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2019 foi um ano em que a política no feminino trouxe surpresas ao mundo, em português. Duas mulheres que, aparentemente não têm nada a ver, que nunca se cruzaram e não partilham dos mesmos ideais políticos, nem dos mesmos valores na conduta política destacaram-se pela negativa.  

 

Joacine Katar Moreira, guineense, radicada em Portugal e Helena Taipo, a mediática Ministra do Trabalho que interrompeu o seu percurso político, abruptamente, como Embaixadora de Moçambique em Angola, foram notícia pelas piores razões.

 

A primeira, a residir na Europa, e ainda na casa dos 30, ficou conhecida por se assumir como uma mulher “diferente”. É ridículo dizer isto nos dias de hoje, mas foi este o cartão de visita que Joacine apresentou quando transitou de ativista feminista e anti-racista para candidata a deputada do partido Livre, que se posiciona à esquerda europeísta e ecologista.  

 

Num país em que os brandos costumes racistas e os tiques colonialistas ainda estão muito presentes quando um negro ou uma negra “ousa” ser mais que uma diarista, funcionário de shopping ou ultrapassar a barreira do sector terciário, Joacine apresentou mais uma carta ao baralho rumo às eleições – a sua gaguez.

 

A partir daí passou a ser uma espécie de most wanted. Tudo o que era jornal digital, impresso, programa de tv generalista, de informação, cor-de-rosa, amarelo e azul descobriu a pólvora, aliás a futura deputada.

 

Os politicamente corretos, mais conhecidos em Portugal como a “Esquerda Caviar”, uma espécie de Louis XIII da Rémy Martin do conhaque, já que é muito novo rico beber champanhe, apoiaram-na com unhas e dentes. E quem discordasse ou se opusesse a esta candidatura era racista ou intolerante. Como a nossa realidade. Ou és do partido do poder ou estás contra. Foi eleita em Lisboa, como cabeça de lista do partido Livre, e nas freguesias mais endinheiradas da capital.

 

Todo este processo foi mediático, com uma identidade própria que fazia transparecer uma posição global alinhada ao partido. A senhora deputada soube usufruir do palco que lhe foi dado. Da piada que lhe achavam, como dizem na Tuga, tal como nós vibrávamos com as ações da Ministra do Trabalho.

 

Cada vez que a Dra. Helena Taipo encerrava uma empresa de um estrangeiro, considerada ilegal, ou eram denunciados maus tratos a nacionais era aplicada a “quase” a lei de 20/24 para a empresa sair do país. Todos a considerávamos a Super Ministra e ficávamos à espera de assistir mais notícias na televisão sobre as suas emboscadas e as denúncias que chegavam ao Ministério do Trabalho, quase em tempo real. Tornando-se assim a dirigente mais televisiva da governação Guebuza.  

 

Mas há sempre os bastidores destas jogadas políticas. Se por um lado, em Portugal, a deputada Joacine não entendeu que em política ser camarada é um juramento, em Moçambique a camaradagem levou Helena Taipo para trás das grades.

 

Em jornalismo também usamos este termo que vai muito para além de uma palavra.

 

Os camaradas não se separam. Apoiam-se. Não revelam pormenores de bastidores, Protegem-se. E Joacine, talvez pela inexperiência que teima em não assumir, já que acha que uma ativista sabe fazer política e não entende que a Sociedade Civil influencia nas políticas públicas – posição completamente diferente, mas igualmente importante - deixou-se deslumbrar pela sua subida de posto. À semelhança de Helena Taipo revela ter sede de poder e prepotência nas suas ações. Quase que se sente intocável. Um tique de muitos políticos ou aspirantes a serem-no.  

 

À primeira crise pública “denunciou” a comemoração da subvenção que o seu partido ia receber antes de “Ela” própria ser eleita. Passo a redundância. Tal como Taipo se deslumbrou pelo excesso de poder, à deputada bastou-lhe o barulho das luzes e os convites para entrevistas em programas de TV que, se não fosse candidata, teria de ligar 100 vezes para que a produção dos mesmos programas em que  participou a recebessem, em nome da associação que dirigia. Mas ficou-se aos 45 minutos do primeiro tempo. Isto é, bastou um mês e poucos dias de Assembleia da República para lhe estalar o verniz.

