O CEO e presidente executivo da Câmara Africana de Energia, NJ Ayuk, defendeu o desenvolvimento de recursos de gás natural em Moçambique para fazer crescer a economia do país
MAPUTO, Moçambique, 21 de outubro 2020/ -- Por Florival Mucave, Presidente Executivo, Câmara de Petróleo e Gás de Moçambique
Já há demasiado tempo que as descrições que se fazem de Moçambique contêm alguma variação do seguinte: Moçambique, um dos países menos desenvolvidos e mais pobres do mundo, enfrenta secas endémicas, inundações e pobreza generalizada.
Mas hoje estamos mais perto do que nunca de mudar essa narrativa, de sermos capazes de dizer: Ao gerir estrategicamente os seus vastos recursos de gás natural, monetizando-os e aproveitando-os para industrializar a nação e desenvolver o sector privado em todo o país, Moçambique está a entrar numa nova era de crescimento económico generalizado e de estabilidade.
Infelizmente, nem todos concordam com esta visão. Uma série de organizações ambientais argumentam que os benefícios da produção de gás natural em Moçambique são insignificantes e não compensam os custos ambientais.
No mês passado, o CEO e presidente executivo da Câmara Africana de Energia, NJ Ayuk, defendeu o desenvolvimento de recursos de gás natural em Moçambique para fazer crescer a economia do país. Ele criticou alguns grupos ambientalistas - a associação Friends of the Earth com sede no Reino Unido em particular - por tentarem interferir na promessa de financiamento de mil milhões de dólares do governo do Reino Unido para o Projeto de Gás Natural Liquefeito (GNL) da Total em Moçambique. (A agência de crédito para exportação UK Export Finance, concordou em contribuir com financiamento devido ao potencial do projeto para transformar o orçamento estatal de Moçambique e criar empregos no Reino Unido.)
Pouco depois de Ayuk lançar o seu artigo, a jornalista Ilham Rawoot, que trabalha para a Friends of the Earth Moçambique (Justiça Ambiental) e é a coordenadora da organização da campanha No to Gas!, respondeu com um artigo de opinião igualmente apaixonado opondo-se à sua posição. Ela questionou o comentário do Sr. Ayuk sobre a interferência dos ambientalistas e as suas opiniões sobre os benefícios potenciais do GNL, e afirmou que Moçambique estaria melhor sem a produção de gás natural ou projectos de GNL.
Eu respeito o direito da Sra. Rawoot de expressar as suas opiniões sobre África ou qualquer outro assunto.
Só desejo que ela, e outros que pretendam dizer “não ao gás” em Moçambique, possam começar por fazer uma análise aprofundada sobre os prós e os contras de Moçambique desenvolver as suas vastas reservas de gás natural, que considerem os efeitos colaterais e multiplicadores em termos de desenvolvimento socioeconómico, desde a formação e capacitação, emprego, receitas do governo, industrialização, passando pela utilização do gás doméstico e segurança energética. A produção de gás natural representa verdadeiramente uma oportunidade para os moçambicanos e existem razões sólidas para acreditar que Moçambique pode dar os passos necessários para colher benefícios significativos dos três projectos de GNL que aqui estão a ser desenvolvidos: o projecto de GNL da Total, avaliado em 23 mil milhões de dólares; o projeto Rovuma liderado pela ExxonMobil avaliado em 23,9 mil milhões de dólares; e o projeto Coral Floating LNG de 4,7 mil milhões de dólares. Mas não apenas isso, eu já testemunhei o impacto positivo das indústrias de gás natural noutras regiões, de Trinidad e Tobago, ao Qatar, à Nigéria, à Austrália, à Noruega e nos Estados Unidos da América. Estas são algumas das razões pelas quais estou confiante quando digo que os moçambicanos podem mudar a trajectória do nosso país para melhor: Podemos transformar a nossa realidade e deixarmos de ser pobres apesar dos nossos recursos, para passarmos a prosperar por causa deles.
