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domingo, 10 novembro 2024 10:55

Carta a Venâncio Mondlane, o “dono” do Povo

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Por Dick Gulela*

O engenheiro, o outro engenheiro, anunciou-se como empregado do povo. O senhor age como se fosse dono do povo. Fala dos moçambicanos como o “seu” povo. Fala do país como sendo “seu”. É assim que fazem os pastores nas suas igrejas perante o rebanho dos crentes. Mas um país não é uma igreja. Moçambique não é a “sua” igreja. E os moçambicanos não são um rebanho. 

 

A multidão que hoje enche as ruas em protestos responde a um apelo que resulta, sem dúvida, da sua indiscutível popularidade.  Mas o mérito não é apenas seu. O senhor engenheiro devia agradecer em primeiro lugar à FRELIMO. Foi a má governação de uma elite predadora que encheu de frustração e descontentamento os milhares de jovens que agora desfilam a gritar pelo seu nome. A FRELIMO criou e alimentou a sua própria oposição. O senhor ganhou de bandeja esse presente.

 

Contudo, não basta um discurso inflamado e cheio de iluminadas promessas e obscuras ameaças. Dar o exemplo é a primeira exigência de um verdadeiro líder. O senhor engenheiro VM7 devia marchar com esses jovens. Aliás, devia marchar à frente deles. Outros assim fizeram: Martin Luther King, Mao Tsé Tung, Malcom X, Gandhi, só para lembrar alguns. Também esses estavam sob a ameaça de prisão. Mas tiveram coragem e, assim, revelaram a sua grandeza humana. 

 

O senhor prometeu ao país inteiro que estaria à frente daquilo que chamou de “Grande Marcha”. Seriam, nas suas contas, quatro milhões caminhando de todas as províncias para “ocupar” Maputo. O senhor sabia que era impossível. Qualquer pessoa de bom senso percebia que esse apelo não passava de propaganda. De qualquer modo, o senhor prometeu que marcharia à frente desses imaginários quatro milhões. Caminharia de peito aberto, sem usar coletes à prova de balas. São palavras suas, caro engenheiro. São promessas feitas perante as televisões. O senhor não cumpriu. Não esteve à frente das manifestações. Esteve atrás. E mantém-se num lugar invisível, salvo dos perigos a que sujeita o “seu povo”. Está numa casa oculta propagandeando inflamadas “lives”. A sua mensagem é virtual. Mas o incêndio e o sangue nas ruas da cidade são bem reais. 

 

Os que precisam de trabalhar, os doentes que ficam por atender, as crianças que ficam por estudar, um país inteiro paralisado: todo esse sofrimento é para si o preço que devemos pagar pela “salvação” que virá da sua pessoa.  Mas o seu “programa de salvação” (que vai chegando como receitas avulso e em capítulos) não passa de uma lista de ameaças, de anúncio de mais “sofrimentos” (é esta a expressão que o senhor usa), sem que se entenda exactamente o que se deve fazer senão marchar. O povo marcha, concentra-se à frente da Presidência. E depois? Depois, meus amigos, depois é o caos. Depois, é a guerra. Depois, é uma nação partida pelo ódio, pelo medo e pelo desejo de vingança. O senhor engenheiro que não compareceu agora, continuará algures, em parte incerta, enquanto os moçambicanos inocentes serão condenados a um novo ciclo de miséria. 

 

Por isso, senhor engenheiro VM7, pare de nos enviar mensagens de ódio e de violência. É um crime esperar que as concentrações de pessoas não sejam aproveitadas por gente que apenas quer tirar proveito pessoal e criminoso. Os actos de vandalismo e a reacção desproporcionada da polícia são, assim, um peso que deve recair também na sua consciência. Não se fazem revoluções online, com um único líder sentado comodamente fazendo incendiárias “lives” à distância. 

 

O senhor já se chama a si mesmo de “Presidente”. Já organizou em sua casa a cerimónia de tomada de posse. Mas o desafio é simples: ganhou realmente o pleito eleitoral? Então, mostre as provas. Mostre as actas e editais. Não quer mostrar à CNE? Mostre à comunidade internacional. Não quer mostrar ao Conselho Constitucional? Mostre à Ordem dos Advogados. Deve haver alguém, neste mundo, que queira receber as “irrefutáveis” provas que você diz estarem em seu poder. Se não o fizer, ficaremos com a suspeita de que, você também, tenha medo da verdade, o mesmo medo que atribui aos seus adversários políticos. 

 

Lembra-se das anteriores eleições a Presidente do Município? O senhor prometeu, frente às câmaras de televisão, que publicaria nos órgãos de comunicação e nas redes sociais as actas “verdadeiras” que estavam em seu poder. O que aconteceu? Estamos ainda à espera dessa prova. 