 

Foram quase 45 dias de redes sociais, love and hate com a imprensa e opinião pública – porque parece que ninguém pode contrariar a deputada - pois é racista, invejoso ou preconceituoso -  nenhuma ação política palpável que impacte a vida ativa dos portugueses e dos seus patrícios -  tipo uau, nós Africanos estamos orgulhosos da Mana - , uma abstenção sobre um voto de condenação à agressão israelita a Gaza e uma falha crassa no atraso da entrega da proposta da Lei da Nacionalidade, em Portugal.

 

Para muitos de nós, aqui na Pérola do Índico, o erro de Katar Moreira pode influenciar na vida ativa dos nossos familiares. Tudo bem que há outros partidos a avançar com a mesma proposta de lei e se o Governo for inteligente aprova e arruma já o assunto. Mas era parte da Bandeira da Identidade! Afinal?

 

Já Helena, está presa e com presunção de inocência, até ser julgada.

 

O que desejo para ambas é que reflitam sobre o percurso que pretendem fazer, a partir de agora. Percebam que ser ministra, deputada, embaixadora, presidente é servir um interesse comum e não individual. Que se é eleito por um grupo de pessoas que acredita naquilo que “prometemos”. Aqui em Moçambique estamos mal, lá ainda se pode exigir. E que neste mundo em que nós, Mulheres, ainda temos que lutar por um lugar de fala, não venham estragar tudo em nosso nome se afinal o que conta são os vossos interesses pessoais.

 

Khanimambo.

Beatriz Buchile tinha razão: os americanos não gozavam de jurisdição sobre o caso. Adriano Maleiane deu um empurrão sem precedentes à defesa de Boustani, indo mesmo no sentido contrário ao do Conselho Constitucional (e da própria PGR, que processou em Londres o Crédit Suisse, seus banqueiros, a Prinvinvest e seus gestores de topo). O melhor destino para Manuel Chang pode ser Maputo.

 

Eis três aspectos que agora emergem mais claramente das “águas turvas” do julgamento que ilibou, Jean Boustani, o vendedor de barcos libanês da Privinvest, um dos mentores do calote que defraudou o Estado moçambicano em mais de 2 mil milhões de USD. “Carta” contextualiza a absolvição de Boustani tendo em conta aspectos legais relevantes e a postura e provável sina de alguns actores incontornáveis.

 

A questão da jurisdição

 

A defesa de Jean Boustani, a firma Willkie Farr and Gallagher LLP, representada pelos advogados Michael S. Schachter e Randall Jackson, bateu-se desde o início numa coisa: se houve crime, esse não foi cometido nos EUA. Ou seja, Whashington não tinha legitimidade jurisdicional para acusar Boustani. O argumento foi esgrimido ainda nas primeiras alegações por escrito em Agosto. Mas nunca foi atendido pelo Juiz Kuntz.

 

Durante o julgamento, a defesa voltou à carga e, nas alegações finais, a 19 de Novembro, Randall Jackson fez questão de “cansar” o jurado com essa ladainha. A estratégia da defesa de apresentar as planilhas de suborno da Privinvest enquadrava-se nesse desiderato. Alegar que Boustani pagou (como gorgeta) funcionários moçambicanos (a pedido destes) e banqueiros do Credit Suisse, mas nunca defraudou os investidores americanos.

 

Boustani confessou práticas de corrupção que nunca se enquadrariam nos tipos-legais de crimes constantes do FCPA (Foreign Corruption Pratice Act). Pagou subornos a moçambicanos ávidos de encherem o bolso, mas o fluxo desse dinheiro não passou pelo sistema financeiro americano. O jurado deu-lhes razão.