Precisamos desta oportunidade
Do meu ponto de vista, devemos abraçar a indústria do gás natural de Moçambique e os projectos de GNL, acima de tudo porque existem evidências empíricas que demonstram que em Moçambique, os benefícios tangíveis resultantes dos projectos de GNL superam de longe qualquer impacto negativo. Actualmente, as oportunidades económicas em Moçambique são mínimas e a produção de gás natural tem o potencial de satisfazer simultaneamente várias necessidades prementes: criar emprego, capacitar, diversificar a economia, dar acesso à energia e, acima de tudo, reduzir a pobreza.
Para ter um desenvolvimento económico sustentável, através da industrialização, Moçambique precisa de expandir o acesso à electricidade. A Lei Moçambicana do Petróleo 21/2014, afirma que “Os recursos petrolíferos são ativos cuja exploração adequada pode contribuir significativamente para o desenvolvimento nacional”. Esta posição também encontra eco no Plano Director de Gás de Moçambique, que sugere que o Governo de Moçambique deve desenvolver os recursos naturais de forma a maximizar os benefícios para a sociedade moçambicana, de forma a melhorar a qualidade de vida do povo moçambicano, minimizando os impactos sociais e ambientais adversos.
Muitas das nossas dificuldades em Moçambique estão enraizadas na falta crónica de acesso fiável à eletricidade: Apenas 29% da nossa população tem acesso a energia. Para fazer face a este acesso limitado à energia por parte dos moçambicanos, a Lei do Petróleo 21/2014, incorpora uma cláusula sobre o gás doméstico, segundo a qual 25% do gás natural produzido em Moçambique deve ser utilizado no mercado interno. Como resultado das obrigações de gás doméstico, estamos a começar a ver novos investimentos consideráveis em projetos de Gas-To-Power em Moçambique, como o Projeto Ressano Garcia CTRG, o projeto de Kuvaninga, o Projeto de Eletricidade Regional de Temane, que deverá começar em breve e que incluirá uma central eléctrica a gás de 400 megawatts, e a planta elétrica de 250 megawatts planeada para o distrito de Nacala, que funcionará com gás da Bacia do Rovuma, em Moçambique.
Mantenha em Mente a Estratégia de Longo Prazo
No seu artigo de opinião, a Sra. Rawoot afirma que poucos dos trabalhos de construção envolvidos na planta de GNL da Total foram para empresas locais, e ela está correcta. Mas, para que sejamos justos, temos de reconhecer que a indústria de GNL em Moçambique está na sua infância e ainda não temos mão de obra treinada capaz de participar na indústria de petróleo e gás. Por muito que adorássemos ter uma maioria de 70% de moçambicanos a construir tudo, ainda precisamos de empresas internacionais com as capacidades necessárias para fazer o trabalho dentro do prazo e do orçamento. A capacitação está a avançar, mas a experiência e o know-how técnico ainda não estão ao nível necessário. No entanto, isso não significa que devemos bloquear os projetos. Temos de avançar e, ao mesmo tempo, trabalhar na construção de leis de conteúdo local que promovam a participação inclusiva dos moçambicanos na indústria de petróleo e gás. Espero ver a comunidade ambientalista ocidental a apoiar esses esforços. A sua pode ser uma voz poderosa e influente na defesa da importância de uma política de conteúdo local que promova a participação inclusiva e sustentável dos moçambicanos nos projetos de petróleo e gás.
Quando a Câmara de Petróleo e Gás de Moçambique e a Câmara Africana de Energia falam sobre a criação de empregos a partir de projetos de GNL, não estamos a referir-nos simplesmente a empregos na área da construção. Estamos também a falar de empregos de topo e altamente qualificados nas centrais quando estas estiverem operacionais, empregos em empresas locais contratadas pelas centrais e também empregos criados à medida que Moçambique aproveita a sua indústria de gás natural para industrializar a sua economia.
O Gás é só o começo!
A indústria do turismo na África Austral estava a crescer exponencialmente antes da Covid-19 e voltará a crescer após a pandemia. O gás natural de Moçambique pode ser um catalisador para o crescimento da indústria do turismo. O Governo de Moçambique tem o turismo como um dos seus pilares económicos e embora a indústria do turismo tenha sido gravemente afectada pelos ciclones e pela Covid-19, o seu grande potencial permanece inexplorado.
