Em troca de 20 mil dólares, Clara, uma moça pobre, moradora de uma favela do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, aceita emprestar o seu útero para gerar um filho para o casal Ana e Zeca, que desejam ter um filho. Depois de várias tentativas frustradas de engravidar, este casal recebera de um renomado médico a triste notícia de que Ana não podia ter filhos, e no lugar a possibilidade de eles contratarem uma barriga de aluguer. Assim foi feito.
Na primeira tentativa, e com recurso à inseminação artificial, Clara ficou grávida. No contrato celebrado, a Clara deixa claro que deverá entregar a criança aos pais biológicos ainda na maternidade. Acontece que durante a gestação Clara é tomada pelo sentimento da maternidade e por um amor profundo como se o bebé fosse realmente seu, acabando por se arrepender. Após um complicado parto normal, que a deixa estéril, Clara se recusa a entregar a criança e foge com o bebé.
Com a ajuda da wikipédia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Barriga_de_Aluguel_ (telenovela), estava a descrever o enredo da telenovela brasileira “Barriga de Aluguer” exibida nos anos noventa do século XX no Brasil e em Moçambique.
Ainda que o leitor já desconfie, trago à superfície esta novela por conta de semelhanças entre o seu enredo com o do histórico da proximidade e enlace entre o partido PODEMOS e Venâncio Mondlane, o candidato presidencial suportado por este partido, no decurso das incidências da polémica novela eleitoral “9 de Outubro”.
As semelhanças prendem-se, entre outros, e por estar na agenda política do dia, com o (eventual?) diferendo entre as partes no que toca à tomada ou não de posse dos 43 deputados da lista do PODEMOS que foram eleitos para a próxima legislatura.
Na mesa, a questão de fundo: a quem pertence o destino a dar aos 43 deputados da lista do PODEMOS que foram eleitos para a próxima legislatura? Ao partido PODEMOS, que alugou o seu “útero” a Venâncio Mondlane, ou a este que depositou o seu capital político no “útero” do partido PODEMOS?
O resto do enredo que se seguiu da novela “Barriga de Aluguer”, mormente a contenda jurídica e o seu desfecho, deixo sob os cuidados do interesse e curiosidade do leitor em procurar saber. Quanto ao curso e desfecho do (eventual?) diferendo entre o partido PODEMOS e Venâncio Mondlane aguardemos as cenas dos próximos capítulos.
Contudo, e para terminar, fica registado, e devidamente patenteado, a emergência do conceito de “Partido de Aluguer” nos anais da fértil arte política moçambicana em matéria eleitoral.
Nada mais arrogante do que acreditar que apenas criticar o sistema nos torna imunes às consequências de enfrentar as garras de uma estrutura que existia antes de nós. É uma tendência mundial desejar revoluções pacíficas e esperar consciência social de quem acumula dinheiro e poder justamente com a ausência dela. Trata-se, afinal, do bom e velho instinto de sobrevivência.
Todavia, daqui das ilhas maravilhosas de São Tomé e Príncipe, percebemos um pouco tarde que um gigante havia sido despertado em Moçambique. Primeiro, fiquei intrigado com a coragem de desafiar o status quo. Depois, admirei um orador que entende a linguagem do povo. Por fim, percebi que Venâncio Mondlane havia se transformado em VM7 — uma figura moldada pelo povo cansado do velho tabuleiro político. VM7 já não é apenas Venâncio Mondlane.
De alguma forma, estávamos aqui na ilha empolgados com as agitações sociais e com marchas cuja adesão deixava qualquer especialista em engajamento social boquiaberto. Algo estava acontecendo com nossos irmãos no continente. Então vieram os vídeos, os confrontos e os saques... Sutilmente, Venâncio caiu na antiga armadilha do messianismo político. Por muito tempo, ele andou sobre uma corda bamba. Lá do alto, todo o apoio popular parecia elevá-lo. Contudo, nessa corda invisível, Venâncio acreditou que tinha aprendido a voar. Ele lutava contra o Monopólio da Verdade e contra o Monopólio da Força. Seus apoiantes, inflamados, mas despreparados para uma guerra, não tinham como enfrentar as verdadeiras armas que disparam fogo e soldados altamente treinados.