 

Beatriz Buchile

 

Depois que o debate sobre a extradição de Manuel Chang tomou conta da agenda mediática, no primeiro trimestre deste ano, Beatriz Buchile deixou claro nalguns círculos que fazia mais sentido que este caso fosse julgado em Moçambique e não nos EUA. “Nós é que temos jurisdição”, frisava ela. Ninguém lhe deu ouvidos. E, pelo contrário, foi veementemente criticada por “querer trazer o Chang de volta”. Ela chegou a solicitar aos EUA apoio com “provas” para que um julgamento em Moçambique tivesse sucesso. O Departamento de Estado fez-lhe, também, ouvidos de mercador. Agora, com o veredicto que iliba Boustani, parece claro que Beatriz Buchile estava certa. 

 

Maleiane I

 

Nos derradeiros dias do julgamento de Jean Boustani, na segunda semana de Novembro, a defesa usou de um trunfo que lhe tinha sido ofertado pelo Ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiene. Para mostrar ao jurado que os investidores americanos nunca foram defraudados, nem por Boustani nem por qualquer entidade em Moçambique, a defesa chamou à colação o facto de o Governo de Maputo estar a reestruturar a dívida da Ematum, ter chegado a acordo com mas de 60% dos credores, e ter inclusive pago a primeira tranche dos valores acordados.

 

E, seguindo as peugadas de Maleiane, a defesa de Boustani desvalorizou completamente o acórdão do Conselho Constitucional de 2018, que considerou a dívida da Ematum e sua garantia soberana como sendo ilegais. Literalmente, tal como Maleiane, a defesa de Boustani “rasgou” esse acórdão. O esforço de Maleiane foi fundamental para Jean Boustani. Interessante!

 

Maleiane II

 

Nos últimos dias do julgamento de Boustani em Nova Iorque foram várias as referências a um alegado papel “nocivo” de Maleiane depois que ele tomou posse no cargo de Ministro da Economia e Finanças do Governo de Filipe Nyusi, em princípios de 2015. A ideia de que ele sonegou informação ao FMI e aos investidores, nomeadamente sobre a existência das dívidas da Proindicus e da MAM, quando se fazia um “roadshow” para a reconversão da dívida da Ematum em Eurobonds. Ele viajou para os States na companhia de Rosário, no quadro desse "roadshow".

 

Alegou-se vivamente que também ele, a par de Boustani, tinha defraudado investidores americanos. Agora com Boustani ilibado, ele (Maleiane) ganha o estatuto de inimputável. Tanto mais que só começou a envolver-se no assunto em 2015, quando todo o calote já estava consumado. Maleiane é uma das figuras que deve ter aberto seu “moet” de reserva, ontem, quando se soube da ilibação de Boustani. O homem pode agora respirar de alívio.

 

Chang e Rosário

 

Também Chang e Antonio Rosário podem ter ganho, na absolvição de Boustani, um trunfo em sua defesa, em face da acusação de que são alvo nos EUA. No “indictment” final do Departamento de Justiça, datado de 19 de Agosto, eles vêm acusados dos mesmos crimes que Jean Boustani. Por lógica, é provável que já não haja, nos EUA, caso contra eles. E, por isso, no caso de Chang, o melhor mesmo seria ele ser extraditado para Moçambique, a não ser que uma ida aos EUA contribua para se extrair dele um poucos mais de informação sobre os “podres” da corrupção em Moçambique e seus actores relevantes no quadro do calote.

 

Nhangumele também

 

O mesmo se diga para Teófilo Nhangumele. Sua posição é, aliás, agora, mais confortável. Tanto mais que a acusação americana comete sobre ele um erro crasso, ao identificá-lo como funcionário do Estado em Moçambique, falso estatuto veementemente denunciado pela defesa de Boustani.

