O ex-ministro das Finanças de Moçambique Manuel Chang, permanece detido na África do Sul desde dezembro de 2018, a aguardar extradição para os EUA ou para Moçambique. Como Ministro das Finanças sob o então Presidente Armando Guebuza, era tarefa de Chang procurar o dinheiro para um programa de segurança marítima e outras medidas de capacitação militar, propostas pela empresa Privinvest, sediada nos Emirados Árabes Unidos.
Para Moçambique, não possuindo sequer de capacidade para um fabrico de carrinhos de mão, o projecto de diversos sistemas de meios militares sofisticados a serem integrados em apoio da operação de embarcações navais ultra rápidas, com um orçamento em roda dos 2 mil milhões de euros, o plano só podia existir no mundo das fantasias.
Chang é o criador das dívidas ocultas incorridas com garantias soberanas por Moçambique. Os empréstimos de 2 mil milhões de euros nunca foram submetidos ao Parlamento e foram transferidos para contas bancárias privadas, fora dos canais oficiais e de contabilidade do Banco Nacional de Moçambique. Em maio de 2020, os empréstimos tão rapidamente e sem burocracias transferidos pelos banqueiros suíços instruídos por Chang, foram declarados inconstitucionais pelo Conselho Constitucional de Moçambique.
Como explica e demonstra um estudo da CIP em Maio de 2021 o total da dívidas ocultas (ou melhor, roubada) acumulou com juros e penalidades a soma 15 mil milhões de Dólares, equivalente à totalidade do PIB de Moçambique em 2019. No Índice de Desenvolvimento do PNUD, Moçambique ocupa a 180a posição em 188 países, com um total de pouco menos de 3 milhões de crianças que sofrem de desnutrição crónica e cerca de 4 milhões de adultos reduzidos a uma média de um alimento intacto em cada dois dias.
Nos EUA, Chang foi indiciado num processo criminal por defraudar cidadãos e empresas Americanas que tinham investido nas Obrigações de Tesouro de Moçambique, emitidas para financiar os empréstimos de 2 mil milhões de euros. Na base desse processo, Chang fora detido na África do Sul em dezembro de 2018, para ser extraditado para os EUA.
Algumas semanas após a sua detenção, Moçambique apresentou um pedido de extradição concorrente, apoiando-se na representação de que Chang teria sido subitamente convocado para comparecer e prestar testemunho numa investigação criminal em Maputo. Disfarçaram de que Chang naquela altura gozava de imunidade na sua qualidade de membro do Parlamento e estava pela lei do sigilo proibido de revelar seja o que fosse dos assuntos que conhecera na sua qualidade de ministro.
Em 20 de maio de 2019, o meu artigo na rede de jornais IOL na África do Sul expôs o pedido de extradição de Moçambique como uma fraude. O recém-nomeado Ministro da Justiça Roland Lamola revogou então a decisão do seu antecessor de extraditar Chang para Moçambique. Em documentos submetidos ao Tribunal, o seu então diretor-geral Vusi Madonsela referiu-se especificamente à divulgação desse documento para justificar a decisão do Ministro Lamola.
Há 16 meses seguidos, em 23 de agosto de 2021, Lamola anunciou agora que Chang seria afinal extraditado para Moçambique, uma vez que já não gozava de imunidade parlamentar. Em fundamento dessa decisão, o novo Director-geral do Ministério da Justiça, um Senhor Mashabane, num depoimento jurado com data de 26 de Agosto de 2021, declarou falsamente que as disposições relativas aos pedidos de extradição concorrentes constantes do Tratado de Extradição Sul-africano com os EUA de 1999 e do Protocolo de Extradição da SADC de 2002 "são imagens de espelho", quer dizer idênticas umas das outras (ao par 40 da Declaração), e sendo assim a África do Sul estaria livre de escolher como melhor achasse.
As formulações reais das disposições referidas revelam diferenças gritantes. O Tratado com os EUA exige, em primeiro lugar, que as datas dos pedidos concorrentes, bem como a nacionalidade das vítimas dos crimes devem ser considerados, e em segundo lugar, que “a possibilidade de posterior extradição entre os respectivos Estados" deve instruir a decisão de escolha entre pedidos concorrentes. O Protocolo da SADC, no entanto, centra-se na nacionalidade da pessoa a extraditar e "nos interesses dos respectivos Estados".