Por outro lado, acredito que, em revoltas sociais, as pessoas depositam confiança excessiva na razão do povo e no povo da razão. Esses intelectuais, que mal sabem manejar uma AK-47, carregam consigo alguns privilégios que os tornam pensadores demais para dobrar-se ao sistema. É incrível como, nesses momentos, muitos esquecem o básico. Como Maquiavel escreveu em O Príncipe: "Todos os santos que não pegaram em armas acabaram mortos." A revolução, gostemos ou não, depende de armas. Infelizmente, os ideais são sempre pacíficos, mas a vida é violenta.
Enquanto isso, VM7 assiste aos companheiros que caem. Recebe apoio de muitos, enquanto outros aplaudem do conforto de seus lares. Um povo guerreiro vai às ruas enfrentar os resultados "oficiais" divulgados por aparelhos "oficiais", sempre defendidos por vozes "oficiais".
Por fim, a cidade está em chamas. As balas continuam a silenciar mais e mais vozes. Enquanto essa guerra de narrativasse arrasta, ativistas tornam-se saqueadores. O partido Podemos não pode, e VM7 brilha como uma miragem, com o langor de uma batalha já derrotada. As balas cantam, e VM7 surge ligeiramente mais abatido, partindo para o tudo ou nada.
Daqui das ilhas, esquecemos que Moçambique, esse baú de recursos naturais, precisa discutir a sua soberania com várias organizações que têm interesses bem claros. Manter tudo como está é economicamente vantajoso para muita gente. Se VM7 não tomar cuidado, acabará por se tornar apenas mais um desequilíbrio na cadeira do partido no poder. Uma carta a ser usada em futuras negociações com o Estado. Algo como: "Aceitem estas propostas ou virá VM8... ou VM9."
Eles não podem eliminar Venâncio Mondlane. Ele precisa permanecer ali para lembrar ao poder que, da fábrica onde se produziu a Primavera Árabe, Mohammed al-Bashir, Al-Shabab, e muitos outros que ainda virão pode-se produzir VM7-pro... o medo precisa vencer. Neste cenário, não conseguimos acreditar numa vitória da razão de VM7. Precisamos olhar apenas para a razão da vitória.
Quero finalizar a minha divagação que cheira à Realpolitik. Depois dessa análise que parece tirar o fôlego, desejo, como Amílcar Cabral, fechar os olhos e, permitam-me, sonhar com um Moçambique melhor para o seu povo, repleto de valores voltados para a vida. Permitam-me, povo moçambicano, imaginar-vos felizes além de todas as mortes morridas e matadas que foram provocadas pela necropolítica. Permitam-me saudar-vos pela resiliência. Como Camus, após divagar sobre o absurdo do mundo e da existência, ele diz:"É preciso imaginar Sísifo feliz." E eu digo: 'É preciso imaginar Moçambique feliz!' – A revolta é uma resposta ao absurdo.
Ivanick Lopandza é um jovem intelectual, poeta e activista social santomense, com ADN paternal congolês, membro fundador do colectivo Ilha dos Poetas Vivos em São Tomé no ano de 2022, com seus companheiros santomenses Marty Pereira, Remy Diogo e moçambicano MiltoNeladas (Milton Machel). Autor de livros de poesia, Ivanick é também bloguista, publicando seus textos em https://ivanicklopandza.blogspot.com/?m=1
Por conta do dia da família, 25 de Dezembro, e mesmo diante das restrições de mobilidade, há famílias que foram passar parte do dia em casa dos avós dos filhos, sendo ainda uma oportunidade de regresso ao bairro de um ou de ambos os progenitores. Fui um dos afortunados que regressou ao bairro.