 

Imputáveis em Moçambique

 

Chang, Rosário e Nhangumele não deixam, no entanto, de serem imputáveis em Moçambique. Aliás, o julgamento de Boustani só serviu para mostrar como uns tantos funcionários e cidadãos de um pobre Estado africano se endinheiraram na corrupção, levando todo um país à quase bancarrota. (Marcelo Mosse)

segunda-feira, 02 dezembro 2019 05:39

A penosa história do estafeta de gatunos

Havia um velhoto que era Governador do Banco Central há muito tempo. No tempo que muitos de nós éramos putos. Foi nessa altura que nos demos conta que dinheiro levava uma assinatura. E o assinante era esse tal velhoto Governador do Banco.

 

Para nós, era como se o cota fosse o dono do dinheiro. O dono do país. É que nem o próprio Presidente da República assinava dinheiro. A ideia que tínhamos era de que o cota sentava no seu gabinete e começava a rubricar todas as notas uma por uma e, querendo, podia levar para si a quantidade que desejasse. Afinal, era o dono.

 

Éramos fãs desse cota. Não o conhecíamos, nunca o tínhamos visto, mas crescemos tendo-o como referência de idoneidade moral e ética. Já nos anos dois-mil-e-picos, com a tê-vê e os seus telejornais, conhecemos o cota. A nossa admiração por ele aumentou: magrinho, pálido, humilde e cauteloso no verbo, e sempre com um sorriso administrativo nos lábios para polir o rosto. Nunca o tínhamos imaginado assim. Fugia em grande medida dos nossos estereótipos de assinante de dinheiros.

 

Quando o Novo Homem foi chamar o velhoto da sua merecida "reforma" para o cargo de Ministro de Economia e Finanças, congratulamo-lo. Era, quanto a nós, a melhor aposta. Sempre esperamos boa coisa dele.

 

A nossa fasquia de respeito pelo velhoto caiu aquando da descoberta das dívidas ocultas. O velhoto ficou tonto como uma barata em chuva de "baigon". Viajava para Washington sem um posicionamento de Estado firme e convincente. Falava coisa com coisa. Optou por mentir e esconder a verdade debaixo do tapete. Ora porque o povo já está a comer o atum da Ematum sem saber, ora porque o pagamento aos credores não é nenhuma afronta à decisão do Cê-Cê, é uma cena que devia ser feita. Coisas de vergonha! 

 

Hoje, o cota está aí todo desacreditado e melancólico. Com toda a sua reputação na lama. Nem o canudo de Londres, nem a experiência acumulada o podem ajudar. E, para piorar, é co-conspirador. Co-conspirador é espécie ajudante ou auxiliar do verdadeiro conspirador. Assim do tipo o velhote é ajudante duns putos aí que estão na "djela".

 

Quer dizer, o velhoto caiu tanto que nem consegue fazer parte dos verdadeiros negociantes-vendedores da pátria. É simples testemunha de uma festa que não presenciou, nem viu o "di-djei" e nem sabe quem dançou mais. Só sabe dizer que houve farra porque sentiu cheiro de maionese e viu gajos com babalaza.

 

Mas como é que um cota daqueles se deixa levar por caloteiros miseráveis? Como consente ser lacaio e mensageiro de mafiosos como esses com alcunhas de talheres do oriente asiático? Como permitiu ser serviçal de larápios de baixo quilate? Como se deixou virar auxiliar de lesa-pátrias... Estafeta de gatunos? Quanta baixesa!

 

Ai, ai, ai... Quão é fundo o fundo do poço! - como diria a tia Muanacha.

 

- Co'licença!

quinta-feira, 28 novembro 2019 07:20

Técnica "versus" ética

Para mim, um líder deve ostentar duas coisas: a técnica e a ética. Ou seja, um indivíduo competente para ocupar um cargo de liderança deve ser uma pessoa com conhecimentos de gestão, mas acima de tudo - repito, acima de tudo - deve ser uma pessoa que saiba viver e convier em sociedade. Deve saber o que quer, saber o que pode e saber o que deve.

 

Um líder não basta apenas estudar e carregar diplomas, é importante que tenha humildade e solidariedade. É importante que tenha humanidade.

