Enquanto o Jota cogitava na situação do Chinês, que não descontinuava de fotografar a nossa vasta floresta, que há tempos reclama de violação e desflorestamento, ao longo das margens da extensa e abandonada Ene Um, ao mesmo tempo que em sua mente circulavam memórias de ocasiões que, em vida, havia partilhado com a sua amada tia Marciana, Manuelinho interpelou:
— Sobrinho, sabes que podes escrever sobre este assunto? — Referindo-se às fotografias do Chinês, com olhos arregalados espalhando-se entre os cantos daquele autocarro desprovido de modernidade. De imediato, os seus ouvidos hospedaram uma resposta vinda do Jota:
— Tio, escrever é um bom exercício para a nossa memória. Aliás, a escrita permite que nós preservemos não somente as nossas memórias, factos do dia-a-dia, mas também a própria história e os factos marcantes e não marcantes que se despejam nas páginas da vida.
— Falando nisso, sobrinho, já ouviu falar da obra “A Arte de Escrever”? — Inquiriu Manuelinho.
— Sim, tio. É “Arte de Escrever Bem”, nem? Eu até tenho este livro publicado em uma das minhas redes, a academia.edu.[i] É um manual meramente jornalístico que ensina a escrever bem. — Respondeu o jovem Jornalista-Estagiário e devolveu a sua voz ao abrigo do silêncio.
— Não é “Arte de Escrever Bem”, de autoria de Dad Squarisi e Aríete Salvador. Refiro-me à obra “A Arte de Escrever”, simplesmente, sem incluir o “BEM”, substantivo que evidencia um conjunto de qualidades positivas. É de autoria de Arthur Schopenhauer. Conheces, meu bom sobrinho?
— Se não é a mesma, então, não me lembro, tio. Podes falar-me um pouco sobre essa obra? Afinal, nunca devemos parar de aprender nesta vida. Os que param de aprender, igualmente, param de crescer. Isso funciona em todas as áreas da nossa vida. Quem não aprende, permanece estagnado e estático no tempo. — Afirmou o Jota, para depois acrescentar:
— É verdade, escrever é mesmo uma arte. E há quem realmente é um bom artista nesta área, como Mia Couto. Saber pegar nas 26 solteiras do nosso abecedário e, a partir delas, montar um bom guisado de frases, períodos e parágrafos, como Jacó, filho de Isaque e neto de Abraão, que se traduz em textos, relatórios, monografias ou mesmo livros, é, de facto, uma admirável arte. No entanto, como acontece em qualquer área de actuação, há quem escreve artisticamente mal.
— Confirmo, sobrinho. Mesmo na música, isso acontece. Às vezes, como Produtor Musical, eu sofro com Cantores e Músicos que vem gravar as suas músicas, mas a melodia não se encaixa na letra e vice-versa. Noutras ocasiões, sou obrigado a reescrever as músicas! Enfim, nem quero me lembrar disso! — Referiu Manuelinho. Em seguida, acrescentou:
— Voltando ao nosso assunto, Arthur fala muito bem deste assunto, aos mínimos detalhes. Eu penso que seria uma boa opção de leitura para ti ou qualquer amante das letras. — Declarou Manuelinho, numa tentativa de se esquecer das lágrimas que acabara de entornar e dos choros das suas irmãs, primas, tias e demais familiares que, num futuro bem próximo, teria de acomodar. Na sua cultura, os homens não choram para fora, molhando camisas e casacos. Pelo contrário, eles fazem escorregar as suas lágrimas para dentro. Naquele contexto, ele seria um dos casos notáveis, similares às quebra-cabeças da Multiplicação do Ensino Secundário.
— Então, tio, qual é a tónica desta lendária obra do renomado Arthur?
— Arthur Schopenhauer é um Filósofo e Professor Universitário Alemão, que nasceu no oitavo ano da nona década do século dezoito, depois de Cristo, e morreu no último ano da sexta década do século seguinte. Parte dos seus pensamentos tem base nas ideias de Immanuel Kant, renovável Pensador e Filósofo da era moderna. Arthur passou quase toda a sua vida a ensinar!
