Primeiro não passava de uma hipérbole: “Chuva de Afetos”, para designar o espetáculo que se queria único, íntimo, simbólico e solidário. Stewart Sukuma celebrava 40 anos de carreira, dentro de um movimento iniciado em 2022 numa série de digressões e iniciativas sobre meio ambiente, cidadania, igualdade de género e direitos humanos. Depois, no terreno, Galeria do Porto de Maputo, no dia 30 de março, veio a apoteose, indubitável, com a chuva e os afetos reais a vincarem o exagero. A energia extasiou a plateia que mesmo ameaçada pela chuva não abandonou o espaço.
Na verdade, não foi exatamente um concerto. Foi uma história de vida, uma rapsódia de canções emblemáticas que ainda ecoam no imaginário dos seus fãs. E foi isso que tornou o evento emblemático. A seleção dos artistas convidados, a união de artes, as performances, o espaço, o dia, a hora, as luzes, o som, o alinhamento das músicas… um espetáculo montado com rigor e cuidadosamente coreografado e com reações positivas.
Stewart Sukuma ganha, todavia, nesta roda artístico-musical pela sua história, pela idade, pela persistência. Conhece o seu público e, aos 40 anos de carreira, já sabe o que exatamente esperam, detestam e/ou gostam. Por isso, como “divo”, conseguiu colocar a multidão em devoto, desde o primeiro minuto do show, numa clara observância física e emocional da Terceira Lei de Newton. Foi assim na interpretação de “Tingalava”, “Olumwengo”, “Wulombe”, “Why”, “Moçambique”, “Felismina”, “Male”, “Ezamany kim’bediwa”, “Xitchuketa Marrabenta”, “Caranguejo”, “Vale a Pena Casar”, entre outros temas.
Facto é que não é a primeira vez que Stewart consegue controlar o seu público, colando-o a dançar, a cantar e/ou a interagir sempre que necessário. A sua versatilidade permite; reinventa as suas canções, envolve gerações e mistura sempre elementos novos como forma de inclusão artística. No sábado, por exemplo, a dramatização e a dança, o rapper, o gospel e o afro jazz formaram uma unidade temática que criaram uma nova atmosfera nas músicas participadas por K9, Nelton Miranda, Nandov Matsinhe, May Mbira, Sizaquel Matlhombe, Otis, Lenna Bahule, Valdemiro José, Alfa Thulana, Deotado Siquir, Xixel Langa, W Tofo, e outros.
São nomes e elementos que se destacam pela sua qualidade. Cada um tem um percurso artístico cujos anos podem ser avaliados em função dos resultados da forma como se relacionam com essa arte. Para Xixel Langa, por exemplo, aplica-se a máxima do filhinho do peixe. A sua entonação é de arrepiar e os seus passos uma intensa ousadia.
Ao Nelton e Otis à máxima do vinho, quanto mais velhos melhor. A dupla W Tofo dispensa comentários, pois, como sempre, não deixa espaços para defraudação. E é o mesmo que se diz da Banda Nkuvu, agora mais vigorante, energética e madura. E tem sido assim os últimos anos, em atuações dentro e fora do país.
Em quase quatro horas do show, as energias foram aumentando, música após música. Outros que também atuaram no sábado são os meninos do Coro dos Little Singers da Escola Portuguesa de Moçambique – Centro de Ensino e Língua Portuguesa. A presença destes alunos inseriu-se no âmbito da parceria e relação de amizade de longa data que une o artista à Escola e que se vem concretizando em inúmeras ações. A receita do espetáculo foi destinada a uma instituição de cariz solidário, a "Associação dos Bons Sinais", de Quelimane.
Aqui, entre nós, não é muito comum que um álbum se vinque e tome sua forma a partir do título. “Venho de Longe”, de Elvira Viegas, reforça logo a construção do sentido musical e enriquece o processo conceptivo, estético (e, na expetativa, melódico) das 15 músicas que a compõem. O álbum dá continuidade à evocação de referências das suas vivências que são sinónimos de calos, lágrimas, pesares e tentativas pregações de moral e patriotismo.
E é sobre isso que quero aqui abordar. Elvira faz, neste 2024, 50 anos de carreira e 69 de idade, a completar em outubro próximo. Tem cinco álbuns gravados, “Nfzixikala vitu”, “Tlanga upimela”, “The best of Elvira Viegas”, “Venho de Longe” e “Ora Chegou”, que deixam sempre a sua fragância melódica por onde ecoam. São quatro vidas que me interessam analisar, mas hoje, nesta extensa introdução, interessa-me recuar no tempo e, desde o início, seguir essas pegadas feitas em 50 anos de música.