 

Um líder dever ser uma pessoa que entende que ele é "chefe" porque existem subordinados. Aliás, deve saber que o que lhe faz "chefe" não é a sua nomeação, mas - sim - a legitimidade dos seus súbditos. Há "chefes" que não são chefes porque os seus subalternos simplesmente não o vêem como tal. Não o consideram "chefe". Não tem legitimidade dos que ele devia chefiar.

 

Um "chefe" deve saber que a chefia passa e a sociedade continua. Deve saber que diploma não é título de propriedade do saber. Deve reconhecer a sua falência como ser humano. Deve reconhecer que os seus diplomas e a sua posição não fazem dele um extraterrestre.

 

Mas, a primeira exigência de competência é sobre quem o povo confiou para nomear os outros. Isto é, o "chefão" que nomeia os "chefezinhos" deve ter maior competência técnica e ética na escolha dos seus escolhidos para não cair no ridículo.

 

Gerir uma instituição é gerir pessoas e bens patrimoniais. Pelo que, qualquer decisão deve ser tomada com muito humanismo. Muita solidariedade.

 

Eu não teria coragem de nomear para um cargo público de relevo um indivíduo que disse que "quem morreu com o ciclone Idai quis". Quem assim pensa não se deve ter por perto. A falta de solidariedade é a pior forma de carácter. Aliás, não há sociedade sem solidariedade.

 

De resto, o Jota-Jota podia ser apenas e unicamente Pê-Cê-A de uma agremiação de feiticeiros. Haja paciência! Quem o nomeou é insensível. Só um Vampiro pode preferir um Drácula.

 

- Co'licença! 

quarta-feira, 27 novembro 2019 07:14

Cadê o Povo?

Não tem sido fácil localizar o povo. Já lá vão os tempos em que o povo era todo o moçambicano do Rovuma ao Maputo. Bastava estalar os dedos e lá estava o povo no local e hora da chamada para mais uma jornada de construção do Homem Novo. Sobre a dificuldade em localiza-lo que o diga o Doutor Fofa, um militante-mor e consultor-turbo da sociedade civil, que numa das suas expedições pelo país procurou o povo para nutri-lo de conteúdos da nação e recolher da base as sensibilidades mais fortes para serem esmiuçadas no topo.  

 

A tal expedição - relacionada com o fortalecimento da cidadania – iniciara com um seminário central por si ministrado e dirigido às organizações da sociedade civil sedeadas na capital do país e de âmbito nacional. No final e face a importância dos conteúdos os participantes recomendaram que os mesmos fossem levados para as províncias, locais “onde está o povo”.

 

Uns tempos depois foram programados e realizados os seminários provinciais. Nestes ficou assente e sugerido pelos participantes que o assunto também fosse levado aos distritos, pois é “onde está o povo”. Não tardou os seminários distritais foram programados e realizados. As organizações e plataformas distritais presentes concluíram e aconselharam que se devia descer para os Postos Administrativos, pois é “onde está o povo”. Nos Postos Administrativos a observação foi de que se levasse o assunto às localidades, pois é aqui “onde está o povo”.

 

Já exausto e sempre solícito para mais uma expedição - e desta vez às localidades e ao encontro do que seria finalmente o povo - o Doutor Fofa equaciona e opta por uma breve paragem de relaxamento numa das paradisíacas praias deste país.

 

Depois do descanso o Doutor Fofa decide que se retiraria da unidade hoteleira depois do almoço e logo que acabasse um dos serviços noticiosos de uma das estações de televisão. Para o seu espanto e numa reportagem da TV um participante de um seminário - que por coincidência decorria numa localidade deste país - sugeria aos organizadores que se criassem condições logísticas para levar o assunto em pauta para “lá na base”, nos sítios mais recônditos que é “onde está o povo”.