— Sério? Ele era seguidor do autor das Críticas, ou seja, a “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão Prática” e “Crítica do Juízo” ou, numa tradução mais próxima à obra original alemã, “Crítica da Faculdade do Juízo”? Então, vejo que a obra dele deve ser muito rica e possui ideias que podem ajudar a qualquer um que pretende escrever ou mesmo que escreva. Pois, não, tio? — Indagou o Jota, tentando puxar a conversa, a fim de ressuscitar a “” de Arthur.
— Ahaannn… Acertaste em cheio, meu filho! Por isso, Schopenhauer era um grande crítico dos Escritores da sua época. Nesta obra, A Arte de Escrever, ele critica o estilo dos Escritores, as preferências dos leitores, as recomendações dos críticos, bem como o pensamento dos Filósofos, e propõe uma nova dinâmica de fazer Literatura e Filosofia. Ele, identicamente, rebatia a forma como os seus contemporâneos reflectiam, liam, escreviam e usavam a língua para descrever as variadas realidades daquela época. — Assegurou Manuelinho, esbanjando ciência.
— Wooow… É muita coisa, tio. Se vivesse nos nossos dias e tivesse uma conta no Facebook, certamente, Arthur teria muito que dizer, principalmente, sobre os nossos estudantes universitários e afamados analistas televisivos, que trasbordam nas nossas telinhas mágicas e nas redes sociais. — Afirmou Jota, requerendo, informalmente, mais comentários da parte do tio.
— Hummmm… Sendo sincero, sobrinho, com base no que ele descreve em “A Arte de Escrever”, não estaria conformado com a nossa realidade. Arthur espantar-se-ia com a quantidade de estudantes e analistas, de todos os tipos e todas as idades, que se orgulham em ter apenas a informação, mas não a instrução, cuja honra se baseia no facto de terem informações sobre tudo, todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e conjunto de todos livros. Não lhes ocorre que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma, se não for bem utilizada. — Sublinhou o jovem que perdeu o volumoso jackpot contractual para se tornar Presidente do Município de Quelimane.
— Isso é muito profundo, tio. Este pensamento é mesmo actual. Dá para ver que Arthur era um grande homem. — Disse Jota — Estendendo a sua mão direita sobre a cabeça e acrescentou:
— E sobre a escrita, o que ele diz em “A Arte de Escrever”? Eu creio que Arthur disse algo digno de registar em nossas memórias. Vou até abrir as páginas do meu cérebro e com a caneta dos meus neurónios caligrafar estas informações para a minha melhor instrução como Jornalista.
— O mais belo pensamento corre o perigo de ser irremediavelmente esquecido, quando não é escrito. — Disse uma voz saudavelmente feminina, bem afinada e decorada de leite e mel frescos, que atravessou os nossos ouvidos. — “Assim como a amada pode nos abandonar, se não nos casamos com ela.” — Acrescentou Manuelinho, ao mesmo tempo que, influenciado pela frase que acabara de libertar, contornava a sua quase debilitada visão em direcção aos olhos castanhos, pintados de entusiasmo, daquela jovem e passageira de visíveis qualidades.
— O saber é o princípio e a fonte para se escrever bem. — Adicionou aquela jovem.
— Olá, moça. Tudo bem? Chamo-me Manuel. — Disse Manuelinho, tentando mostrar que não era uma criancinha sem noção das coisas. — E acrescentou: — Também já leste o livro de que nos referimos? — Questionou, enquanto movimentava a língua sobre os seus lábios.
— Olá, Manuel. O meu nome é Shantel. — Referiu a jovem passageira e manteve-se em silêncio.
— Opha… Até que os nossos nomes rimam. Ambos terminam em “el”. Será isso uma mera coincidência ou um plano sobrenatural? — Assumiu, todo esperançoso, o Manuelinho.