Fora um e outro vizinho, que não resistiram ao capital imobiliário, o bairro ainda preserva os que ainda mantêm a escassa e soberana conquista da independência, a casa do APIE (Administração do Parque Imobiliário do Estado). Um destes, a memória institucional do bairro, e quem ao colo levava-me ao futebol e falava, às escondidas, de um outro país que habitávamos, estava à varanda da sua casa e sinalizou-me para uma conversinha.
Anui a chamada. O sinal foi o mesmo que o anunciava, ainda garoto, para mais uma aula - percebo hoje - de cidadania e ciência política. Para os miúdos do bairro a primeira universidade. Corriam os anos oitenta e o ensino privado era até proibido.
Feito o protocolo familiar fui à varanda do vizinho. ῎Meu filho, o bairro está de volta!῎. Assim fui recebido. A partida até pensei que o bairro estivesse de volta por conta da minha presença, pois já não ia ao bairro fazia algum tempo. Debalde. Não era sobre a minha presença de que ele falava, mas do facto de o bairro ter voltado a falar e articular entre vizinhos os assuntos que os dizem respeito enquanto comunidade.
῎Meu filho, a última reunião do bairro e do quarteirão em que participei, Samora vivia῎. Dito, em seguida o vizinho relatou-me a reunião ocasional em que participara com os vizinhos, entre antigos (poucos) e novos, a maioria (novos proprietários ou seus inquilinos). O mote fora a falta de corrente elétrica por conta da queda/avaria de um PT (Posto de Transformação) que acabou por afectar algumas das casas do bairro.
A queda da corrente elétrica no bairro até que não era algo estranho. Mas desta vez, e talvez pelo actual contexto de crise e incerteza pós-eleitoral, cada vizinho fez o seu contacto e esperou nas cercanias do PT pela equipe da EDM, Eletricidade de Moçambique. Às escurras decorreu a reunião ocasional, e como resultado foi constituído um grupo de Whatsaap e levantadas as principais acções conjuntas, destacando as de vigilância, limpeza e segurança.
Depois de ouvir a boa nova lembrei-me, ainda garoto, das reuniões e limpeza do quarteirão e do bairro. Lembrei-me, sobretudo, da liderança na mobilização e concretização de acções conjuntas de interesse colectivo. Tenho ainda em mente três chefes de quarteirão. O meu vizinho até frisou este detalhe na conversa, acrescentando de que hoje, infelizmente, mal sabe quem é o chefe de quarteirão e o de bairro e nem as formas para as respectivas escolhas.
Para o vizinho, e nos tempos democráticos que correm, o cargo de chefe de quarteirão e de bairro deveriam ser o primeiro e permanente contacto democrático de base e ao serviço da comunidade, e não meros departamentos locais de negócios para a emissão de declarações de residência.
῎Meu Filho! Podes escrever: o bairro está de volta!῎. Anui e assim terminou a fala com o meu outrora, e eternamente vizinho.
E a propósito do bairro estar de volta: os ventos que sopram da área nuclear da cidade e da de expansão metropolitana de Maputo onde, e pela primeira vez, os vizinhos e outros com interesses na área circundante voltam a articular em nome e defesa da coletividade, fazem fé as palavras de esperança do meu eterno vizinho. Todavia, uma certeza: o futuro fará a competente prova dos nove.
Olá, Pai Natal!!!
Sou eu de novo, mais uma vez cumprindo a tradição da “Carta ao Pai Natal”. É momento em que me torno representante de muitas crianças que acreditam em ti, e também, de alguns adultos que veem em ti aquele velho barbudo que marcou a infância deles, seja na esperança, seja na saudade.
