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Carta de Opinião

segunda-feira, 23 novembro 2020 07:42

Barbárie e o curral de porcos

Na madrugada do dia 31 de Outubro de 2020, sábado, os terroristas atacaram Muatide e mais oito aldeias do distrito de Muidumbe. Nas incursões que duraram cerca de dez dias, os bárbaros cometeram atrocidades de arrepiar até o diabo. Houve um fardo de mortes e os que restavam pediam, com voz de sangue, para que houvesse justiça cá na terra e no além. O ataque deixou milhares de crianças desamparadas e caminhando longa distância em busca de segurança e aconchego. Mulheres e idosos aflitos por salvação.

 

Entre as atrocidades macabras protagonizadas em Muidumbe, está a de um cidadão trabalhador, pai de família, dedicado e apaixonado pela área que desenvolvia há anos naquela localidade. Naquela madrugada, entre as várias famílias atacadas pelos insurrectos estava a de um cidadão que em vida respondia pelo nome de Mustafa, conhecido em todo distrito, como o mecânico Mustafa. Um mecânico competente. 

 

No dia do ataque os terroristas chegaram à casa da família Mustafa; o mesmo buscava um esconderijo seguro e as balas já lhe paravam de enganar; pareciam, a priori, estarem a ser atiradas das matas, enquanto na verdade os terroristas já estavam na vila. Na tentativa de verificar donde saíam e se tinham pessoas fugindo, o mecânico Mustafa fora surpreendido por um grupo de terroristas que zombaram da sua dignidade e o trataram como uma gazela perante leões famintos.

 

Na ocasião, a família que já havia encontrado um esconderijo estratégico aos arredores da sua residência, assistiu a crueldade in loco. Os gritos, as lágrimas, a força da brutalidade dos terroristas contra um homem desprotegido e submetido à tortura aguda com recurso a catanas, martelos e baionetas. Foi duro ver aquilo. Até os barulhentos suínos colocaram-se em silêncio perante tanta barbárie.

 

O curral de porcos, onde estava escondida a família do mecânico Mustafa, não foi atacado devido a estrutura que o mesmo apresentava. Estava todo destruído. O silêncio dos porcos, o estado do curral é que garantiu a salvação da família do mecânico Mustafa. Que infelizmente teve que engolir as lágrimas e a dor de ver o seu encarregado ser torturado e cortado como se de carne bovina se tratasse. 

 

Os terroristas começaram por torturar o mecânico e tentaram obrigá-lo a dizer onde estavam os restantes membros da família. Ele não abriu a boca. Pegaram numa catana e começaram a desmembrá-lo, colocaram partes do seu corpo nas viaturas da oficina. No meio de tanta tortura, por algum momento, a esposa  e os filhos quase saíam do esconderijo aos gritos. Mas o guarda e o ajudante seguraram-nos. Pela forma que o torturavam parecia que eles sabiam que em algum canto estava alguém vendo tudo.

 

Queimaram a casa e todos bens como forma de atormentar a todos que estavam no esconderijo a entregarem-se. No curral, para além dos suínos  encontravam-se cinco pessoas, sendo a mulher, dois filhos, o guarda da residência e um ajudante do finado. Sorte teve a família que conseguiu chegar a Pemba depois uma longa caminhada!

 

No outro canto, na aldeia Ntchinga, cerca de 31 pessoas, sendo 25 adolescentes do sexo masculino e seis conselheiros do rito de iniciação eram cruelmente assassinados. O cenário era desolador e sombrio; partes de corpos foram espalhadas por todo sítio...

 

Texto escrito com base nos relatos de testemunhas oculares dos actos bárbaros dos terroristas em Muidumbe.

É líquida a ideia  de que a implantação de (grandes) projectos de exploração de recursos naturais e parte deles esgotáveis, fora os seus entretantos, gera benefícios para as comunidades locais. E uma vez que a terra dos rongas acolhe a capital do país - igualmente um grande projecto - há quem pergunte pelos benefícios locais disso, sobretudo, e como qualquer projecto, a capital também tem o seu tempo (indeterminado) de duração. Foi assim pelo mundo, incluindo o caso da Ilha de Moçambique, a antiga capital de Moçambique, que em 1898 foi preterida a favor de Lourenço Marques, actual Maputo. Tal possibilidade, a de um dia  Maputo deixar de ser a capital, e no quadro do debate  sobre a sustentabilidade da exploração dos recursos naturais, leva à reflexão sobre a sustentabilidade da exploração da terra dos rongas como a capital do país, atendendo, e a história prova, que o recurso terra-capital  é também esgotável.