 

Nessa outra campanha, o senhor anunciou que haveria uma marcha dos diplomatas para apoiarem a “verdade” da sua eleição. Sabia que era mentira. Sabia que nenhum diplomata estrangeiro se meteria a marchar nas ruas de Maputo. Mesmo assim, mais forte o impeliu a escolher a mentira. Peça a Deus que o ajude a entender essa pressa em chegar ao Poder, mesmo atropelando a verdade 

 

Todos os partidos da oposição, igualmente lesados pelas fraudes, adoptaram uma mesma atitude. Aguardam serenamente pelo fim do processo. Todos esses partidos têm as mesmas suspeitas sobre a seriedade desse desfecho. Mas nenhum deles deixou de agir em conformidade com a lei. A sua pressa, caro VM7, em provocar caos nestes dias pode ser vista como uma prova do seu medo. Do seu medo em seguir os passos que você também, enquanto candidato, deve trilhar: não basta ter uma sala secreta em que fez a sua contagem paralela. O senhor tem o mesmo dever de todos os outros candidatos: apresente essas provas perante uma entidade credível que comprove a validade dos resultados. Quem não tem medo da verdade não vai pegar fogo à casa e, assim, apagar as provas do crime que alegadamente foi cometido pelos outros. 

 

Na sua mais recente alocução, o senhor misturou medidas imediatas (a habitual lista de ameaças) com a promessa de construir 3 milhões de casas. Talvez o senhor não tenha reparado: a campanha eleitoral já terminou! E depois, senhor engenheiro, o senhor não está perante um povo de analfabetos. Peça a uma criança da nossa escola para fazer as contas. Para cumprir essa meta teriam de ser erguidas 1643 casas por dia durante o seu mandato. Nem a China consegue tal feito. O senhor pode ser profeta. Mas não é Deus. Se quer que os outros respeitem a verdade, comece o senhor mesmo a mostrar-se como um homem de palavra. 

 

E, sobretudo, seja corajoso. Demonstre a mesma coragem dos jovens a quem o senhor manda para a frente de batalha. Quer ser um líder? Dê o exemplo. E faça com que as suas manifestações sejam ordeiras, condene publicamente os excessos, deixe de incendiar ainda mais o que já está a arder. Colegas seus, que se opõem a este mesmo governo, organizaram manifestações que sucederam e sucedem sem desacatos. O caso de Quelimane é bem elucidativo. Ou se não quiser escutar ninguém, escute os conselhos divinos de um Deus que não confunde justiça com vingança. O vandalismo que leva ao assalto e destruição de bens públicos não são simples danos colaterais. Tudo isso, senhor engenheiro, é também da sua responsabilidade pessoal. 

 

Um candidato a presidente da República deve mostrar um comportamento de um homem de Estado. Pode e deve desobedecer ao governo. Mas não pode agir contra a constituição perante a qual, se tudo lhe correr bem, um dia terá de prestar juramento. E a constituição, caro engenheiro, tem leis que o senhor, queira ou não, deve respeitar. As manifestações e as greves são feitas com regras e procedimentos. Tudo isso está escrito na Constituição da República. Mas o senhor diz: este país é nosso. Fazemos o que “nós” queremos. E quando diz “nós”, você quer dizer “eu”. Não conhecemos ninguém da sua equipe, não se vê que estrutura organizativa você construiu à sua volta. Talvez o senhor ache que não precisa de uma equipa. Mas o povo não está a assistir a uma pregação propalada de um púlpito. E gostaria de conhecer a sua equipa e as soluções concretas que o senhor traz para sairmos desta profunda crise. Porque esse povo está cansado de milagres. Cansado de milagreiros que se esquecem de falsas e fáceis promessas. Um dia, esse mesmo “seu” povo marchará exigindo que o senhor cumpra aquilo que prometeu. O senhor que, tão bem conhece o texto bíblico, sabe do provérbio: quem semeia ventos, colhe tempestades. 

 

O hino nacional que todos cantamos diz: nenhum tirano nos irá escravizar. Muitos dos que ganharam eleições noutros países traziam uma sacola cheia de promessas. Alguns deles tornaram-se tiranos. Ou melhor, já eram antes de chegarem ao poder. Aconteceu, por exemplo, com Adolfo Hitler. Não queremos que aconteça no nosso país. Queremos mudança. E mudança radical. Mas não queremos saltar da frigideira para cair no fogo. 

 

Seja um homem à altura da sua palavra. Seja humano. Deixe de mandar os nossos filhos e irmãos para a frente de uma batalha em que o comandante está ausente. O seu paradeiro é incerto, mas o sofrimento dos que lutam em seu nome é mais do que certo. 

 

Um moçambicano cansado de guerra.

*Pseudónimo.

Sir Motors

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