 

O Doutor Fofa não aguentou e caiu em resposta clara a um fulminante Ataque Vascular Cerebral (AVC). Felizmente sobreviveu e teve que regressar a capital e aqui – enquanto se recuperava e para matar o bichinho dos seminários – resolve frequentar seminários locais. Um dia desses decide participar numa auscultação pública sobre o processo de encerramento da Lixeira do Hulene que decorreu no bairro do mesmo nome e localizado no Distrito Municipal Ka Mavota. Para a sua estupefacção, nessa auscultação pública, um jovem - visivelmente agastado - disse aos presentes o que abaixo cito:

 

“Parte dos problemas que o lixo está a causar em Hulene é um problema que não é do bairro (Hulene). É um problema que vem da base (se referindo e apontando em direcção ao Distrito Municipal Ka Mpfumo, o centro da capital), pois o povo de lá não se comporta com urbanidade, vulgo civismo, porquanto misturam e deitam todo o tipo de lixo na via pública e nessa condição (misturado) o mesmo é transportado para cá”.

 

Enquanto o jovem continuava a expor os seus argumentos o Doutor Fofa foi transportado para uma unidade hospitalar próxima. Desta vez fulminado por um outro tipo e recomendado AVC: Ataque de Vergonha na Cara.   

terça-feira, 26 novembro 2019 13:21

Chico da Conceição no crepúsculo do entardecer *

A voz do Chico é outra melodia. Dentro da música. Embala. Levita no espaço em que temos de um lado o amor, e do outro lado a tristeza. Ombro com ombro. Ressurge das vísceras como o cantar dos últimos pássaros na retirada aos ninhos, no fim da tarde, voando em voo rasante entre as últimas gotas da luz do sol e a descida inevitável da noite que nos vai acolher a todos. É como se a alma toda deste bitonga residisse ali. Na voz. É nela onde também se abrem os poros da poesia que nos leva por exemplo à Praia do Tofo, ou seja,

 

se você quiser passar férias arregaladas

 

 vai à Praia do Tofo

 

Tofo é nome de mulher

 

Não tem igual

 

Nestes versos está o abanar da mão do Chico da Conceição, o pestanejar vão dos olhos escondidos por detrás dos falsos óculos escuros. Ele acena. Chama-nos numa música que será, mais do que o escorrer de um simples poema, uma elegia que orbita sobretudo na voz resignada. É a laringe trémula que vai à frente, reinventando as ondas do Índico que agora marulham por dentro de nós que escutamos a música que deixou de ser dos manhambanas. Extravazou na respiração do próprio mar. E agora é exaltada na convivência cosmopolita da arte.

 

Há dois crepúsculos, obviamente! O do amanhecer, e do entardecer. Os dois são belos. A musicalidade que emanam no seu silêncio, tem a mesma intensidade. Vibra da mesma forma na escala diatónica deste lado da plateia, e na escala diatónica do outro lado da mesma plateia. Onde poisamos amiúde para deixar livres as vibrações do sentimento. Mas Chico é o crepúsculo do entardecer. É por isso que nos comove. Embevece-nos. Olhamos para ele e percebemos rapidamente  que a glaucoma colocou-lhe a última venda. Mas não lhe decapitou o ramal da poesia, nem lhe impediu a paródia,

 

Vanhamayi gaya khu gupwa gu tsamba vadi davatela (As mulheres da minha terra dançaram com a barriga ao sentirem o sabor da  música)

 

A paródia está aqui. Chico mudou os passos de dança, vacilou no corpo desde a noite de 25 de Junho de 1975, em pleno içar da bandeira da liberdade, quando de repente disse assim, para as pessoas que o acompanhavam: epá, apagaram as luzes! Este foi o dia em que desceu para sempre o capuz da glaucoma, e fechou uma etapa da sua vida. Ou começava outra etapa, ou ainda, se calhar, era a continuação do mesmo percurso. Da mesma vida que agora terá que ser tacteada, ou entregue a um cicerone, que nem sempre está disponível para aturar o “chato” de um “cegueta”. Contudo, Chico da Conceição tinha outro cicerone. Ou melhor, dois cicerones fieis. Leais: a voz e o saxofone. Foi nessas tenases asas que se pendurou e perdurou. Planando com alegria. Com a leveza dos astros.  Até que o coração, cansado das longas jardas incessantes, sufocou e parou de bater.