 

E depois que o recurso terra-capital esgotar do que se sustentará Maputo? Não será uma nova Ilha de Moçambique que mal consegue preservar o património erguido por ser a capital, um estatuto que lhe fora retirado, e que se saiba,  sem nenhuma indemnização e de nenhuma alocação orçamental  anual por ter sido  a capital. Provavelmente haja quem não tema a mudança e ache que a cidade das acácias  sobreviverá assim como a cidade brasileira do Rio de Janeiro que, em 1960, perdeu o estatuto de capital para Brasília e nem por isso perdeu o seu fulgor. Mas, segundo alguns escritos que não vêm ao acaso, a perca do estatuto de capital do Brasil é apontada como a responsável da crise crónica em que o Rio vê-se  mergulhado até hoje, incluindo a da auto-estima do carioca (o ronga do Rio de Janeiro), nunca recuperado desde que a cidade maravilhosa perdeu o estatuto de capital.

 

Curiosamente, nos dias que correm, parte das razões que ditaram a mudança da capital da Ilha para a então Lourenço Marques – alguns apontam as de ordem económica/financeira (minas sul-africanas) e de soberania (receio da tomada do estratégico porto de Lourenço Marques) face a interesses ingleses, colonizadores da África do Sul -  estão novamente à superfície (cofre à norte e soberania ameaçada também à norte) e não me admira que se comece a futurar uma nova mudança. Aliás, este debate não é novo, e por existir uma experiência amarga de uma vítima entre nós o seu desfecho  merece um tratamento constitucional no sentido de assegurar direitos vitalícios para a cidade que perca o estatuto de capital. Certamente um assunto para ser ponderado no devido tempo, mas que não deixa de ser um bom ponto de reflexão por ocasião da passagem de mais um aniversário da cidade de Maputo (10 de Novembro). Parabéns cidade das acácias pelos seus 133 anos e também, por arrasto, embora não saiba o dia e mês, pelos 122 anos com o estatuto de capital.   

quinta-feira, 19 novembro 2020 06:52

Fazilange

O celular vibrou no bolso das calças  e eu achei que podia atender noutra altura, depois de descer do barco. Eram oito horas da manhã de um sábado, e o meu destino era Linga-Linga, onde tenho ido amiúde ver a Fazilange, minha tia. Há dois caminhos para se chegar lá, a partir da Maxixe. O primeiro passa por Móngwè, e o outro por Murrombene. As duas vias têm o seu fascínio próprio, é por isso que me entrego a elas de forma aleatória. Mas existe ainda a esplendorosa estrada do mar, que nos leva ao êxtase da beleza, como se tudo aquilo fosse um paraíso.

 

Somos seis ocupantes da embarcação, incluindo dois tripulantes experientes, capazes de preverem a mudança dos ventos sem recorrerem ao barómetro, o barómetro são eles. Conhecem pelos nomes, cada lugar deste tapete azul que se estende entre os palmares da Maxixe e Murrombene, e outros palmares que ressurgem em Mucucune e Guidwane. Depois temos uma enorme vaga que nos deixa ver o Índico,por onde vão entrar os barcos de cabotagem que nunca mais apareceram por aqui.

 

Na verdade estamos no paraíso, e perante esta sumputuosidade da natureza, qualquer palavra será desnecessária. É como se nos prostrássemos a ouvir boa música, interepretada ao som das harpas. Não se fala quando é assim. Fica-se em silêncio, assim como nós estamos, deixando que as emoções triunfem. Também porque neste lugar quem manda são as gaivotas, que escolatam a nossa barcaça, susceptível dos sopros.

 

Mas eu vou a Linga-Linga ver a Fazilange.  Providenciei um pequeno cabaz, que inclui duas garrafas de vinho, as quais vão proporcionar alegria a minha tia que me espera desde ontem, após uma ligação que fiz a dizer assim, Fazi, amanhã estou aí! É minha amiga. Ela gosta muito de mim na mesma proporção em que eu a admiro. Há uma afinidade entre nós. Falamos a mesma linguagem. De paródia.

 

Fazilange vive numa casa modesta virada eternamente para o mar. É uma mulher muthswa, levada para ali pelo marido, um bitonga pescador atacado e morto por um tubarão em plena faina. Então, a vida da minha tia, mesmo sem perder sentido, ficou profundamente abalada. Pior porque nunca teve filhos, nem ela, nem Khwambe Makwandra, e os dois eram felizes.

 

Agora vou a casa da minha amiga para matar saudade. Para lembrar momentos vibrantes que passamos juntos com Khwambe Makwandra, um homem jovial  que vivia a vida profusamente. Quero ouvir a voz de soprano da Fazilange, tendo como catalizador o vinho que levo. Quero sentir o abraço profundo da minha tia. E já no auge, cantaremos canções dos nossos ídolos, onde não faltará Yimpi ya mafilista (guerra dos filisteus), do hinário da Igreja Metodista Unida.