Apesar do seu grande potencial, a indústria do turismo de Moçambique não será capaz de crescer e florescer sem uma rede eléctrica fiável. Mesmo com as nossas praias paradisíacas e algumas das ilhas mais bonitas do mundo, serão poucos os turistas que virão se não tivermos acesso fiável a energia. Queremos que os turistas possam desfrutar do nosso belo país e queremos um setor de turismo dinâmico que contribua para o crescimento económico de longo prazo e a criação de empregos. Para conseguir isso, precisamos de energia fiável, precisamos de infraestrutura. Moçambique pode conseguir tudo isso com a produção e as receitas que vêm do GNL.
O Impacto da Produção de Gás Natural na Indústria Agrícola de Moçambique
No seu plano económico a cinco anos, o Governo de Moçambique indicou a agricultura como a sua principal prioridade. Atualmente, quase 80% da nossa população trabalha no setor agrícola, que gera cerca de 25% do nosso PIB. No entanto, devido aos baixos níveis de produtividade, muitos dos nossos agricultores ainda vivem na pobreza extrema. Mas isto pode mudar. Simplesmente usando fertilizantes, os agricultores podem aumentar o seu rendimento em quase 40%. Embora os fertilizantes importados sejam muito caros para a maioria dos nossos agricultores, Moçambique pode criar uma opção mais acessível. Ao construir infra-estruturas para transformar gás natural em fertilizantes à base de azoto, Moçambique não só ajudaria os seus agricultores, mas também criaria oportunidades de emprego locais. Moçambique pode reduzir significativamente as suas importações de produtos agrícolas da África do Sul e tornar-se uma fonte acessível de alimentos para consumo interno.
A monetização do gás natural é viável
Compreendo porque é que alguns são céticos quanto à capacidade e determinação de Moçambique para gerir as receitas do GNL de uma forma que beneficia a nossa população. É verdade: a indústria do petróleo e do gás nem sempre foi boa para o povo de África. Nós vimos a nossa cota-parte de governos corruptos e rentistas no continente africano. Também vimos o impacto da maldição dos recursos, mesmo da maldição pré-recursos. É por isso que a Câmara de Petróleo e Gás de Moçambique, o Sr. Ayuk, a Câmara Africana de Energia e outras organizações africanas de petróleo e gás estão a trabalhar em conjunto para mudar a narrativa sombria da indústria de petróleo e gás em África. Somos novas vozes africanas na indústria, dedicadas à transparência, à boa governança, ao crescimento económico e ao desenvolvimento sustentável.
Estou certo de que Moçambique pode beneficiar das dolorosas lições que alguns países africanos produtores de petróleo aprenderam até agora, desde políticas desastrosas até à diversificação bem sucedida das suas economias. Também podemos aprender com exemplos positivos, como a ilha-gémea de Trinidad e Tobago, que, como Moçambique, possui reservas consideráveis de gás natural. Iniciativas governamentais em Trinidad e Tobago levaram a investimentos estrangeiros significativos em projetos de downstream de gás. E isso, por sua vez, gerou uma maior atividade nos setores de construção, distribuição, transporte e manufactura.
Olhando para as emissões em proporção
Naturalmente, proteger o meio ambiente é uma grande preocupação para a Sra. Rawoot, a Justiça Ambiental e organizações semelhantes - e é muito importante para nós.
Espera-se que o consumo de eletricidade a nível global aumente 70% até 2035, com a geração eléctrica à base de gás quase a duplicar para responder a esse aumento. Também se espera que a participação do gás natural na matriz energética global seja maior do que a do carvão e do petróleo até 2035.
O crescimento projectado para o setor da energia deve levar em consideração as crescentes preocupações em relação às mudanças climáticas. Porém, o combate eficaz às mudanças climáticas não deve entrar em conflito com o progresso humano e a redução da pobreza.
No que diz respeito ao gás natural, a sua influência na redução das emissões de dióxido de carbono (CO2) é significativo, visto que o gás natural com menor teor de carbono padrão de 15,3 Kg / GJ, é uma opção mais limpa em relação ao carvão (25,8 Kg / GJ) e ao petróleo bruto (20 Kg / GJ). O gás natural é de facto uma opção para cumprir as metas de emissões industriais. Por outras palavras, o gás natural é um combustível de transição, pois fornece uma alternativa energética de baixo carbono em comparação com outros combustíveis fósseis.