— Tio, ainda em “A Arte de Escrever”, o que disse Arthur sobre os Escritores? — Interpelou Jota.
— Jota, meu filho… — Soltando alguns sorrisos, como quem quisera enviar uma mensagem encriptada. — Para Arthur, há dois tipos de Escritores: aqueles que escrevem em função do assunto e os que escrevem por escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram experiências, que lhes parecem dignos de ser comunicados; os outros precisam de dinheiro e, por isso, escrevem. Escrevem somente por causa do dinheiro. Infelizmente, esses são bastantes!
— Tio, eu penso que muitos se enquadram na segunda categoria, da qual eu não quero integrar. — Desatou o Jornalista-Estagiário. Ele já reviu muitos textos, monografias e livros, por isso, sabia muito bem do que estava a falar. Além disso, ele era um Escritor em formação, que sonhava em ser autor de vários livros!
— Também se pode dizer que há três tipos de Autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Essa classe é a mais numerosa. Em segundo lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. São raros! — Acrescentou a Shantel, visivelmente confiante, e soltou olhares macios e chamativos ao Jota.
— E qual é a base fundamental para escrever? — Perguntou o Jota, procurando colher mais conhecimentos sobre “A Arte de Escrever”. Ele não queria nada além disso.
— Escrever como se estivesse a preparar a construção de uma casa. Deve ter a planta do que pretende escrever. Esse é o começo! Não se difere da Arquitectura. É necessário ter o projecto do que você precisa de construir e não apenas começar a cavar, colocar blocos, pedras, areia, cimento, água, varrões, ou qualquer material de construção. É por isso que temos muitas casas malnutridas, e livros também, que desabam diante que qualquer ventinho. — Argumentou Manuelinho, como se estivesse a desabafar.
— É verdade, Manuel. Como disse Arthur, poucos escrevem como um arquiteto constrói: primeiro, esboçando o projecto e considerando-o detalhadamente. A maioria escreve da mesma forma como se estivessem a jogar cartas. Nesse jogo, às vezes, segundo uma intuição, ganhamos; às vezes, por mero acaso ou batotice, encontramos cartas certas para ganhar o jogo sem que o nosso adversário ganhe uma rodada sequer, e o mesmo se dá com o encadeamento e a conexão das frases desses Escritores. Mas não deveria ser assim. — Salientou a Shantel.
— Só uma mente de destaque é capaz de nos oferecer algo digno de ser lido. — Mencionou Manuelinho, e acrescentou: — No fundo, o autor engana o leitor sempre que escreve para encher o papel, uma vez que o seu pretexto para escrever é ter algo a comunicar.
— São tantas coisas que, quando bem entendidas e aprimoradas, podem ajudar muitos jovens a desenvolver a Arte de Escrever, claro, com a devida qualidade e reverência necessária. — Sublinhou o Jota que, em seguida, demandou: — Segundo Schopenhauer, é possível aprender a escrever a partir dos escritos de outro Escritor, isto é, através da leitura de livros?
— É possível, sim, sobrinho. No entanto, ele adverte que nenhuma qualidade literária – como, por exemplo, a capacidade de persuasão, a riqueza de imagens, o dom da comparação, a ousadia, ou a amargura, ou a concisão, ou a graça, ou a leveza da expressão, ou mesmo a sagacidade, os contrastes surpreendentes, a ingenuidade, entre outras – pode ser adquirida pelo simples facto de lermos Escritores que possuem tal qualidade. — E acrescentou:
— Entretanto, se a pessoa que deseja escrever, o futuro Escritor, possui estas qualidades in potentia, pode evocá-las, trazê-las à consciência, ver que uso é possível fazer delas, fortalecer a sua inclinação, na disposição para usá-las, julgar o efeito da sua aplicação em exemplos e, assim, aprender a maneira correcta de usá-las; e só, então, é possível ter estas e demais qualidades de escrita desejáveis in actu, ou seja, na prática ou em acção, escrevendo.
