Samira Mussa cresceu em Quelimane, concretamente no bairro da Vila Pita, mas as suas origens encontram-se na cidade de Nampula, onde nasceu e perdeu logo cedo os pais vítimas de uma doença prolongada.
Linda, com um olhar sensual, discreto e muito fugida. Samira professava a religião islâmica, onde era aplaudida por todos como a futura "grande estudiosa do islão". As vestimentas da Samira eram típicas da religião e das mulheres nativas do mundo árabe que mesmo diante do feroz sol e calor da terra dos Bons Sinais ela estava toda coberta. Na escola era um exemplo a seguir. Embora com estas todas qualidades, Samira era apaixonada por Ramiro, um rapaz honesto e de uma família humilde, com tudo para dar certo num relacionamento a sério com a Samira.
Ramiro, jovem com sonhos elevados, conseguiu admitir ao ensino superior, numa das maiores universidades do País, com sede em Maputo. O namoro de Samira e Ramiro passou a ser alimentado por longas juras de amor ao telemóvel e promessas de um futuro diferente. O contrato entre o casal era de que, independentemente das circunstâncias, todos os meses de Dezembro, Ramiro tinha de voltar à casa para estar com sua amada.
A promessa foi por quatro anos cumprida, mesmo diante do fogo cruzado ao longo da Estrada Nacional (EN1) entre as forças governamentais e os homens armados da Renamo; Ramiro arriscava tudo para ver a sua amada, entretanto tudo viria a mudar quando a família da Samira conseguiu inscrever a mesma na Universidade Católica de Moçambique (UCM) delegação de Nampula. Um ano estudando em Nampula, Samira mudou totalmente, passou a gostar coisas mundanas.
Os pedidos que ela fazia para o seu amado Ramiro já não eram correspondidos. Na Universidade as colegas mudavam de telemóveis mensalmente. Tinham namorados que traziam as mesmas de carros particulares e nos intervalos alugavam a lanchonete e nos finais de semana estavam em discotecas e grooves nas praias de Ilha de Moçambique e Chocas Mar. O Ramiro andava atolado na busca por uma oportunidade de emprego na capital. Finalmente, Ramiro conseguiu. Samira já estava num outro relacionamento com um cidadão da Guiné Conacri.
No início, o relacionamento entre Samira e o novo companheiro dela era uma maravilha. Ele bancava todas as contas. Ramiro conseguiu um emprego, onde em seis meses foi nomeado assessor da instituição, tinha um bom salário e condições para viver. Sem saber da situação da amada, Ramiro pagava as mensalidades da Samira e enviava alguma mesada para a mesma. Levou muito tempo, Samira já não queria mais nada com o Ramiro. Samira recebeu um pedido do companheiro guineense para viverem juntos.
A vida seguia normalmente. Samira engravidou. Os negócios do companheiro corriam bem. Ela abandonou a formação e passou a dedicar-se mais ao companheiro e no desenvolvimento familiar. O projecto de vida entre eles estava bem encaminhado. De repente, tudo mudou. O companheiro guineense da Samira virou violento. Eram socos no estômago ao pequeno-almoço, chapadas na cara ao almoço e pontapés ao jantar. Com sete meses de gestação, o guineense deu um soco na barriga da Samira e pediu divórcio, mas na esperança de manter o lar, a Samira suportou tudo.
Dois meses depois veio ao mundo, o filho do casal. Com os valores acumulados por debaixo do colchão e nas contas bancárias da Samira. Dias depois o companheiro contou que o pai havia perdido a vida em Conacri e que ele precisava viajar para lá. O companheiro guineense exigiu que ela entregasse todo valor porque ele tinha que seguir com a viagem para o inteiro e eis que a mesma levantou o valor e facultou-lhe. Lá foi ele para Conacri.
Com a estória do falecimento contada em Moçambique, enquanto em Conacri esperava-se um noivo para o casamento do ano. Que esteve em Moçambique a trabalhar e a organizar o futuro da família. Em Moçambique, o guineense havia enrolado uma família larga e contado uma longa-metragem. No noivado com a Samira, ele apresentou uns conterrâneos como parentes legítimos que o representaram. No entanto, o visado em questão tinha outros planos.