E quanto ao impacto ambiental potencial do uso de gás natural para gerar energia em África?
Estima-se que, se triplicarmos o consumo de eletricidade na África Subsaariana, tudo com gás natural, produziremos o equivalente a 0,62% das emissões globais anuais - menos do que o aumento global médio anual na última década.
Em Moçambique, dada a nossa propensão natural para ciclones e outras catástrofes naturais, proteger os nossos habitats naturais e a vida selvagem, bem como manter o planeta saudável para as gerações futuras, tem sido uma prioridade e continuará a ser. No entanto, em vez de descartar projetos de GNL, devemos trabalhar juntos para encontrar uma maneira de desenvolvê-los de maneira ambientalmente responsável.
Os Moçambicanos têm uma palavra a dizer no Processo de Relocalização de Afungi
No seu artigo de opinião, a Sra. Rawoot argumenta que a planta de GNL da Total não representa apenas uma ameaça ambiental, mas também uma ameaça para as pessoas e comunidades locais. A Total, ela escreve, retirou os lares a 556 famílias para construir o seu projeto da central de GNL e não as compensou de forma justa. Essas alegações são infundadas. Este é um assunto que foi amplamente discutido entre a sociedade civil e o Governo moçambicano. Atualmente, o governo está envolvido em conversas produtivas com cidadãos e empresas sobre o assunto. Além disso, as empresas de petróleo e gás em Moçambique têm sido muito sensíveis às questões que afetam as comunidades e têm incentivado as comunidades a serem ativas no processo de aquisição de terras, um processo que inclui relocalização, compensação, restauro de meios de subsistência e a criação de um fundo de desenvolvimento comunitário para comunidades afetadas pelo processo. Além disso, por meio de uma organização não governamental (ONG), foi prestada assistência jurídica às famílias que assinaram acordos de compensação e relocalização.
Vamos remover um motivador de violência
Não vou negar o ponto da Sra. Rawoot de que Moçambique tem conflitos, incluindo conflitos armados e ataques terroristas. A insurgência em Cabo-Delgado é um facto e não existe uma solução simples para este dilema. No entanto, acredito que o nosso governo em parceria com a sociedade civil e a comunidade internacional chegará a uma solução pacífica duradoura, condição sine qua non para a exploração viável do gás natural em Cabo-Delgado.
Também concordo com o jornalista Oscar Kimanuka, do Ruanda, que observou recentemente que o desemprego no norte de Moçambique pode ser um fator chave para os jovens se juntarem aos extremistas.
Parece lógico, então, que a criação de oportunidades de emprego poderia, pelo menos, tornar mais difícil para grupos militantes extremistas e terroristas recrutar os nossos jovens. Portanto, aproveitar os nossos recursos de gás natural para fazer a nossa economia crescer é uma solução sustentável.
Os moçambicanos merecem a chance de se ajudarem
Eu entendo que Moçambique tem a sua cota-parte de desafios complexos e o gás natural não é uma solução perfeita. Ao mesmo tempo, é absurdo que a Sra. Rawoot sugira que Moçambique deva comprometer um investimento projectado em GNL de aproximadamente 55 mil milhões de dólares, equivalente a quatro vezes o tamanho do PIB do país, e renunciar às receitas do Governo nos próximos 25 anos que se estima irão aumentar em 4-5 mil milhões de dólares por ano.
Moçambique não pode dar-se ao luxo de continuar a ser um país onde o orçamento do nosso Governo depende da boa vontade de dadores internacionais. Queremos que os moçambicanos tenham a dignidade do trabalho e da construção de uma nação inclusiva e respeitável. Aproveitar o gás natural para lidar com a redução da pobreza é uma solução adequada.