— Essa é a única maneira de a leitura ensinar a escrever, na medida em que ela nos mostra o uso que podemos fazer de nossos próprios dons naturais; portanto, pressupondo sempre a existência destes. Sem eles, não aprendemos coisa alguma pela leitura, a não ser uma forma fria e morta, de modo que não nos tornamos nada mais do que imitadores banais. — Sentenciou a Shantel. E, virando-se para o Jornalista-Estagiário, perguntou: — É isso que queres ser, Jota?
— Claro que não! Mas muitos escrevem apenas por escrever! Aliás, antes de escrever, deve-se, também, pensar no leitor. Ninguém deve escrever, simplesmente, para queimar o tempo do leitor. Afinal, é o leitor que não apenas actualiza, mas também, dá vida ao conteúdo do texto. Sem o leitor, o texto morre e não alcança o objectivo pelo qual foi escrito. Eu penso assim, querida Shantel! — Argumentou o sobrinho do Manuelinho.
— Até parece que leste “A Arte de Escrever”, Jota. É preciso ser económico com o tempo, a dedicação e a paciência do leitor, de modo a receber dele o crédito de considerar o que foi escrito digno de uma leitura atenta e capaz de recompensar o esforço empregado nela. — Sublinhou Manuelinho, enquanto afastava a cortina e empurrava o vidro do autocarro, onde ele estava sentado, para se escapar dos fortes raios solares que tentavam interromper a fluidez da nossa conversa.
— Vejo que este livro, A Arte de Escrever, é mesmo interessante, tio. — Comprovou Jota.
— Além de interessante, é uma obra importante e actual. E, como disse Arthur, cada livro importante deve ser lido, de imediato, duas vezes. Em parte, porque as coisas são melhor compreendidas na segunda vez, em seu contexto, e o início é entendido correctamente quando se conhece o final; em parte porque, na segunda vez, cada passagem é acompanhada com outra disposição e com outro humor, diferentes dos da primeira, de modo que a impressão se altera, como quando um objecto é observado sob uma luz diversa. — Concluiu Manuelinho e aquietou-se no seu assento, cuja almoçada, de tanto trilhar a estrada sem manutenção, estava quase descascada.
— Mais do que isso, Arthur fala de aspectos críticos sobre a leitura que, também, são dignos de destaque. Até parece contradição face ao que ele escreve, mas são meras verdades. — Afirmou Shantel — Para depois acrescentar: — Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria. E nada é mais prejudicial ao pensamento próprio do que uma influência muito forte de pensamentos alheios, provenientes da leitura contínua.
— Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos o seu processo mental, do mesmo modo que um estudante, ao aprender a escrever, refaz com a pena os traços que seu Professor fizera a lápis. — Adicionou Manuelinho.
Neste intervalo, ouviu-se o barulho do empurrar de um dos vidros do autocarro, no lado de trás. Conseguia-se escutar, igualmente, os sons do volume de um Smartphone que recolhia fotos para a sua quase entulhada galeria. Do lado de fora daquela janela, havia uma enorme quantidade de árvores. Um verde escuro banhado de clorofila! E ali estava, novamente, como se nada estivesse a acontecer, o Chinês, planificadamente mansinho, com o seu Huawei preto, capturando imagens da nossa vasta floresta.
Surpreso, após ouvir aquelas declarações, o Jota questionou:
— Então, que saída temos neste processo?
— Não te preocupes, Jota. Não significa que devamos parar de ler. Simplesmente, quer dizer que devemos ler e pensar ou meditar no que lemos. Se alguém lê continuamente, sem parar para pensar, o que foi lido, não cria raízes e se perde em grande parte. — Cimentou a Shantel.
— Além disso, quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. É por isso que sentimos um alívio ao passarmos da ocupação com nossos próprios pensamentos para a leitura. — Arremessou Manuelinho.
