu registo lírico, mas aqui está o poeta mais onírico. Provavelmente texto mais ontológico, mais ensimesmado, mais absorto em si, mais reflexivo, mais indagador e mais perturbado e perturbante, mais sombrio e desesperado. Mas sempre o amor. O amor desesperado. Sempre a morte. A morte inexpugnável. “Se é um erro exteriorizar-se  / a dor profunda que se sente, / é um ferro que nos fere / quando assumimos o brutal silêncio.”

 

Para além do combate ao silêncio, a obsessão da morte ronda o poema: “Se sofro é por uma cama,

um sono descansado, / até que uma campa merecida / se rodeie de ciprestes.” Poema ominoso, poesia ominosa. Atingida pela “rugosidade das pedras” ou pela “fragilidade da vida”, fissurada por essa “fantástica melancolia”: “Porque sou um rio / decidido a lançar-se ao oceano / na procura de formas de suicídio / mais marítimas”.

 

Escreve este poeta sombrio, taciturno, mergulhado na obscuridade, que procura a “simbiose de Marte e morte” e que reconhece: “Da minha actividade vulcânica / nasce um mar sombrio / sequioso de sequoias.”

 

Nessa “procura do Norte no breu”, recorrente este discurso do suicídio: “De gládio na mão, / não / esquecerei um gladíolo de bolso / para o redobro da força /no possível suicídio.” E logo a seguir o poeta diz: “Conheço a dor da inquietação irremediável.” Os versos embora taciturnos são pungentes: “E quero um enérgico palpitar nas mãos e nos pulsos, / lançar naus ao sangue tropical no Inverno /e ainda: o fragor dos dedos acenando / o terno adeus final, /o mais compreendido entre os humanos.”

 

Poesia “a coberto da névoa densa”, como escreve o poeta. Poemas de amor e de desespero, como disse e repito. Nos quais cabem ainda estes versos que parecem um apelo: “e nos teus fortes braços sinto-me seguro.” No entanto, acrescentará a seguir: “Amor, na Terra somos amantes a abater!”

 

Parece a expressão de uma renúncia, de uma resignação, de uma cedência. Por isso mesmo diz adiante: “Não nos desviemos definitivamente/ das rotas do sábio silêncio.” Este poema, este longo e sensual poema, é também por isso um poema desse amor visceral, impossível direi eu, inscrito num mapa de melancolias: “Teu corpo dócil à nudez / no estio calmoso do trabalho da erecção.”

 

Versos atravessados por esse amor viril, másculo, vigoroso: “Dá-me do teu beijo fatigado, /e dos destroços da espuma /provocados pela ancoragem.”

 

Poesia que não recusa o desalento, a angústia, a descrença, o desânimo. Longo poema atormentado, que fala de uma prostração, que não esconde a derrota, que ancora na desesperança, no esmorecimento e na tristeza. Essa mágoa e esse padecimento estão assombrosamente inscritos nos últimos versos:

 

“ Quero atravessar o deserto,

o desastre.”

 

Proclama o poeta no seu desconsolo final. À beira do seu infortúnio, perante uma dor irremissível. “ Negrejo, e esta é a remendagem da alma. / Vejo-me espelhado num múrmuro / abismo ignorado.”

 

Assim termina o livro, tão belo quanto dilacerado, tão profundamente consternado, tão atravessado pelo desconsolo, pela dor, pela angústia, tão condoído e, provavelmente, sem indulgência, tal foi o destino do poeta que seguiu os sinais aqui cartografados e se matou, talvez buscando na morte essa redenção, essa expiação, essa absolvição.

 

Este é um livro tremendo de um poeta espantoso, de uma alma formidável, de um homem surpreendentemente excepcional, com uma ânsia de viver esplêndida, ainda que isso pareça uma contradição na sua breve e portentosa vida.