Chama-se Awa, a menina que nasceu na segunda-feira, 19.10.20, nas cristalinas e ondulantes águas que banham a 3.ª maior baía do mundo, Pemba. Awa que na perspectiva teológica (islâmica) significa Eva, a companheira de Adão (Adán) – os primeiros seres humanos da humanidade. Nasceu no centro do furacão – terrorismo.
Awa é um milagre da mãe Muaziza Nfalume que procurava a todo custo fugir as atrocidades dos terroristas, a fome, a sede e as doenças em Matemo. A Awa não conseguiu esperar para ver a realidade que atormenta a sua progenitora e seus próximos. A princesa Awa nasceu num momento difícil…
Ela veio como um pássaro, sedenta de liberdade e ar livre para voar. Ela nasceu num manto de perigos, mas quiseram as forças vitais que a princesa Awa nascesse saudável e num momento histórico. Quis o destino que a mãe não caísse nas incursões violentas e desumanas dos terroristas. Quis o destino que ela vencesse os perigos do mar e da guerra e chegasse a Pemba como mais uma deslocada.
A princesa Awa precisa de um aconchego e segurança, tal como outras crianças, mulheres, adultos e idosos que vivem as sinuosidades de uma guerra que no princípio foi vista e tratada como mais um acto de banditismo; e hoje transformou-se numa calamidade nacional e internacional.
A princesa Awa e outras crianças precisam de acolhimento e um lugar para crescerem seguras. Um dia ela saberá como veio ao mundo e os riscos que a mãe Muaziza teve que suportar e atravessar naquele barco a vela cheio de pessoas doentes, famintas e banhadas de medo!
A princesa Awa é uma deslocada de guerra que nasceu distante dos seus ancestrais e dos hábitos e costumes dos seus progenitores. A Awa vai precisar de um lugar melhor para crescer, desenvolver-se e viver sem medo do terror.
A situação de Cabo Delgado está a cada dia a deteriora-se. Há três anos que a banalização da vida humana se instalou nos distritos de Mocímboa da Praia, Macomia, Quissanga, Muidumbe, Nangade, Ibo, Meluco, Palma e algumas aldeias de Mueda. Em Cabo Delgado, duas mil vidas perderam-se, mais de 370 mil pessoas encontram-se deslocadas e já afectou mais de 700 mil, entre elas crianças como a princesa Awa que correm o risco de murcharem se algo de concreto não for feito por aqueles que detêm o poder decisório – garantir a protecção e o valor da vida humana.
Os deslocados chegam precisando de tudo. Segurança, aconchego, comida, saúde e oportunidade de recomeçar, por isso precisa-se fazer e dizer...
Ode a todas as crianças.
“Porque carga de águas a paz é a excepção e não a regra (em Moçambique e no mundo)?”. Perguntei a um amigo, no quadro do mês da celebração do dia da paz (04 de Outubro) cuja trajectória nacional (ontem, hoje e amanhã) passei-a, em revista, num texto anterior (O Dossier da Paz).). “Porque a paz éum assuntode amantes”. Assim,e prontamente,respondeu o citado amigo, concluindo, em seguida, e com ares de sabichão: “Que falar de amantes é falar de Casa2, uma matéria, que fora complexa, é igualmentedo foro da excepção”. E para completar a resposta, caso ainda persistissem dúvidas, o amigo ainda sugeriuque eu consultasse a Carta das Nações Unidas, a sua fonte.
Dei-me tempo para uma leitura rápida da Carta. Voltei à conversa e perante os parcos resultados da minha pesquisa,o meu amigo reiterou a complexidade do assunto,o que me valeu um perdão, e um TPC: ler o número 1 do artigo 4”.Assim procedi. “A admissão como membro das Nações Unidas fica aberta a todos os Estados amantes da paz…”. Ainda decorria a leitura e de repente umbrusco e sonoro ”Para ai mesmo”seguido deumapausada e objectiva chamada de atenção: “Viste bem: amantes da paz e não cônjuges da paz”. Na sequência, e em jeito de xeque-mate, ele conclui com a seguinte pergunta: “Como é que a guerra não prevalecerá se até asNações Unidas consagram osamantes, em detrimento dos cônjuges ou casados, como os fautores da paz?”