— Ahaaannn… Agora entendo a colocação de Arthur sobre a situação dos estudantes e estudiosos ou analistas da sua época que, de igual modo, se estende à nossa, ao distinguir a posse de informação da instrução de quem a possui. É por isso que não podemos confundir a compra dos livros com a assimilação do seu conteúdo. — Argumentou o Jornalista-Estagiário!
— Exactamente, Jota! — Exclamaram, em uníssono, Manuelinho e Shantel! Enquanto isso, o motorista aumentava a velocidade do autocarro e, assim, seguiam a viagem rumo ao Chiveve, terra de sonhos confiscados, na qual, dois anos mais tarde, IDAI semeou luto generalizado.
Naquele intervalo, momentâneo, banhados de fadiga e sono, uma voz masculina interrogou:
— Jovens, vejo que vocês guardaram, em vossas memórias, tudo sobre “A Arte de Escrever”. Não apenas ressuscitaram Arthur Schopenhauer, mas também a própria obra.
— Não, companheiro! Nós guardamos apenas o essencial para alimentar esta simples conversa. — Declarou Manuelinho e, conclusivamente, acrescentou:
— Exigir que alguém tivesse guardado tudo aquilo que já leu é o mesmo que exigir que ele ainda carregasse tudo aquilo que já comeu! Entretanto, do mesmo modo que o corpo guarda apenas aquilo que lhe é útil, assim também acontece com a leitura, o cérebro guarda o que nos interessa e é necessário para o nosso bem-estar total, da mesma forma que expulsa o que não precisamos ou não nos é útil guardar ou reservar em nossa memória.
Na Av. Eduardo Mondlane havia um bar baptizado “Goa”, conhecido em todo o grande Maputo pela essência dos petiscos ali servidos, em particular os mariscos que levavam os irresistíveis temperos asiáticos. Bebia-se cerveja a rodos desde o amanhecer, e todos aqueles que lá iam pela primeira vez, queriam voltar outra vez e nunca mais abandonavam o lugar que se tornou histórico, resistindo aos ventos infaustos do tempo, até ao momento em que tudo aquilo colapsou.
É aqui onde João Paulo, o arrebatante blues man e soul music man, inspirava-se para a loucura dos clubes noturnos reservados aos grandes, e ele reverberava, tornando-se assim, aquele cometa que jamais voltará. Era ele, o João, a principal referência quando o “Goa” entrou em derrocada até se tornar uma espelunca. João Paulo também estava em derrocada, até que a morte, cansada de esperar por um indivíduo que ia devagar em direcção à guilhotina, em cada duplo de Jack Daniels, trespassou-o.
Nos Últimos anos, - meados de 2000 - “Goa”, apesar de se ter tornado um lugar desprezível, era uma importante lagoa, onde mais do que ir refrescar-se com as suas águas turvas, as pessoas que lá se materializavam , muitas delas, faziam-no com o propósito de debater ideias. Havia massa pensante que transformava esta gruta em fonte de sabedoria, não se falava de putas. Quer dizer, em todas as mesas a conversa era desenvolvida em torno do saber, e o que se notava é que quanto mais embriagados, mais lúcidos ficavam os intervenientes.
João Paulo apelidou o “Goa” de “Bar dos Crâneos”, querendo dizer com isso que o “Goa” é bar dos pensantes. O que se falava lá dentro e na esplanada cá fora, não eram balelas. Havia oradores esclarecidos, que se destacavam e eram promovidos, pelo seu conhecimento, a mais do que simples pivots. Outros ainda, aqueles cuja capacidade de oratória e de cultura geral era limitada, ficavam empolgados em escutar os arautos, e pediam mais cerveja. Para eles próprios e para aqueles que falavam.
No “Goa” não havia interlúdio. Em todas as mesas destacava-se um maestro, ou vários, mesmo assim não se perdia a consonância. Era como você estar num estádio com vários palcos, onde em cada um deles a música que se toca, é tocada por grandes músicos, e você quer ouvir todas as músicas ao mesmo tempo. Com a diferença de que chega um momento em que o maestro dilui-se. Cada executante quer tocar a sua música e quer que os outros a escutem. Mas esse é o ressurgimento dos “crâneos”, todos querem brilhar. Aliás, eles vão ali para brilhar. E mostrar que brilham.