A carta deste ano, Pai Natal, não foge a regra; traz mais reclamações, muitas lamentações e alguns pedidos. Na verdade, as reclamações não são para si, porque és Pai Natal e não político, nem governante. Reclamo para si porque presumo que algumas cartas que te escrevo, são extraviadas e acabam parando em mãos alheias. E, nunca estive tão cioso que essas “mãos alheias” fossem as mãos da elite castrense que governa o nosso país. Pudera eu, fazer um exercício de influência para que esta carta fosse lida na sala oval do Conselho de Ministros ou de algum outro lugar onde a audiência pudesse por um instante, sentir a dor do povo que aqui expresso e manifesto; e que pelo menos, por instantes, se tentasse perceber as metáforas e hipérboles que eu, ainda que sem mandato, trago em nome de uma colectividade sem voz. Imagino, Pai Natal, que depois de terminares a entrega dos presentes aos meninos bem-comportados, maioritariamente das elites e famílias mais ou menos abastadas, tiras um tempo para descansar e avaliar o teu trabalho de espalhar alegria, alento e alguma esperança disfarçada em brinquedos. Imagino também, que te sentas a mesa com gente influente e com poder suficiente para mudar muita coisa. Por acreditar nesse seu círculo privilegiado e poderoso, ainda escrevo, ainda desabafo e, ainda tento ser a voz dos sem voz. E se és Pai Natal de todos, antes és pai de alguém, e é na imagem desse pretenso alguém que te peço que seja portador e mensageiro no clamor das crianças de Moçambique e de todo o povo.
Como deve saber, estamos nas manchetes ao redor do mundo, e pelos piores motivos. O nosso país enfrenta uma crise grave, talvez a pior crise desde o conflito armado dos 16 anos. Essa crise que, mergulhou o país numa atmosfera pesada, que preocupa a todos, convidando à reflexão e tomada de decisões que se esperam urgentes e assertivas.
Pode parecer paradoxal escrever uma carta ao Pai Natal em contexto atípico e num período em que pairam incertezas sobre o presente e futuro do nosso país. Não me lembro de uma quadra festiva tão sem brilho, e sem motivos para celebrar. Parece que o nosso egoísmo, soberba e ganância nos levaram ao fundo do poço e, batemos com algum estrondo.
Pela primeira vez em décadas, teremos de conviver com a ideia de um Natal em que todos menos nós, estamos imbuídos de espírito natalino. Um Natal que será vivido e celebrado pelas telas da televisão e pelas redes sociais. Para alguns, os abastados, os membros da elite castrense, será um período de viagem ao exterior, fingindo que tudo está bem. Pela primeira vez teremos de explicar aos mais novos, que este ano, por motivo, que eles não entenderão, não teremos a tradicional festa de família, nos habituais moldes. As famílias estarão ou confinadas a viver o luto colectivo causado pelas balas, pelo gás e pela força desproporcional vindos de quem nos deveria proteger, ou estarão isoladas e distantes umas das outras porque circular livremente virou apanágio de poucos – quando não são as portagens formais que nos limitam, são as portagens informais e ilegais que nos retiram o direito a livre circulação.
A nossa segurança esta em perigo, e tudo nos remete a ideia de um presente incerto. Em nome da segurança, da lei e ordem, as nossas ruas, estão tomadas por policiais e militares, mas se tornaram mais violentas e assombradas pelas vozes dos que pereceram. Somos constantemente bombardeados com imagens, narrativas, notícias, filmes e toda propaganda típica de um cenário de guerra. Estamos mentalmente exaustos e psicologicamente quebrados com tudo isto.
A carta deste ano pode parecer apenas de lamúrias e desabafos, e, até certo ponto ela é isso mesmo.
Porém, se pudesse pedir algo nesta carta, pediria apenas bom senso Pai Natal. Bom senso por parte daqueles que podem decidir, para façam com sabedoria e devolvam o brilho e a esperança aos milhões de moçambicanos.
No passado, tivemos ocasiões em que durante as festas, faltou mesa farta nas famílias, contudo, nunca faltou paz, harmonia, segurança, fraternidade.