 

Este belo e dolorido título “Com a Saliva Mais ao Sul”, devolve-nos um admirável poeta, assombrado e assombroso, no seu desencanto e no seu desespero, no seu júbilo pelo amor visceral que viveu, na sua atracção pelo abismo e pela morte, nesta cartografia de um suicídio anunciado em sinais premonitórios, neste rosto elusivo e arisco por vezes, desenhado nestes versos com a subtileza e a elegância que fazem dele uma voz exemplar na literatura moçambicana e que aqui se cumpre celebrar, nos 70 anos do seu nascimento, depois de décadas em que esteve proscrito no silêncio e no esquecimento.

sexta-feira, 02 agosto 2024 07:15

JULIUS KAZEMBE, 70 ANOS

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Engoliram luas as crianças de Changara.

Os olhos delas são pássaros tristes sem voo

      que no desespero da fome acumulada

comem estrelas como se fossem grãos de milho.

       Quando as sementes secaram nos campos

e o sangue secou nas veias dos rios

     e a seiva secou nas veias das plantas

e o sol secou os celeiros da aldeia,

       serpentes famintas silvam em volta

do peito cindido. Uma toupeira chora

      ao frémito dos embondeiros. Grave,

arde sobre a erva amarga a dor:

        Das luas engolidas pelas crianças

quantas tardará a ecoar nos jornais?

 

(“Changara”, Julius Kazembe)

 

Julius Kazembe é, indubitavelmente, um dos mais importantes poetas do pós-independência, da geração que esplende nos anos 80, menestrel de grande quilate, com dicção e timbre próprios. A sua produção, no entanto, é escassíssima, avara e está dispersa por jornais, coligida em duas ou três antologias.  É, também, por abulia própria ou incúria nossa, um dos menos conhecidos e celebrados, entre as presunçosas glórias domésticas e o fogo fátuo em que estas (ufanas vozes) se consomem exaustivamente.

 

As suas efemérides literárias resumem-se a publicações de um punhado de poemas na página literária do “Diário de Moçambique”, “Diálogo”, sob o magistério de Heliodoro Baptista, ou na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta revista “Tempo”, sob a batuta de Luís Carlos Patraquim. Tanto um como outro são nomes decisivos na sua biografia literária.

 

Na sequência de uma quezília familiar, sai de casa muito cedo e é acolhido pelo poeta Heliodoro Baptista, que não só o acoita, como o industria literariamente. Baptista escolhe uma centena de títulos de obras-primas universais, sobretudo no domínio da ficção narrativa (romance) e impõe-lhe o repto da leitura. Acresce que será aluno de Lídia Jorge, que se revelará, nos anos 80, como uma prodigiosa escritora, autora de romances, contos e poesia, hoje consagradíssima. O mote estava dado.

 

Por indicação de Heliodoro, acompanha o contista Carneiro Gonçalves e é companheiro na viagem que resultou num trágico epílogo a 20 de Janeiro de 1974. O autor de “Contos e Lendas” deveria seguir, depois da capital moçambicana, para Lisboa e ali integrar a redação do “Expresso”. Ao jovem poeta, à beira dos 20 anos, o desconsolo de uma frustrada tentativa de se juntar à Frente de Libertação.

 

No título emblemático que foi “A Tribuna”, então dirigido pelo poeta Rui Knopfli, irá integrar a sua redacção, na companhia de Mia Couto, Luís Carlos Patraquim e Ricardo Santos. Aliás, Couto, Patraquim e Kazembe irão praticar os primeiros tentames da crónica literária, sobre o quotidiano, experiência que se verá consagrada, nos anos ulteriores, por outras caligrafias que vão estabelecer o género entre nós. Posteriormente, integrará o grupo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Estamos já imersos na revolução e cada um deles experimenta o entusiasmo, os arroubos, as demandas, as questiúnculas, as contradições, a mofina daqueles tempos.

 

A Beira, a sua Beira natal, ficara para trás. Terá, depois do jornalismo, uma passagem pelo Ministério do Comércio Interno, viverá de traduções nos ominosos anos 80 e trabalhará, como funcionário local, para o FNUAP. Uma importante passagem pelo Zimbabwe, outra pelos Estados Unidos, onde se vai doutorar em Sociologia e, depois, o estabelecimento em Pretória, onde leccionará na Universidade, também subscrevem as etapas da sua vida.