Pois é! Lembrei-me destes momentos indeléveis na memória, quando há uma semana estive em Maputo e passei por este lugar onde ainda fui tempo de sentir o cheiro do João Paulo, sem precisar de entrar. Já não se chama “Goa”, mudou de nome e de história, como todos nós. Já não somos os mesmos!
É uma situação que já não me permite calar, senão sentirei remorso para o resto da minha vida, caso amanhã apareça mais um colega de Órgãos de Comunicação Social dos ditos independentes morto.
A situação não está boa no País para o exercício pleno desta profissão nobre – o Jornalismo. Eu penso que quem está no terreno e não só, sabe do que me refiro, embora esta triste situação seja mais visível quando praticada por autoridades ou instituições do Estado. Entretanto, este não é o cerne deste artigo de opinião ou grito de socorro, não para mim, mas para quem pratica um jornalismo “fora da caixa”.
O cerne deste texto não visa atacar as lideranças do MISA-Moçambique ou do Sindicato Nacional de Jornalistas (SNJ), porém, sugerir que estejam atentas face à real situação dos “jornalistas independentes” baseados em Províncias como Cabo Delgado, Nampula, Sofala, Manica, Tete, Inhambane, Maputo e outras, principalmente no que respeita ao tipo de representante existente nestas províncias, pois, a situação não é boa. Digo isso por experiência própria e com evidências reunidas ao longo de três anos de viagens constantes para estas regiões.
São inúmeras vezes que alguns colegas da profissão, por saberem que eu estava na sua Província, evitaram encontros presenciais devido ao medo exacerbado de ficarem a ser “mal vistos” pelas lideranças locais porque, alegadamente, caso alguma “bomba” rebentasse, ele ficaria a pagar a factura em meu nome ou os representantes das instituições formalmente concebidas para defender a Liberdade de Imprensa no País convidá-lo-iam para um “café nazista” nos escritórios do Governo Provincial para saber se não terá sido ele a escrever o tal artigo.
Em Cabo Delgado, quando os ataques ainda reportados pelos Órgãos de Comunicação Social privados eram todos vistos aos olhos oficiais como “fake news”, por não quererem que a informação fosse veiculada ao povo e ao mundo, jornalistas correspondentes de Órgãos de Comunicação Social nacionais e internacionais foram, por várias vezes, torturados psicologicamente. Ora, o mais estranho destes actos é que eles não são protagonizados, na sua maioria, por Agentes Secretos ou pela Polícia, porém, por jornalistas e representantes de organizações como o MISA ou SNJ, que deveriam defender a classe nestes locais.
Todos nós acompanhamos a situação vivida por Amade Abubacar, Estácio Valoi, Germano Adriano e, recentemente, Ibrahimo Mbaruco. Alguém já viu ou ouviu falar de uma Conferência de Imprensa do MISA ou SNJ em Cabo Delgado a exigir que as autoridades judiciais tragam resultados das investigações? Se eu estiver errado, estão livres de usarem os mesmos meios para desmentirem. Agradeceria bastante.
Em contrapartida, quando, em 2019, eu e a minha colega Paula Mawar, vítima destes actos nocivos de certos profissionais acobertados em organizações defensoras da Liberdade de Imprensa nas províncias, denunciamos a situação de limitação de circulação de informações sobre os ataques em Cabo Delgado por ordem do então Governador da Província, foram os representantes do MISA e SNJ que vieram ao público, alguns pousando, simultaneamente, como repórteres e fontes de informação, distanciando-se e desmentido a ocorrência de tal acto como se de um gesto nobre e patriótico estivessem a prestar à nação.