Estou em contrarrelógio, Pai Natal. Tenho muito pouco tempo para concluir a minha carta e enviar aos correios para que ela chegue a tempo. Por favor, não repare na minha caligrafia, nos meus erros e na estrutura pouco elaborada da minha carta Pai Natal (…). É que, a semelhança de muitos outros anos, eu e milhares de crianças deste país, não tivemos acesso ao livro escolar que se pretendia gratuito. Eu e milhões de crianças continuamos a estudar debaixo das árvores, sentadas no chão, ou em blocos improvisados, enquanto a nossa madeira vai para o exterior. Continuamos sem salas de aulas, sem carteiras, sem professores devidamente remunerados. Somos vítimas de um sistema que nos retirou a possibilidade de sonhar com uma formação capaz de transformar as nossas potencialidades em potencialidades do país.
Desculpa a carga emotiva que trago em alguns parágrafos Pai Natal. Enquanto escrevia, imagens tristes surgiram na minha mente tornando impossível segurar as lágrimas e a firmeza da caneta.
Para terminar, Pai Natal, que conste que não irei montar a árvore de Natal na minha casa, e acredita que muitas famílias não irão fazê-lo. Não faz sentido ter uma árvore de Natal reluzente e presentes para poucos, enquanto a grande maioria só conhece a árvore que simboliza a sua sala de aulas. Não faz sentido ter o presépio que anuncia o nascimento do menino Jesus, se a cada esquina vemos sangue de um irmão morto pela saga das balas, pela asfixia do gás, e pela opressão da fome, da indiferença e do desdém.
Vamos juntar cartuchos das balas disparadas, e os bujões de gás arremessados e, fazer um monumento em homenagem a todos que tombaram nesta luta por um Moçambique melhor. Um Moçambique em que não sejamos nunca mais atropelados por BTRs mas, que sejamos construtores de BTRs para atropelar a pobreza, a fome e a miséria que grassam a Pérola do Índico.
O meu pedido para este ano, é por um Moçambique em paz e livre da violência. E, se não for pedir demais, embrulha-o com tolerância, empatia e compaixão. Mas não precisas escalar as nossas janelas, para que não seja considerado um Pai Natal vândalo, arruaceiro e inconsequente; e nem corras o risco de receber uma descarga de uma AK-47.
Um Natal seguro a todos!!!
Chegamos à ponta de Guilaleni, no arquipélago de Mucucune onde o feitiço ressurgia em todas as noites de corujas, e a indescritível beleza da paisagem desabrochou por completo enchendo-nos os olhos e o espírito. Era como se tivéssemos acabado de chegar ao próprio paraíso, com barcos à vela estendidos pelo mar desde Linga-Linga, passando por Móngwè até Chicuque e Maxixe, terminando no fim do horizonte que será Nhapossa, cuja expressão máxima está numa zona marítima que se ensoberbece chamada Potani. Então todo este maná não pode ser real. É um sonho.
O nosso destino é a península de Miludzi, lugar onde o silêncio remete-nos aos pensamentos mais profundos, sobretudo nas noites e nas madrugadas quando as mulheres, voltando da pesca de arrasto de camarão, tagarelam balelas e riem-se a bandeiras despregadas sem que nenhum outro som, a não ser o dos últimos pirilampos em recolha, interrompa a melodia sincera do riso.
Viajamos num barco à vela baptizado “Nhalégwè”, conduzido por um marinheiro conhecedor dos ventos que sopram de várias direcções e de outros ventos que não se saberá onde nascem. Na verdade ele é um barómetro que vai rivalizar com os cientistas formados em grandes universidades, e a escola dele é o próprio mar. É por isso que nos avisou com segurança, inesperadamente, enquanto contemplávamos a exuberância de toda esta plenitude, wunguta ronga (vem aí o vento norte)!
Saímos da ponte de Inhambane – um património inestimável da cidade – por volta das sete da manhã e, quarenta minutos depois, já estávamos em Guilaleni, um lugar há muito sonhado, e que agora quase o beijo de perto.
Sinto um impulso dentro de mim que me impele a dizer alguma coisa ao marinheiro, a começar talvez por uma pergunta, nem que seja estúpida.
- Você é marinheiro de que zona?
- Sou irmão de Mangoba, teu amigo, você não se lembra de mim?