Chegou em Conacri casou-se com uma companheira de longa data. As fotos do evento foram parar nas redes sociais. Com a legenda em francês diziam "mariage de l'année...Le couple de l'année" que significa "casamento do ano... o casal do ano". Do modo como a farsa estava montada, até o mesmo bloqueou nas redes sociais a esposa moçambicana. Entretanto, o mesmo "esqueceu-se" que as irmãs da Samira acompanhavam sua "maratona digital" e dada às facilidades que o facebook permite ultimamente, as irmãs traduziram a legenda acima mencionada e descobriram que o cunhado havia casado com uma outra mulher e que não havia perdido nenhum parente, mas sim acabava de acrescentar mais uma parente.
Sem alternativas, as irmãs comunicaram a Samira da situação, agoniada e desesperada. Samira mergulhou-se em lágrimas com um filho recém-nascido. O companheiro guineense não mantinha contacto com a mesma num intervalo de seis meses. Estranhamente, neste período, alguns conterrâneos do guineense começaram a pressionar a moçoila para abandonar a casa e deixar tudo que estava no interior da residência.
Samira resistiu e passando algum tempo o guineense voltou sem nada. O valor todo que haviam acumulado para o projecto familiar, acabava de ser torrado no novo matrimónio contraído em Conacri. Em território moçambicano, o guineense procurou a Samira para reatar a relação. A pressão e as bofetadas eram tantas que mesmo no momento de reconciliação o guineense chegou embriagado, pegou num copo e atingiu a Samira na testa. Em pouco tempo a face estava toda inchada. Foram dias de agonia e dor.
Diante do sofrimento, Samira abandonou a residência e voltou para sua casa. Entretanto, dias depois o guineense regressou a sua procura; queria amantizar com ela. Uma mulher que ele havia burlado sentimentalmente. A Samira hoje vive traumatizada e diante de várias lembranças, sempre aparece na memória dela o seu amor de Quelimane, Ramiro, o jovem rejeitado na altura por não ter melhores condições que o guineense.
Em Setembro último, a digníssima Pê-Gê-Ere doutora Beatriz Buchili enviou um grupo de procuradores para ouvirem o antigo Presidente da República, Armando Guebuza, no âmbito de um Processo Autónomo em curso na Pê-Gê-Ere sobre a famigerada 'escandaleira' das dívidas ocultas. Em resposta, Guebuza disse simplesmente que não tinha apontamentos sobre essa matéria, que nunca tinha ouvido falar disso e que nem sabia de que disciplina se tratava. Por fim, Guebuza remeteu a Pê-Gê-Ere a falar com o antigo Ministro da Defesa que, segundo Guebuza, sabia de tudo.
De lá a esta parte, a doutora Buchili ficou zwiiiiiii... num silêncio pós-orgasmico. A madame não apareceu mais. Não falou mais nada. Deve estar a suar para descobrir quem é esse antigo Ministro da Defesa, onde vive, onde trabalha. Até deve estar a pensar que o velho Tchembene lhe matrecou, do tipo 'xeee, se nós não tínhamos Ministro da Defesa no antigo governo!' Ou, então, deve estar a pensar que era Manuel Chang. Ya, do tipo Chang era o mega-ministro da Defesa e Finanças.
Peça ajuda, doutora! Se não conhece onde vive o antigo Ministro da Defesa, peça ajuda. Se não conhece onde é o seu atual gabinete, nós estamos aqui, como sempre. Nós conhecemos a geografia deste país como a palma da mão. Aquele velho hábito de se meter na vida alheia tem lá as suas vantagens. Podemos usá-lo a favor dos interesses do Estado.
Se a doutora já não se lembra do antigo Ministro da Defesa, é compreensível. A doutora trabalha maningue. É normal que se esqueça de algumas caras. Então, fale conosco, doutora! Nós estamos a monitorar essa cena. Não nos esquecemos das pessoas facilmente. É fofoca, sim; mas é para ajudar. Aquilo que em sociologia chamaríamos de fofoca ao serviço da verdade. A bisbilhotice a favor da unidade nacional. Só queremos facilitar as coisas. Contacte-nos!
Este assunto está longo demais. É muita lerdice. Não podemos atrasar pôr pessoas na cadeia por causa de esquecimento. Quando o assunto é devolver dinheiro do povo não podemos gaguejar. Se a missão é pegar quem enfiou abacaxi na gente que sejamos céleres. Este filme está todo em câmera lenta. Não pode.
Não se acanhe, doutora! Um mês a procurar um antigo Ministro não é normal. Peça ajuda! Seja humilde! Nós já notamos que a doutora não faz ideia de quem seja a pessoa. Mas nós estamos aqui. Lance um anúncio 'procuro pessoas para me acompanharem à casa ou ao escritório do antigo Ministro da Defesa, de BORLA' e veja como o povo moçambicano é solidário. Lance uma campanha 'a fofoca ao serviço do Estado' e veja até onde vai a boa fé deste povo. Use e abuse.