Por conseguinte, os dias que se seguiram foram tenebrosos para os jornalistas que trabalham para privados e internacionais. Vários foram interrogados e ameaçados. Na altura, o meu telemóvel não parava de chamar, alguns se despedindo ou mesmo chorando para mim. E quando os questiono se se tratavam de Agentes do SISE ou SERNIC, os colegas diziam um sonante “NÂO”, pois eram ameaçados por colegas da profissão!
Sobre o caso Amade Abubacar, por exemplo, eram jornalistas como ele que propalavam, em certos circuitos, que Abubacar era mesmo o que as autoridades diziam – informante dos insurgentes. Alguns chegaram até de se deslocarem à residência do proprietário da casa, onde Amade Abubacar havia arrendado, para dizê-lo que ele estava a albergar alguém estranho e controlado pela justiça. Coitado do Abubacar, o qual, até hoje, aguarda por um desfecho do caso! Infelizmente, devido a estas situações, o homem teve que se reinventar.
A Paula Mawar, que logo que a onda de terror começou, foi colocada na parede para decidir se continuava a escrever sobre os ataques ou se abandonava a instituição. Por sua vez, o Estácio Valoi, embora tenha ganhado o processo contra a Polícia, ainda sonha com o seu material de trabalho em mãos incertas. Sobre o caso Ibrahimo Mbaruco, infelizmente, devido à nossa consciência voltada ao esquecimento, já lá se vão quase dois anos que não se sabe da sua situação. Alguns colegas, por conseguinte, tiveram que trocar as suas assinaturas e vivem mudando, constantemente, de residência por temer o pior – apesar disso, os representantes destas instituições nem estão para eles.
Mesmo na Cidade de Maputo, a técnica de funcionamento é idêntica. Contudo, a vantagem de Maputo é a existência de vários Órgãos de Comunicação Social, no entanto, a solidariedade jornalística é um mito, ou seja, escreve-se por ocasião, para o inglês ver. Em caso de um acontecimento, os colegas julgam-te, dizem que já sabiam que ele era assim. Até os que são raptados e espancados, há quem corre para informar as lideranças que se tratava de questões sociais. Quando se queima um escritório de um jornal, prendem-no arbitrariamente e acusam-no de crimes que não cometeste. E os colegas da classe afirmam: “isso é assunto dele, não vamos nos intrometer”.
Eu sou um exemplo disso! Recentemente, um colega, curiosamente, Coordenador de uma associação de jornalistas, disse-me na cara que o caso da minha detenção não foi assim como tem sido explicado, que a Procuradoria da Cidade de Maputo, que decidiu em se abster do processo, não tinha que o fazer, pois, eu teria cometido os tais actos sobre os quais fui acusado. Não imaginam o quanto fiquei chateado com aquele colega e, por pouco, partia para a ignorância, contudo, como sei o tamanho das grades mentais que o tipo carrega, preferi agir como um monge!
Posição similar cheguei a ouvir com outros colegas da classe, os quais confessaram que, a princípio, deram razão às autoridades policiais, entretanto, quando juntaram as peças, viram que eu tinha razão. Mesmo assim, eles sugeriram que eu deveria abrandar o nível de trabalho que tenho realizado, para não voltar a ter estresses de género, entre outras coisas. Alguns até foram prometidos cargos, em instituições estatais, caso fornecessem informações comprometedoras ao meu respeito, mas a prudência e verticalidade ajudou-lhes a reflectir melhor!
Outra situação preocupante está a ser vivida, nos últimos dias, pelo jornalista Luciano da Conceição, natural de Tete, e correspondente da DW África na Província de Inhambane. O homem tem vivido uma autêntica situação ao modo nazista protagonizada por jornalistas e representantes do SNJ em Inhambane e não só. Ele, que há meses foi raptado na porta de casa e deixado numa praia inconsciente, vive actualmente em constante hostilização por parte dos colegas da classe e de outras individualidades.