 

Fazilange agora move-se com dificuldades, ela treme nas pernas, mas por dentro emana energia, testemunhada pela voz equalizada que canta versos antigos. É isso que me leva a visitá-la constantemente, como hoje, que vou passar aqui todo o sábado e todo o domingo, sem atender a nenhuma chamada do telefone que não pára de vibrar. Estou pouco me lixando para os que querem falar comigo, nem que seja para me comunicarem a última tragédia. Deixem-me ao menos desfrutar deste pedaço de paz, depois voltarei às azáfamas!

Os terroristas decapitaram o professor Damião Tangassi. O professor Tangassi era sobejamente conhecido em Muatide e Matambalale; nesta última aldeia leccionava numa escola devastada pelas bárbaras acções dos terroristas.

 

Damião Males Tangassi era um autêntico autodidata. De étnia makonde e marido dedicado, foi surpreendido junto com a sua família nas matas de Muatide, em Muidumbe quando em redor de uma lareira procuravam afugentar os ferozes animais e suportar o medo e fazer algo para comerem. No fatídico dia, os terroristas não olharam para aquilo que ele representava para milhares de crianças, jovens e pais de família que durante duas décadas passaram por suas mãos.

 

O professor Tangassi trabalhava abnegadamente na formação de uma geração diferente, mas que a guerra foi interromper este processo. Hoje, com todos seus alunos desperso, ele tinha a esperança de recomeçar, onde haviam parado. Infelizmente, os terroristas se apossaram dele e zombaram da sua dignidade com recursos a baionetas e diferentes tipos de tortura. Ode ao professor Tangassi. Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado e no mundo.

 

Em vida, o professor Tangassi, sonhava em um dia contar às crianças e seus netos o sofrimento que o seu povo está a ter hoje com os actos bárbaros dos terroristas. Conforme uma publicação sua feita numa canoa em Abril quando fugia a um dos maiores ataques aquele distrito. Tangassi escreveu na sua conta de Facebook "ainda tenho esperança de um dia contar aos mais novos sobre algumas das atrocidades deste ponto do país, na confiança de que tudo tem seu início mas também conhece o seu fim".

 

Infelizmente, depois de no passado dia 23 de Outubro, o governo distrital de Muidumbe, na província de Cabo Delgado, ter emitido uma circular a solicitar apresentação ao sector de trabalho de todos os funcionários e agentes do Estado até o dia 01 de Novembro, eis que os terroristas, que haviam atacado o distrito em Abril, regressaram àquele local onde destruíram propriedades e mataram  civis e militares. Entre as vítimas estava um professor que em vida respondia por Damião Males Tangassi; foi assassinado com sua sobrinha que estava em gestação; a mesma foi feita cesariana a sangue frio pelos terroristas.

 

Os familiares do professor actualmente encontram-se em Pemba. Relata-se que a esposa foi obrigada a assistir ao acto macabro do assassinato do professor, seu marido. A mulher encontra-se em estado de choque e traumatizada. A família do professor Tangassi estava em segurança em Pemba desde Abril, mas o sentido de dever e patriotismo levou com que acatasse as ordens superiores.

 

Damião Males Tangassi, de 44 anos de idade, pai de quatro filhos e que em vida vivia numa união marital, nasceu em Muatide, no distrito de Muidumbe e começou a leccionar em 2001, na altura como contratado. Tangassi estava afecto a Escola Primária Completa de Matambalale, uma das onze atacadas pelos terroristas. 

 

Entretanto, entre os dias 31 de Outubro a 01 de Novembro junto com a família e outras; algumas conseguiram escapulir-se e com a situação da sobrinha que não conseguimos apurar o nome foram encontrados nas matas pelos terroristas.

 

O professor Damião Males Tangassi foi decapitado em frente aos filhos, hoje nas mãos dos terroristas, a mulher e a sobrinha que estava em gestação. A morte do professor Tangassi demonstra uma outra faceta dos terroristas; pelas circunstâncias e para o poder do Estado em defesa dos seus agentes e funcionários...

 

Ode ao professor Tangassi!

 

Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado..!

Berlim, 12 de Junho de 1987. Nesta data e em plena Guerra-Fria,  Ronald Reagan (1911-2004), então presidente norte-americano, fez um discurso histórico diante do portão de Brandemburgo, um símbolo na delimitação entre a  Berlim oriental (socialista/comunista)  e a Berlim ocidental (capitalista). Neste discurso, Ronald Reagan, dirigindo-se ao então líder da então União Soviética,  Mikhail Gorbatchev, disse: “Secretário Geral Gorbachev, se você busca a paz, se você busca a prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se você busca a liberalização, venha aqui para este portão. Sr. Gorbachev, abra este portão. Sr. Gorbachev, derrube este muro!”