E a propósito: Moçambique apresentou, recentemente, a sua candidatura a membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Aliás, este assunto, o de ser membro não-permanente, e nos termos da lógica do supracitado amigo, também éda esfera da “Casa 2”, uma vez que a Carta das Nações Unidas, e quanto ao órgão em pauta, categoriza osseus membros, e mais uma vez em detrimento dos cônjuges (nível 1) em (amantes) permanentes (nível 2) e em (amantes) não permanentes (nível 3).
De toda a maneira, e brincadeiras de lado, é tempo de as Nações Unidas deixarem de ser a “Casa 2”(níveis 2 e 3) do mundo sob o risco de passarem para o nível 4, vulgo “Marandza”(alta intensidade e curta duração), e com consequências catastróficas parao sistemainternacional, sobretudo o de ordem financeiro. O alerta é vermelho (risco muito alto), agravado com a combinação explosiva dos tempos de pandemia da Covid-19 com a aproximação da época balnear e da quadra festiva, prevendo-se assim a ocorrência de avultados danos materiais, e até mesmo humanos tal o grau de severidade.
Pablo e Charles, dois amigos inseparáveis que nem o dedo e a unha. Tão amigos que chegavam a gostar da mesma mulher e até a paquera-lá. Tudo corria a mil maravilhas. Uma vida boa no sector laboral, familiar e social. As ideias coincidiam. Nunca haviam discórdias entre eles. A amizade deles era um amor profundo que até criava ciúmes as parceiras.
Pablo e Charles curtiam de verdade. Entornavam o álcool no organismo de segunda-feira a segunda-feira. A dupla era perfeita. Seja nas trapaças ou nas grandes decisões. Eram bons amigos. Eloquentes, inteligentes e crentes. Fiéis aos seus princípios. Pablo e Charles adoravam-se. Pablo e Charles compartilhavam tudo e mais nada.
Mas a estória viria a mudar quando Pablo, por sinal o mais novo, com idade de filho de Charles, ascendeu no sector laboral. Devido a sua inteligência e formação, o patronato via em Pablo, a solução dos problemas financeiros, jurídicos, sociais e relações públicas da empresa nas mãos do pequeno Pablo. Um homem extremamente inteligente e com um futuro risonho. Mas tinha o seu maior inimigo colado ao seu dedo.
Ascendência de Pablo na empresa criou mal-estar na relação entre os dois. Charles passou a conspirar contra Pablo. Quando saíam para beber e divertir-se, Charles gravava os desabafos laborais do pequeno Pablo e enviava directamente para os seus maiores adversários no sector administrativo da empresa. No dia seguinte, haviam reuniões bíblicas em que os supostos adversários despejavam tudo na cara de Pablo, tornando os seus dias na empresa contáveis.
Pablo, todo ingênuo e inocente continuava contando a sua vida para Charles, um homem adulto, doente, obcecado pelo poder, corrupto, com ambição negativa e desmedida, bêbado, desonesto e invejoso. A amizade durou por três anos. Pablo não sabia quem o traia. Apenas desconfiava. Até que depois de umas negociatas desonestas entre eles, a informação chega aos proprietários da empresa e dada ausência de Pablo que se encontrava de férias e numa situação de infelicidade. Conta ao “amigo” e este não faz chegar ao patronato e tudo começa a correr mal.
Recuando um pouco. No período em que amizade corria bem, Charles fez um empréstimo bancário e pediu que Pablo leva-se uma parte do valor para que passassem a pagar juntos durante cinco anos. Até que Pablo foi exonerado e rebaixado a categorias mais ínfimas da empresa. Íntegro e abnegado Pablo continuou trabalhando até que devido as humilhações decidiu abandonar a empresa sem pedir um centavo de indemnização a empresa.
Pablo ficou desempregado, desgraçado e sem nada. Charles passou a rir de Pablo. Afastou-se do mesmo. Pablo estava destruído e sem nada. Tinha que se reinventar para continuar a sonhar e a viver. Tinha que encontrar uma fórmula nova para rejuvenescer e continuar a viver. Sem esperança, Pablo aceitou que a vida iria mudar, mesmo que não fosse hoje, mas o amanhã será diferente e foi assim. Anos depois Pablo venceu. Revirou a situação.