Os requisitos não se "espelham" mutuamente e as disposições do Tratado com os EUA devem prevalecer, se o princípio do direito internacional da Observância dos Tratados ("Pacta sunt servanda") for respeitado. Os tratados anteriores nunca são invalidados por tratados subsequentes celebrados por terceiras partes. A nacionalidade das vítimas dos alegados crimes de Chang é a Americana, o pedido dos EUA precede o pedido moçambicano (de qualquer forma submetido incompleto e inválido) e por causa da proibição na Constituição de Moçambique (Art 67 alínea 4) de extraditar os nacionais, uma extradição para Moçambique iria frustrar definitivamente uma extradição subsequente para os EUA, e assim por complete o pedido de extradição feito pelos EUA.
O que ambos os tratados de extradição têm em comum, no entanto, é que as potenciais testemunhas nunca se qualificam para um pedido de extradição. Só as pessoas condenadas ou acusadas em julgamento podem ser extraditadas. E é aqui que a África do Sul foi mais uma vez enganada por Moçambique.
Na sua declaração ao Tribunal de Justiça de 31 de Agosto de 2021, o Ministro Lamola baseia-se no que assume ser verdade, nomeadamente que Chang agora já seria um "acusado" perante a lei moçambicana. Isto é falso. As diligências de processos-crime ao abrigo do Código de Processo Penal de Moçambique de 1929 são desconhecidas no processo penal Sul-africano.
O antigo Código Penal português, no actual processo em Maputo aplicado como Código Penal moçambicano, distingue entre pessoas que são suspeitos ou suspeitas, arguidos e acusados, por vezes referidos como réus. Chang caracteriza-se nos documentos apresentados por Moçambique como um "arguido" em duas investigações criminais, números de processo 1/PGR/2015 e 58/GCCC/2017/EP. Estas investigações não foram admitidas a julgamento e, muito provavelmente, nunca chegarão à fase de transitar para julgamento. O julgamento em curso em Maputo é o caso número 18/2019/C e nele Chang não é réu nem arguido. Apenas foi convocado como testemunha (ou” declarante” na terminologia utilizada pelo Tribunal), para ser ouvido como tal.
Uma simples conversa com qualquer pessoa familiarizada com a lei e os procedimentos judiciais em Moçambique poderia ter informado Lamola, que um "arguido" em Moçambique é simplesmente uma pessoa suspeitada ou indiciada que ainda não acusado em julgamento como acusado.
Arguido é a designação de uma pessoa que as autoridades suspeitam ter cometido uma infracção e não existe um termo equivalente na legislação sul-africana. Um arguido é quem a polícia suspeita e decidiu questionar e a quem a lei confere o direito de ser acompanhado por um advogado. O arguido deve ser apresentado com qualquer prova que lhe seja apresentada, e ao contrário de uma testemunha tem o direito de permanecer em silêncio, de não responder a qualquer pergunta que possa incriminá-lo, e não arrisca enfrentar uma acção judicial por ter mentido.
O mais importante assim, é que uma pessoa que tem estatuto de arguido (ainda) não é formalmente acusada de ter cometido um crime.
O estatuto do arguido é semelhante ao de ser "interrogado sob cautela" ao abrigo da Lei da Polícia e da Prova Criminal no Reino Unido ou de ser interrogado nos EUA depois de ter sido lido o "Direitos de Miranda", especificamente o direito à representação legal, a liberdade de recusar responder a perguntas, e a admissibilidade em tribunal de declarações tomadas.
Em suma, Chang não é acusado e não tem estatuto de réu em nenhum julgamento em Moçambique e assim não está qualificado para uma extradição ao abrigo do Protocolo de Extradição da SADC. Uma vez que se trata de uma questão de direito estrangeiro, devem ser apresentadas provas nesse sentido no processo em curso no Supremo Tribunal.
*André Thomashausen é advogado alemão e professor emérito de Direito
Internacional. (Unisa)