 

Mas ficou o cheiro do homem. Galvanizado pelo saxofone ora suave, ora vertiginoso. Foi essa alfaia que Chico usou como muralha para se defender contra todas as investidas do tempo. Das feridas da cegueira. Ou por outra, ele transformou o instrumento em hidroeléctrica, com várias albufeiras para disfarçar o padecimento e oferecer luz aos convívios.Também para enxotar a solidão. A sua própria solidão.

 

Chico da Conceição sabia perfeitamente que tinha nascido para reverberar, e proporcionar aurora às pessoas. Foi isso que ele fez. Cumpriu com os preceitos sem olhar para trás. Rindo-se das trevas que lhe traziam em catadupa, lembranças da sua terra,

 

Nyagu dundruga Nhambane, monho wangu gu bisa (Quando me lembro da cidade de Inhambane,  meu coração dói)

 

O autor de “Queremos paz” recorda-se de tudo isso. Das vanunwana (donzelas muçulumanas do bairro  Chalambe). Da tranquila baía. Da dádiva que Deus inoculou na Sua misericórdia sobre Inhambane, e que ele, o Chico, já não poderia ver,

Nhagu dundruga vanunwana (quando me lembro das donzelas muçulumanas)

 

momho wangu kha wu gumani gurula (meu coração nãoencontra paz)

 

REGRESSAR NA HORIZONTAL PARA UMA CIDADE ESCURA

 

Em Wussiwana, um dos seus  temas mais sentimentais, ele não resiste e entrega-se profundamente ao sofrimento. Por inteiro. Diz-nos, por exemplo, que “assim como estou (cego), já não vou reconhecer os caminhos que me acolheram na  juventude. Mas um dia hei-de voltar para passear com os meus amigos por aí”.

 

Porém a vida real ultrapassou os sonhos do Chico da Conceição. Desmentiu-lhe. Ou seja, o homem nunca mais voltou, desde que daqui saíu, em 1959, para Lumbo, como funcionário dos Correios  de Moçambique.

 

Aliás regressa agora (Outubro de 2019), sessenta anos depois, embutido num caixão. De vez para sua terra, uma cidade  tranquila, entretanto escurecida na glaucoma do autor de Marumana Gaya. E foi neste entardecer que umas senhoras, no mercado da Mafureira, aqui mesmo, perguntavam-me assim, afinal quem é que morreu?  E eu respondi-lhes, é Chico da Conceição.

 

- Chico da Conceição!?

 

- Sim

 

- Qual Chico da Conceição?

 

- Aquele que canta Marrumana Gaya.

 

- Iiiiiiiiiiiiiii! Vocêgiiiiiii! Morreu aquele senhor?

 

Em Inhambane são poucos os que podem se gabar de o terem conhecido. Zarpou em 1959. Eu também não tenho memória dele por estas bandas onde nasceu, a não ser do dia em que fui entrevista-lo, na sua casa, na Av. Ahmed Sekou Touré, em 1999, em Maputo. Ele também não vai-se lembrar de muitos. Morreu com medo de que não fosse reconhecido. Se um dia voltasse. Por isso dizia,

 

Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane)

 

Nhi veleguidwe Nhambane sewi (Sou natural de Inhambane Sewi)

 

Nhi tonga biho, kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo)

 

O tigre não precisa proclamar sua tigritude. E Chico parecia ter medo depois dessas longas décadas de ausência. Então era preciso que nos lembrasse: Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane), Nhi tonga, biho kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo).

 

Seja como for não nos resta mais nada, senão a rendição  perante a partida deste pássaro sagrado. Que vai cantar as últimas canções ao fim da tarde, de recolha definitiva ao ninho.

 

Adeus Chico!

 

  • Texto de homenagem ao Chico da Conceição, falecido em Outubro, vítima de doença