Compenetrei-me nele, na sua fisionomia, no timbre da voz, e na capacidade de abstração que tem demonstrado desde que começamos a nossa viagem antes inacreditável. Ele tem de facto o sangue de Mangoba, o seu estilo cambaio.
- Já estou a lembrar-me de você!
- Então!
Agora estamos entre Linga-Linga e Móngwè, daqui a pouco chegaremos a Miludzi, onde ninguém me aguarda, onde ninguém, provavelmente, me conhece, mas eu vou! Da mesma forma que já fui a muitos lugares sem que ninguém me aguardasse. É o nome da terra que me move, e as suas histórias de fartura de marisco!
Mas os tempos mudaram. Muito. Lembrei-me, quando cheguei, das perfurantes palavras de Momad Wa Simbo, “Deus diminuíu as bençãos em Mucucune”.
Em Miludzi também, já não há peixe como antigamente, nem lula, nem camarão, nem nada!
Em tempos, algures pelo mundo, conheci um sindicalista e parte, na altura, da oposição em seu país. Pouco tempo depois o seu partido e candidato presidencial ganham as eleições e ele participa na nova estrutura governativa. Em visita ao seu país, passo alguns dias na sua casa protocolar na capital. Um luxo e em bairro nobre.
No final da estadia, o meu anfitrião fez questão de sublinhar de que aquelas condições de vida não correspondiam à realidade dele, apelidando-as de seus ''anos da fantasia''. Contou ainda de que a realidade dele estava em outro local, por acaso longínquo, geograficamente e socialmente, e de que as condições reais da sua vida seriam as que retomaria e com a ajuda da sua nova experiência procuraria contribuir para o progresso da sua cidadezinha.
Ontem lembrei-me deste meu amigo sindicalista, enquanto acompanhava, na TV, a apoteose da recepção no aeroporto à equipe sénior feminina de basquetebol do Clube Ferroviário de Maputo que há dias, em Dakar, Senegal, conquistou pela terceira vez o campeonato africano (de clubes) da modalidade.
Aliás, não é a primeira vez. É sempre assim quando uma equipe nacional, incluindo a selecção, sobretudo da modalidade de basquetebol, ganhe troféus ou faça brilharete além-fronteiras e que me levam a questionar se não seriam essas proezas semelhantes aos ''anos da fantasia'' do meu amigo sindicalista?
Infelizmente, e conforme o combinado, ainda não consegui visitar a terra deste amigo o que me permitiria aferir, ''in loco'', a autenticidade das suas palavras. Mas tenho tido notícias, incluindo as de que a cidadezinha onde voltou a morar, depois que o seu partido e candidato presidencial não conseguiram renovar mais um mandato, está a progredir.
''In loco'', (in)felizmente, conheço a realidade do clube campeão, sobretudo a das condições em que se encontram as suas instalações desportivas na baixa da capital. Por aqui, uma dúvida: terá o Ferroviário dito às suas congéneres, estruturas de gestão regional e mundial da modalidade ou a singulares com quem se tenha cruzado, de que os seus troféus eram apenas os seus ''anos da fantasia'' e em seguida as convidasse a visitar a sua realidade?
Enquanto espera-se que a dúvida desvaneça, e face aos dados, nomeadamente o percurso histórico de conquistas africanas do Ferroviário de Maputo vis-à-vis o percurso histórico da progressiva deterioração e abandono das suas instalações desportivas da baixa da capital, incluindo onde as campeãs treinam, fica a ideia de que o campeão esteja apenas confortável com os seus (já) eternos ῎anos da fantasia῎.
PS: Em jeito de parêntesis: foi recentemente inaugurado um estádio municipal de raiz na autarquia do Ibo, Cabo Delgado, construído com fundos dos Caminhos de Ferro de Moçambique, patrono/proprietário do Ferroviário. Salvo erro, foram perto de 2 milhões de dólares desembolsados. Não sei se estão inclusos os custos com a cerimónia presidencial de inauguração...