 

A sua pátria literária, no entanto, será sempre a Beira. Bebera do mesmo fino de Heliodoro Baptista, que tendo nascido em Gonhane, é um poeta beirense. Ou dos nomes mais insignes da nossa poesia, ali nascidos, como Mia Couto, Filimone Meigos, Carlos Cardoso, Miguel César, Simeão Cachamba, Bahassan Adamogy, Adelino Timóteo, ou António Pinto de Abreu (este, tendo visto a luz em Chimoio é, indubitavelmente, das mesmas águas do Chiveve). Aqui está a sua linhagem. Simeão Cachamba, pouco antes de morrer, no prefácio e na chancela do livro “Mussodjy”, de Bahassan Adamogy, acena à Geração Diálogo, em homenagem a estes nomes – acrescente-se o nome de Elton Rebello, nascido em Vilanculos, mas criado literariamente nas mesmas águas – que redigem páginas importantes nos armoriais da nossa literatura. Ora, todos eles, à excepção de Kazembe, tiveram a sua obra redimida em livro.

 

Quando, Fátima Mendonça e eu, organizámos a “Antologia da Nova Poesia Moçambicana”, demarcando-a a partir de 1975 e escrutinando a partir daí a produção que ocorrera neste espaço geográfico, político e cultural chamado Moçambique, num tempo em que era ainda escassa a publicação em livro de muitos dos autores antologiados, socorremo-nos do que estava na imprensa literária e de originais que muitos dos poetas acederam confiar-nos.

 

De Julius Kazembe escolhemos sete poemas todos eles publicados na então “Gazeta de Artes e Letras”, entre Setembro de 1984 e Outubro de 1988, designadamente: "O Girassol”, que começa com um verso belíssimo: “O brilho inteiro das galáxias”, que poderia ser o axioma do seu labor poético; “Changara”, outro poema espantoso, aliás encima este texto: “Engoliram a lua as crianças de Changara”; “A Teia”, que não desmentia o estro do poeta: “Dormimos versos cercados de cal”; “O Espelho dos Magos”, dedicado a Heliodoro Baptista; “A Musa Prostituída” (dedicado a Luís Carlos Patraquim); “Eros” e “Adiemos os brindes para mais tarde”. Não deveria haver muito mais no seu bornal. Muitos destes poemas tinham sido publicados na “Diálogo” também.

 

Segue-se-lhe, então, um longo silêncio. Para além do caso de Brian Tio Ninguas, pseudónimo do jornalista Baltazar Maninguane, que morreu, aos 25 anos, em 1987, poeta que permanece inédito em livro, Julius Kazembe volta a ser o único poeta que não terá a sua poesia chancelada em livro. Refiro-me, claro está, aos que se revelaram no pós-independência e que constavam da nossa antologia. Todos os outros, em vida ou postumamente, tiveram as suas obras impressas em livro.  

 

Por apatia do poeta ou omissão nossa, a verdade é que o seu nome se tornou invisível nos certames onde se apregoam, afanosamente, pressurosos nomes e se consagram glórias precipitadas. No entanto, estamos diante de um dos mais importantes poetas revelados no pós-independência, apesar da sua avara produção. Kazembe, não tenho dúvidas, pertence à estirpe dos eleitos. É daqueles poetas raros, cujo estro é capaz de imagens e metáforas surpreendentemente belas e poderosas. O poema “Changara”, que cito acima na íntegra, é caso flagrante. Mas toda a sua escassa poesia é assim: depurada, decantada, burilada. Há ali um “labor limae” (trabalho árduo, paciência, disciplina), há ali escrutínio e oficina, há ali uma cadência e uma musicalidade. Quando o ouvimos dizer, o que Kazembe faz primorosamente, percebemos o seu trabalho elaborado com a palavra e a sua intuição melódica. Ele é um artífice da palavra. Um perfeccionista.

 

A poesia, a verdadeira poesia, é isso: alegoria, imagem, tropo. Metáfora. Um grande poeta é aquele que é capaz dessas imagens poderosas e surpreendentes: “brilho inteiro das galáxias”, cito-o de novo, ou, no mesmo poema, capaz destes versos: “um barco é uma faca que rasga / essas dunas cheias de sortilégios”. Ou quando diz ainda: “a espantosa liquidez / das suas coxas / somos peregrinos / submissos” no poema “A Musa Prostituída”. Ou, no mesmo poema, quando escreve este verso: “com o seu mijo ictérico”. Isto é de um eleito.