“Venho de Longe” (uma reedição de The best of Elvira Viegas), como sugere o quarto disco, traz, na sua organização, as melhores músicas da cantora, gravadas originalmente em diferentes momentos e circunstâncias. São esses os calos da sua história, de lá longe de onde vem, que, regravadas e alinhadas, compõem o primeiro álbum ousado da cantora, juntando igualmente instrumentistas como Pipas, Stélio Zoe, Carlos Gove, Sacre, e o seu falecido irmão Pacha Viegas.
E sem rodeios: o disco é a mascote da Música Ligeira Moçambicana – um campo que já foi dividido entre ela, Elsa Mangue e Zaida Chongo. Bem, um pouco forçado também por Mingas, embora o seu estilo circunde entre o ligeiro moçambicano e o moçambicano internacional –, que antes mesmo de reeditado, já tinha conquistado reputação na Rádio Moçambique, reafirmou o valor da artista e o reconhecimento que veio também da Rádio França Internacional (RFI), que o atribuiu o seu galardão maior (Prémio Descoberta), no ano de 1987.
Com audácia, e uma dinâmica crescente, sem por isso quebrar a senoide, o álbum conta a história de um país – e seus inquilinos – que prossegue em meio a tantos problemas, sobretudo relacionados às mais básicas dádivas da humanidade: dar amor aos filhos, aos cônjuges, aos vizinhos, ter esperança e perseverança.
Por isso, as batidas, misturando uma Marrabenta e Afro-Pop, estimulam a nostalgia ao ressoar do teclado característico de Pipas. As composições são modestas, interpretadas com um soltar de voz, em timbre grave: o equivalente melódico da fleuma de poesia cantada. Pois canta com alma, mestria, simplicidade e às vezes complexidade! E não será coincidência qualquer semelhança com Elsa Mangue, a quem ficam também reverentes nostalgias. As duas são feitas de poesia!
Transportando para estúdio a intensidade do ao vivo, Elvira Viegas reafirma-se no álbum em “Errei, pequei” e, abusando da sua criatividade, mistura elementos comuns de diferentes estilos do Afro-Pop, o que dificulta a sua categorização e, ao mesmo tempo, apresenta um material agradavelmente inusitado aos seus ouvintes. A música é uma obra completa, no sentido de que nenhum instrumento envolvido seria muito coerente se fosse ouvido sozinho. A bateria e a guitarra acompanham a voz, estonteante, que repetidas vezes clama: “Errei, pequei com o coração ao deixá-lo chorar”.
A música rasga o peito e reverencia a complexidade poética de Elvira. É sobre dor, prazer, paixão? Não, é sobre a aceitação: “Errei, pequei aos olhos dos homens, descobrindo o meu caminho, não pisando a areia movediça”, diz a música, levando à consciência sobre a necessidade de se ser livre e feliz. E a liberdade se espalha numa tonalidade primorosa. A voz está segura e confiante, o som invade o cenário e casa-se com a melodia até tudo explodir num refrão que alivia a tensão e resolve a harmonia com inteligência e bom gosto.
“Xikala Vitu”, o mesmo que sem nome, continua aqui a fazer subir o álbum e traz ao arrepio dessa viagem rítmica outros brilhos, outros sentidos. Aqui, Elvira recolhe-se mais, divide seus quatro minutos de dor com Sizaquel e Jenny, que também, no fundo, dão drama à música. Uma melodia que dói, que arrebata e nos traz à memória a covarde moda de assassinatos de parceiras em Moçambique. E questiona: “Como te chamarei se comeste a minha boca? Como te escutarei se grelhaste a minha orelha? Como irei brincar contigo se cozinhaste os meus seios? E as tripas o guisado?”
Elvira deita fertilizante nas suas canções melancólicas, e duas delas espraiam-se mesmo pelas lágrimas. Uma delas, Grito da Criança, é o auge de tudo o que Elvira sente e viveu: uma maratona por toda a sua geografia musical e afetiva, tempestade de bateria e melodia, uma crónica da crueldade do abandono familiar, uma obsessão pela moral e um fatalismo pelo caos que vivemos. A outra música, Coração de Pedra, um choro de outra mulher, é útil porque desmente a falácia de que toda a mulher-mãe é protetora.
Texto: Reinaldo Luís
Jornalista e Editor de Cultura