 

Matola, 09 de Novembro de 2020. Trinta e um anos depois da queda do muro de Berlim e na data consta que Ronald Reagan ressuscitara pela terras matolenses.  Quem o viu conta que Reagan, diante da vedação da nova sede municipal, proferiu um discurso dirigido ao actual edil da Matola. No final disse: “Sr. edil da Matola,  se você busca a prosperidade para a Matola, se você busca a democracia participativa e apregoa a presidência sem paredes, a vedação da nova sede municipal é uma oportunidade ímpar para o demonstrar.  Sr. Edil da Matola, esta vedação não faz nenhum sentido.  Sr. edil da Matola, remove esta vedação!”

 

O discurso de Ronald Reagan de Junho de 87 é apontado como um dos principais catalisadores para a queda do muro de Berlim o que veio a ocorrer  dois anos mais tarde. Espero que o discurso de 09 de Novembro não leve tanto tempo a produzir resultados. E pelo o que me consta, para fechar, o edifício da nova sede municipal da Matola é, entre pares, o primeiro vedado a nível nacional. Nem a sede do  Município de Maputo, a capital do país, está vedado. E aqui o munícipe e o turismo agradecem.   

 

PS: O actual  aparato de obras no novo edifício do Município da Matola é um indicador de que está para breve a inauguração. Provavelmente, e pela proximidade da efeméride, será no dia 05 de Fevereiro de 2021, a data de celebração de mais um aniversário da Matola. Até lá é possível remover a vedação e alocá-la para escolas com problemas de segurança e  que certamente existam na Matola. Assim, na data de inauguração, inaugurasse-a também a vedação de escolas abrangidas. Também, e até lá, até que se podia fazer algumas alterações nos acessos e circulação pedonal em benefício de uma mobilidade mais segura. Mas isto é um outro texto. 

Na área metropolitana do Grande Maputo quem assim responde está a comunicar que não vem ou que não tem hora para chegar, mas sempre tarde. O certo é de que não se encontra na portagem, o posto de cobrança pelo uso da estrada localizado na divisória entre as cidades de Maputo e Matola. Pensei nisto quando vi um trecho de uma entrevista do actual edil de Maputo a propósito dos 133 anos da cidade capital que foram celebrados no passado dia 10 de Novembro. Na entrevista, entre outras promessas, a de que em 2021 ter-se-á novidades do metro de superfície. Não é a primeira vez que ouço deste edil tal promessa. No seu primeiro consulado (2004-2008) prometera-o para o (suposto) mandato seguinte, mas tal, o mandato, fora barrado pelo seu partido, preterindo-o a favor da candidatura do anterior edil de Maputo que nos seus dois mandatos, reiterou copiosas vezes a promessa. E como um bom filho, a promessa está de regresso à casa. 

 

Será desta o metro? Se eu fosse um dos assessores do actual edil, um guru e referência de exemplar gestor público, recomendá-lo-ia alguma prudência, a par da experiência anterior, a menos que não esteja interessado num segundo mandato, esperando assim despachar tudo num único, incluindo o metro de superfície. Aliás, na entrevista o edil deixa bem claro de que não é o tipo de político que promete e não cumpre. Contudo, e perante mais uma promessa do metro vir à superfície, um meu próximo e grande observador dos processos de governação do país, perguntaria: “Sobrinho! Esse tal de metro o que vem mesmo fazer? Complementar o caos?”. Para o meu saudoso tio a melhoria da mobilidade não parte do vazio e de que o primeiro passo seria o de acabar com o caos instalado, incluindo o das ideias. E quanto a este tipo de caos, temo que as ideias estejam também “a passar portagem”.

 

Por acaso, e a propósito de qualidade, salta-me à memória um treinador americano de basquetebol do Benfica de Portugal que em tempos, perante a falta de talentos, dissera de que antes da qualidade o objectivo era a quantidade. E assim o clube saiu às ruas de Lisboa a procura de potenciais jogadores tomando a altura como um critério-chave. Aposto que se o mesmo raciocínio fosse aplicado na melhoria da qualidade da mobilidade na área metropolitana do Grande Maputo o metro não só viria à superfície como complementaria a qualidade existente. Ou seja: que antes de pensarmos em trazer o melhor, começássemos pelo que se devia ser feito em prol da qualidade do que temos disponível (infra-estruturas, meios, políticas e serviços). É bem provável, e para fechar, que seja por aqui a razão da resposta dada pelo “Metro de Superfície” quando perguntado se ainda vinha (à Maputo).