 

Poeta capaz destes versos sumptuosos: “quisera ter as mãos que tem a água / para quando vertido sobre ti / te permear até ao último favo / contigo trançar um cesto de vime”. Isto é de um grande poeta. O mesmo que lhe adivinha “o tropel antigo dos fuzis”. Aliás, os fuzis que espantam “os fulvos pássaros da nossa infância” (outro verso lapidar) atravessam, subliminarmente, toda poesia de Julius Kazembe. Lembram aquela “Alegoria” de Heliodoro Baptista: “Em Inhaminga, meu amor, / estão as armas apontadas para o céu / mas só há pássaros”. Isto é brutal, isto belíssimo, isto é assombroso.  

 

Julius Kazembe condói-se não só com as crianças de Changara. É capaz de nos alertar do medo que trespassa o “território de algozes / sitiado por veraneantes / tubarões sem pergaminhos / a tecerem contas de piolhos / de cócoras sob os autoclismos”. Poeta socialmente atento: “Venho de um continente / de transmigrados de calamidade / em calamidade / com meninos que morrem / desapercebidamente / no dorso das suas mães / a caminho dos centros / de emergência da cruz vermelha”. (“O Espelho dos Magos”).

 

Num belo e pungente hino à Beira, poema justamente assim intitulado, que, depois de muitos anos de silêncio, houve por bem publicar, aqui há meses, Julius Kazembe volta a ser acutilante: “E a chuva de cada Idai / só reflutua valas e / fantasmas de outrora”. Nestes versos fissurados ou injuriados, o poeta interpela-se e interpela-nos com uma virulência lexical: “Vagalumes vagabundos / assombram a noite / no matagal da Manga, donos / escarnados ao relento / sem lápides nem epitáfios. / Ainda os há por remir?”. O poema termina com estes versos: “O farol do Macúti plissa / o mar e os ventos da noite, / talvez lampeje em surdina / sinais dos náufragos da terra / onde jazem as nossas placentas”. Isto é de uma beleza aterradora e de uma violência imagética e poética. É, no fundo, o glossário dos nossos naufrágios ou o dicionário das nossas ruínas, das nossas quedas e dos nossos soçobros.

 

O poeta Julius Kazembe persegue, na sua escassa e belíssima poesia, estes “sinais dos náufragos da terra”. Tenho notícia da sua escrita recente e verifico para além do seu alto quilate, do seu gabarito, do seu jaez e da sua perfeição, da sua voz grave, profunda, inquieta e inquietante, que percute ainda encrespada ou “desdobrando-se em arco-íris / para a morte sobrevivida / entre os gomos do canto”. Mesmo quando, “sem darmos por ela, o fermento / destas lágrimas de terebentina / entrança já tatuagens de alento / para uma teia mais pura e cristalina” (“A teia”, esse lancinante aceno ao irmão Oswaldo). O poeta continua obstinadamente avaro, escasso, valioso.

 

Julius Kazembe é, a seu modo e no seu tempo, um grande poeta, de epifanias e de cintilações, de lampejos e de sopros, encarnação rara de um estro igualmente raro, dono de uma profunda e única voz, por vezes sussurrada ou até ciciada, com uma dicção própria e equipada de poderosas imagens, com um timbre seu, onde a busca das palavras se acasala à música, ao som e à melodia, numa admirável melopeia, o que faz dele um dos maiores poetas moçambicanos da minha geração (à falta de melhor termo) e um dos menos conhecidos, celebrados ou festejados. Hoje, Júlio Fernando de Sousa Júnior, de seu nome civil, nascido na Beira, Sofala, a 26 de Julho de 1954, faz 70 anos e eu aqui, na minha persistente altercação contra o descaso e a desmemória, contra a amnésia e o esquecimento, faço-lhe esta saudação de amigo, admirador e seu mais novo.

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