Desgraçado e com o futuro sombrio, Charles voltou à carga. Voltou a perseguir o Pablo, mas desta vez foi humilhado e tratado como deveria ter sido.
Está é a estória de uma amizade que pouco durou e trouxe várias mágoas. A estória de Pablo e Charles. Dois amigos que nunca chegaram a ser verdadeiramente amigos.
Tire suas ilações. Aprenda a separar o trigo do joio. Nem todos que ti abraçam são teus amigos.
Há uma semana que havia saído de casa, e como vivo sòzinho, a música dos pássaros vai ficar sem auditório. A diarista vinha, na escala combinada, e sentia falta de mim. Abria a porta do quintal e não tinha a quem dizer bom dia. Ela tem as chaves da casa. Conquistou a minha confiança e já não há limites, dentro dos limites que a boa convivência e respeito mútuo aconselham.
Chama-se Hambvu e gosto muito dela. Mesmo assim não sei como é que está aqui comigo este tempo todo. O meu carácter é irrecomendável. Fervo em pouca água e sou capaz de pegar no ouro que me deram com amor e atirá-lo na pocilga. Já fiz isso, aliás venho fazendo isso na minha vida inconsequente. É por isso que as pessoas aproximam-se de mim, e logo no dia seguinte vão-se embora. Decepcionadas.
Hambvu é ouro puro. Sinto medo dela, todos os dias, não sei porquê. Por vezes sou impelido a ajudar em qualquer coisa e ela diz assim, deixa, tio, eu vou fazer. É uma mulher transformada numa obra grandiosa de arte pela minha imaginação. Pelos meus sentimentos humanos. Não se toca num quadro belo pendurado na parede, e Hambvu é um quadro belo que se move na minha casa. Fazendo tudo para que eu me sinta bem.
Nunca fui pessoa apaixonada pela comida, mas a comida da Hambvu mudou o meu paladar. Ando limpo, com roupa bem lavada, e tudo isso deve-se a esta mulher delicada, que merece muito mais do que aquilo que lhe pago. Aliás, sempre que chega o fim do mês, sinto que é um insulto dar-lhe aquelas migalhas, mas não posso fazer mais porque eu também recebo migalhas, então divido as minhas migalhas com Hambvu.
No quinto dia após eu ter saído de casa ela ligou para mim e perguntou, tio quando é que volta? E eu repondi, no domingo.
Na verdade eu sentia saudade da minha casa. Da Hambvu. Queria voltar para onde o meu coração bate em liberdade. Onde nas noites, depois de acompanhar os noticiários, desligo tudo, e deixo o reflexo da luz da varanda gotejar no meu quarto. E será nesse momento que vou fazer o exame da minha consciência, e o resultado é que não fiz nada de extraordinário. Sou uma mbila desafinada.
Domingo é dia do meu aniversário, e eu vou comemorar sòzinho, sem champanhe e sem ninguém para me abraçar. Mas isso não importa, o que eu quero é voltar para casa, mesmo metido neste pequeno autocarro barulhento, com gente a beber e a ouvir música em volume alto, desrespeitando as recomendações sobre a Covid-19.
Cheguei à casa exausto, são vinte e trinta. E neste estado não quero mais nada a não ser um banho e uma soupa quente que Hambvu preparou e deixou na geleira. Mas antes de abrir a porta, vejo um buquê de flores no chão. Fiquei assustado. Peguei no presente e reparei que não havia nenhuma mensagem a identificar a pessoa que me oferecia. Então o que me restava era guardar a surpresa esperar.
À noite, enquanto dormia, pensava em quem podia ser a pessoa que me trouxe as flores, mas não encontro a resposta até hoje, e já passam seis meses. A mulher mais recente que me visitava com alguma regularidade, morreu há dois anos, e de lá para cá nunca tive ninguém. Perguntei a Hambvu se tinha chegado alguém durante a minha ausência e ela respondeu assim, mas tio, aqui eu nunca vi nenhuma mulher, nem pegadas. Afinal o que é que se passa, tio?