- Co'licença!
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Nos últimos meses um dos pratos fortes da media é a corrida eleitoral para a presidência americana. Hoje, 3 de Novembro, é o dia decisivo. Fora as candidaturas o que me chama atenção é a “ausência” do homólogo americano do nosso presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Cheikh Abdul Carimo. Daí a pergunta se alguém o terá visto ou, e é possível, que tal figura nem exista na América.
Faço a pergunta porque não estou habituado a ver eleições em que os organizadores não são os principais protagonistas ou mesmo em que os candidatos sejam os principais protagonistas. Por cá, a Pérola do índico, a CNE/STAE é o centro das eleições. Esta é mais famosa do que os candidatos e de longe dos respectivos manifestos eleitorais. Por cá o debate político não é entre os candidatos, mas sim no seio da CNE/STAE. E como se não bastasse, posso estar enganado, a nossa CNE/STAE dá a sensação de funcionar como se fosse o Colégio Eleitoral para os americanos que é quem, na verdade, elege o presidente da nação mais poderosa do mundo.
Em síntese, e para terminar (hoje tenho pouco tempo por força das eleições americanas) passo a concluir, e a propósito do título do texto, que o homólogo americano da nossa CNE/STAE é o Colégio Eleitoral e este, pelo que eu saiba, não anda desparecido. Isto, pelo menos, até ao anúncio dos resultados da eleição americana, pois, em caso de derrota de Trump (candidato republicano), é bem possível que o homólogo americano do Cheikh Abdul Carimo ( ou figura similar) venha a terreiro e passe a ser a figura principal. Afinal de contas, e mesmo a fechar, a Pérola do Índico também consegue interferir nas eleições da nação mais poderosa do mundo. Aliás, há poucos dias, tal não deixou dúvidas quando uma comitiva de Biden (candidato democrata) foi impedida de fazer campanha no Estado de Texas, uma espécie de província de Gaza para os republicanos.
“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”
Começa assim Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade), de Nely Nyaka, o prodigioso relato e testemunho e testamento da Vovó Nely. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.
Vovó Nely é uma das grandes intérpretes do devir moçambicano. Não só pela sua experiência, mas sobretudo pelo seu exemplo e valores. Neste livro, editado pela Marimbique, em 2018, cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade.
Os pais, Jinita e Jeremia, a KaTembe, Lourenço Marques, a vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), a casa e os rituais, o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento.
A Moamba e a vida lá nas terras do Sabié. O nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.
O livro fala dos alvores da Independência, do 7 de Setembro, do Governo de Transição, do entusiasmo e da euforia, de Samora Machel, dos erros da nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, dos excessos da revolução, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos.
Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.
Aqui estão 100 anos de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona-me sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar. O acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação”, uma expressão felicíssima.
O ingente livro de contos Nós Matámos o Cão Tinhoso (1964) ou mesmo o recente e brilhante livro de ensaios A Velha Casa de Madeira e Zinco (2017), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis Memórias (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra O Algodão e o Ouro (1995), cruzam-se com este (2018), de Nely Nyaka, e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum. Uma mesma ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética.
Não deixo de assinalar que vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência em que nos atolamos.
O lançamento deste livro, em Novembro de 2018, nos seus 98 anos, foi um momento de júbilo, facto que hoje não se repetiria dadas as circunstâncias supervenientes deste ano pandémico. O átrio do Museu dos CFM estava cheio: filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores. Quando chegou o momento de a autora se pronunciar, ela fez uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.
A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
...os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.
Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.
Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.
Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.
No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.
Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.
E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.
Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.
Quero orar pela nossa terra.
A nossa terra vive tempos muito atribulados.”
“Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e aqui está o seu livro, a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Aqui está ela nos seus belos 100 anos! Deus deu-lhe esse tempo e essa força. Espero que a oiça quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.
KaMpfumu, 2 de Novembro de 2020
Neste Novembro que iniciou ontem, passarão 20 anos após o brutal assassinato que tirou a vida ao maior jornalista moçambicano, Carlos Cardoso. Sua assassinada partida violentou nosso imaginário colectivo. CC era um farol contra a corrupção e a delapidação do bem público, como ele gostava de dizer. Um porta-estandarte da integridade. Seus algozes, foram, por decisão judicial, julgados e condenados. Menos mal!
