O antigo Ministro da Saúde, o médico Hélder Martins, voltou a quebrar o silêncio e, através de uma carta aberta dirigida à direcção da Frelimo (concretamente ao Presidente do partido e ao Secretário-Geral), expressou a sua indignação com o actual ambiente político vivido no país, caracterizado por manifestações populares, convocadas pelo candidato presidencial Venâncio António Bila Mondlane, que reclama vitória nas eleições de 09 de Outubro.
Em mais uma carta em que diz “BASTA!” e nega ser “mais cúmplice, nem covarde”, tal como o fez em Fevereiro de 2021, quando bateu com a porta e deixou a Comissão Técnico Científica para Prevenção e Resposta à Pandemia da COVID-19, por não concordar que o grupo fosse liderado por um político, Martins acusa o seu partido pela situação em que Moçambique se encontra e considera a abordagem (policial) do Governo como um “erro político”.
Numa missiva de oito páginas, com o título “Devolver o partido Frelimo ao povo”, o primeiro Ministro da Saúde de Moçambique independente começa por lembrar à direcção do partido que é um dos 300 militantes que fundaram o movimento que liderou a luta de libertação nacional (a Frente de Libertação de Moçambique, hoje transformada em partido político), sendo um dos cinco que ainda continuam vivos.
Proveniente da UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), um dos grupos que se juntaram para criar a FRELIMO, Hélder Martins, de 88 anos de idade, manifesta, na missiva, a sua preocupação com a actual situação social, económica e política do país e, como Moçambique foi governado pela Frelimo desde a independência, entende que “não podemos culpar os nossos adversários políticos dessa situação desastrosa”.
Baseando-se em estatísticas oficiais, que indicam que dos 500 mil jovens que, a cada ano, atingem 18 anos de idade, só cerca de 5 a 7% conseguiram um emprego no sector formal da economia, afirma que Moçambique “está a criar um ‘exército’ de desempregados”, que estão a ser “livre e facilmente” recrutados pelos terroristas, em Cabo Delgado, e pelos partidos da oposição.
Para o também escritor, a Frelimo está em crise, sendo “a pior crise de sempre”, desde a sua fundação, em 1962, uma situação que “ameaça a existência da Frelimo, como partido líder do desenvolvimento da Nação”.
“Negar a existência da crise na Frelimo, hoje, é uma traição aos nobres desígnios do nosso partido, é condenar, intencionalmente, o partido à destruição”, considera, sublinhando que a Frelimo “está infiltrada por oportunistas de todos os estilos”, que vêem na política “um meio de enriquecimento com os bens públicos e com o suor do Povo”.
“Como consequência, instalou-se no partido a prática da obstrução ao direito à opinião e o espaço para discussão foi fechado. Hoje, só a voz da bajulação é ouvida no partido”, remata, sem citar nomes dos bajuladores e/ou oportunistas que se infiltraram no seio do partido no poder.
No entanto, é nas eleições (autárquicas e gerais), que o antigo funcionário sénior da OMS (Organização Mundial da Saúde) dedica grande parte da sua missiva. Enquanto a Comissão Política entende que a Frelimo é a legítima vencedora do escrutínio e com os “asfixiantes” 73%, Hélder Martins toca na ferida e coloca os “pontos nos is”.
“Todos os relatórios independentes de observadores nacionais e internacionais comprovam que nas Eleições Autárquicas do ano passado e, sobretudo, nas eleições Presidenciais, Legislativas e para as Assembleias Provinciais, houve irregularidades gravíssimas para beneficiar o partido Frelimo, por parte dos órgãos eleitorais que deviam velar pela transparência e justeza do processo e que estão totalmente descredibilizados aos olhos do povo e dos observadores nacionais e internacionais”, defende, considerando, aliás, que o Conselho Constitucional já demonstrou a sua incapacidade para considerar o impacto social, económico e político, das suas decisões, na vida nacional.
Continuando, Martins defende: “essa fraude eleitoral é a causa de toda a instabilidade sócio-política que se seguiu e se mantém nas principais cidades do país e ela veio expor uma percepção popular, extremamente preocupante, de que ‘a Frelimo abandonou o povo’”, pelo que “tentar atacar as consequências sem ir à raiz do problema, a verdadeira causa, é «política de avestruz», mas não resolve nenhum problema”.
O subscritor da carta entende que as manifestações em curso são “legítimas” e que os actos de repressão policial “são um atentado à Constituição da República e a todas as Convenções internacionais de Direitos Humanos de que Moçambique é signatário”, que consagram, de forma expressa, “o direito à manifestação e, acima de tudo, o direito à vida”.
“Tais actuações expõem um abominável desprezo pela vida humana, de moçambicanos por outros moçambicanos. A recente ameaça velada de recurso às Forças Armadas [de Defesa de Moçambique] para combater manifestações e as declarações autoritárias, próprias de dirigentes fascistas, dos principais responsáveis pela violência policial, foram totalmente contraproducentes, pois, fazem com que os manifestantes se radicalizem cada vez mais. Pode-se dizer que foi «pior a emenda que o soneto»”, defende aquele membro sénior da Frelimo.
“Pensar que se pode vencer na política pela tirania é um erro político gravíssimo. A violência desmedida da repressão policial só pode gerar violência e desordem pelos que foram violentados. É bem sabido que violência gera mais violência”, sentencia.
Hélder Martins concorda com a ideia proposta por académicos e activistas da realização de uma Conferência Nacional para discutir a tensão política pós-eleitoral que se vive no país. O evento, que deve ter lugar antes da validação dos resultados eleitorais, deve reunir para além dos candidatos presidenciais, partidos políticos, organizações da sociedade civil, todas as ordens e associações profissionais, jovens, mulheres, confissões religiosas, académicos, entre outros.
Adicionalmente, Hélder Martins recomenda a realização de uma “Conferência Nacional de Quadros” da Frelimo, um evento previsto nos Estatutos daquele partido e que não se realiza há mais de uma década, para discussão dos resultados da Conferência Nacional e de um Congresso Extraordinário para, entre outros pontos, discutir e aprovar um Plano de Acção visando a “reconexão do partido com o povo” e definir perfis para candidatos a membros e a órgãos do partido e do Estado.
O antigo Ministro da Saúde encerra a missiva dizendo que faz a exposição por “imperativo político e moral” que confronta não apenas a si, mas a muitos militantes e simpatizantes da Frelimo e cidadãos patriotas, “de não continuar a assistir a actos que, além de constituírem violações estatutárias, se traduzem em flagrantes práticas ilegais, fraudulentas e anti-patrióticas, organizadas e cometidas em nome do partido Frelimo”. (A. Maolela)