Assim, do nada, se fez o silêncio. Condoído e melancólico. Inexplicável. No mês do professor, terminava uma viajem que parecia infinita, duma das mais profícuas e renomadas professoras que a própria Universidade Pedagógica ajudou a professorar. O vocabulário da exaltação será sempre restrito e, quiçá, repetitivo para expressar a temporalidade, a dialéctica de metamorfoses, a viagem, e o erudito. As melhores expressões se converteram em lágrimas. Uma dor profunda e uma comoção abrasiva.
Para trás, e neste cenário de incredulidade, ficou um percurso de tantos, e essenciais, livros e outros textos conjuntos e colectâneas de natureza e conteúdo académico e educativo e, acima de tudo, uma história que passou tangencialmente, ou na profundidade, pela história de outros tantos estudantes, docentes e curiosos.
E nesse instante, terminou uma fascinante aprendizagem, cuja intenção se associava a disponibilidade para olhar o mundo que nos envolve, saber escutar e, sobretudo, caminhar junto da natureza no universo das suas diferentes formas.
No ano em que a Universidade Pedagógica de Maputo, mais extensa ou confinada, celebra o seu 35º aniversário, a nossa professora Stela Mithá Duarte, também se aproximou das 35 publicações, dos 35 estudantes que orientou, das 35 conferências que organizou, dos 35 cantos da universidade que amou e dos 35 tectos que edificou. Essa, a marca do reconhecimento e da grandeza de um talento que, indelevelmente, ficará para os anais desta instituição que são o produto da revolução do 25 de Setembro, das vitórias e dos sacrifícios da independência nacional, da coragem e bravura dos melhores filhos desta pátria.
Celebramos os 35 anos de uma universidade que, na sua dimensão territorial, regional, cultural, educacional e científica, uniu e formou moçambicanos de todas as raças e etnias, das classes sociais mais desfavorecidas, das classes médias e abastadas, estrangeiros, e primou por manter presente essa busca incessante pelo conhecimento, pela pesquisa e pela extensão. A professora Stela formatou esse restrito grupo movido pelo ideal do olimpismo universitário que procurou ensinar mais, publicar mais e elevar o brilho de um país que procura o seu reencontro.
Nesta ode, não são as memórias ou as fases institucionais mais importantes, que devem ser restauradas. Serão antes, as energias que ao longo dos anos preencheram suas alegrias, os dissabores que a entristeceram, os debates que acalorou e, principalmente, as virtudes que foi estimulando e que engrandeceram este longo percurso que ainda terá de ser palmilhado. A professora Stela era essa líder. Serena e resguardada, que sabia orientar e iluminar as mentes mais controversas e brilhantes.
Devolvemos o seu corpo à terra no dia do professor, na semana onde as festividades se confrontam com as vicissitudes, nos momentos em que um país inteiro é chamado à reflexão, como se as nuances educativas continuassem desconhecidas ou carecidas de debates. E sob a capa da chuva miúda e teimosa, transformamos o seu corpo em cinzas. Essa cinza, do seu corpo, que é conhecimento e que vai descer rio a baixo, por toda a extensão do Zambeze, contemplando a Chupanga de David Livingstone e desaguando nas ensobradas águas do Índico. Esta foi a sua vontade, e estas cinzas também são a história. O Zambeze se converte no rio de todas as nossas emoções.
O Zambeze se transformará num rio de energias e conhecimento secular e, igualmente, num rio universitário. As águas que nos roubaram uma companheira sóbria, destinta, amiga de todos e companheira de todas as ocasiões.
Ninguém te pede para repousares em paz, professora. Os verdadeiros professores não repousam. Não podem repousar, enquanto existirem pesquisas para escrever, enquanto não nos reconciliarmos como moçambicanos, enquanto existirem crianças e adultos analfabetos, enquanto os tabus superarem a ciência, enfim, enquanto os dissensos forem bem maiores que os consensos. A professora Stela partiu como viveu. Comungou o espírito de reconciliação. Nasceu muçulmana, cresceu católica e hindu. Na hora da partida, comungou estas três religiões, para que a sua alma pudesse partir reconcialiada. Apenas o seu corpo deixou de estar no nosso seio. (x)