Mas abater Cardoso fez o favor a toda uma classe política e empresária entulhada na improbidade e ameaçada pelas investigações do jornalista. Em Novembro de 2000, Carlos Cardoso tinha em seus rabiscos um conjunto de temas sob escrutínio, envolvendo a grande corrupção, centrada nas fraudes bancárias e do tesouro, na expropriação do solo urbano, no tráfico de drogas e de influências, na lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito.
Seu assassinato teve um efeito imediato perverso. O jornalismo de investigação tinha sido directamente visado. O medo se instalou nas redacções. Houve quem baixou a caneta. Cardoso formara muitos jornalistas, desde os anos 80, na AIM, mas nem todos fizeram germinar em si as sementes da investigação. Com seu assassinato, houve quase que um acanhamento geral. Poucos jornais, como os da Mediacoop, davam alguns ares da sua graça. A corrupção e o crime organizados andavam de vento em popa. Temia-se que com o seu assassinado, tudo o que ele plantara tinha morrido. Mas ele deixara afinal um grande legado.
O grande legado de Carlos Cardoso foram as sementes da irreverência que ele lançou. Não foram pessoas em concreto. Foram modos de ser e de estar, o direito à indignação, o abraço à investigação, a críticas aos poderes públicos. Cardoso mostrou que a democracia não se compadece com a censura.
Uma organização que bem abraçou o legado de Carlos Cardoso foi o CIP. Ao agarrar a luta contra a corrupção e a defesa da transparência, o CIP retoma de certa a agenda e as lutas de CC, agora com outras metodologias em complementaridade com o jornalismo investigativo, e outros referenciais teóricos.
Esta organização foi uma reencarnação dos ideais de CC. E berço do activismo conro em prol da integridade, defesa do bem publico. Ao ser replicado por outras organizações, o âmbito temático do CIP acaba espalhando as raízes da irreverência, cultivadas por Carlos Cardoso.
O legado de Carlos Cardoso está vivo e recomenda-se: a sociedade civil de Moçambique, incluindo o jornalismo está vibrante, activa e vigilante. E cada vez sendo replicadas por novas organizações, surgindo como cogumelos que lutam contra a improbidade.
Vinte anos depois da sua partida, e- gratificante constatar que a obra de Carlos Cardoso transcendeu a efemeridade de uma notícia ou reportagem estampada num jornal. E é isso que os moçambicanos deveriam estar a celebrar neste Novembro: celebrar a obra profunda de CC. É isso que estamos a fazer aqui na “Carta”, jornal lançado justamente a 22 de Novembro, o dia trágico do jornalismo moçambicanos.(Marcelo Mosse)
No passado mês de Setembro, o jornalista de “Carta”, Omardine Omar percorreu os atalhos lamacentos da criminalidade ambiental, em Manica e Tete. Farejou a mineração informal (não necessariamente ilegal) e vasculhou evidências e percepções sobre o contrabando de madeira. No caso do contrabando de madeira, ele descobriu uma evidência aterradora: Moçambique está promovendo o contrabando transnacional de madeira. Toneladas de toros de kula entram em Tete, provenientes da Zâmbia. A kula é proibida em Moçambique por domesticação de convenção internacional.
Por outro lado, o contrabando interno de madeira continua na ordem do dia. Durante a tutela do Ministro Celso Correia sobre o sector (nomeadamente, no MITADER), criou-se, e bem, a percepção de que o contrabando tinha sido vencido. Ele abraçou o confisco de madeira ilegal e viabilizou o “enforcement” da legislação que proíbe a comercialização internacional de determinadas espécies.
Essa situação óptima de gestão florestal foi temporária. Vingou apenas no consulado do Ministro. Aliás, durou poucos meses. O “lobby” do contrabando, algum promovido no quadro de uma cooperação perniciosa com a China, conseguiu impor-se. Já não há “enforcement”. A mão de ferro de Celso Correia foi sol de pouca dura. O retrato actual do sector é caótico. E isso leva-nos a uma questão: de que vale uma situação óptima de gestão pública se ela não é duradoura e depende de uma liderança temporária?
O caso do contrabando transnacional mostra a calamidade da gestão pública neste sector. A corrupção impera. Tornou-se modo de vida, uma forma “desigualitária” de redistribuição da riqueza, com enormes bolsas de rendas, uma economia de rapina do erário público. Isto mostra que uma “liderança” sozinha de nada vale se ela não for complementada por outros ingredientes de gestão e “enforcement”. Eis que nos falta! Em suma, uma liderança vale se ela for douradoura. Sem outros condimentos, um novo “set up” organizacional, ela é efémera. Vale o que vale!