A hostilidade ao jornalista intensificou-se desde que ele escreveu o artigo sobre as qualificações académicas do Administrador de Vilankulo, Edmundo Galiza Matos Jr. Como é apanágio destes grupos, Luciano foi removido de todos os grupos de WhatsApp de jornalistas e do Sindicato na Província, humilhado pelos colegas e chamado para um “café nazista” de enculturação dos âmbitos jornalísticos da Província pelo representante do SNJ, alegadamente, porque o homem está a agir fora da caixa. Luciano da Conceição recebe ligações constantes destes grupos, ameaçando-o e demonstrando algumas atitudes tribalistas.
Nas agendas de trabalho da Província, o jovem jornalista é excluído porque, alegadamente, não escreve como “patriota”, ou seja, ser patriota é replicar os supostos feitos da administração local – sinceramente – que o diga Armando Nenane, abandonado à sua sorte e exigido a pedir desculpas ao General, por ter exercido um direito constitucional – Liberdade de Imprensa e de Informação – agora é sugerido a ajoelhar-se nas botas do General, lambê-las e vir, publicamente, confessar o crime de informar – só mesmo em Moçambique. E os mesmos defensores organizacionais da Liberdade de Imprensa dizem não ter dinheiro para o apoiar – que coisa, nem!?
Na Cidade da Beira, o jornalista Arsénio Sebastião, quando pensava que o caso, que aparentava ter sido dirimido em 2020, eis que um Tribunal local decidiu condená-lo pelo Crime de Corrupção. Já se passaram semanas e nenhuma organização veio ao público para denunciar e repudiar esta acção incompreensível do Tribunal.
Portanto, os casos são variadíssimos, e espalham-se em todo o País. Talvez terei que fazer um segundo texto para narrar mais casos de género, porque é importante que haja mudanças de comportamentos e atitudes por parte de todos nós.
Por conseguinte, chegando a esta parte, eu penso que seja de vital importância que se repense sobre quem representa a classe jornalística em algumas Províncias. Não se pode admitir que assessores de dirigentes que, estranhamente, ainda exercem a profissão estejam na liderança de organizações como MISA-Moçambique e SNJ, as quais, quando bem dirigidas e representadas, tornam-se num veículo importante de defesa, protecção e moderação desta profissão nobre que, em outros quadrantes, constitui o Quarto Poder, mas, aqui na Pérola do Índico, alguns guardam o poder no quarto!
Atenciosamente. Até já!
Na semana passada, uma mensagem de WhatsApp circulou, viral, pela net fora, sendo consumida vorazmente pelos utentes daquela rede social. Era o relato do drama de uma família que teve uma paciente internada no famigerado Hospital Privado de Maputo (HMP).
Quase cinematográfico, o enredo juntava dor, chantagem e morte. Uma mulher foi internada, melhorou (e sua conta subiu drasticamente) e depois virou óbito (quando a família revelou dificuldades de juntar as somas cobradas). Mesmo depois do óbito, o HPM insistiu na cobrança, como o cobrador do fraque...com seu bisturi apontado para uma veia jugular da doente. Os detalhes dessa vergonhosa trama estão descritos num artigo de “Carta” nesta edição. Mas, são factos que em Moçambique repetem-se ao longo do tempo, com personagens diferentes.
O problema – métodos funestos que as clínicas usam para cobrar preços exorbitantes pelos seus serviços médicos – tem barbas. Ele decorre da ausência de regulação. Com a introdução da economia do mercado, em meados da década de 80, Moçambique foi liberalizando actividades que eram, então, da exclusiva alçada do Estado. A propriedade de clínicas privadas e o exercício da actividade médica foram liberadas.
Ao longo dos anos, clínicas privadas cresceram como cogumelos, mas o Estado nada fez para impor ordem na sua actuação, mormente no que diz respeito à regulação da oferta de procura de serviços médicos, especificamente na determinação dos preços dos actos médicos.
Nos seus primeiros anos, as clínicas privadas usavam como referência os preços praticados na RAS, fazendo tábua rasa da diferença do poder de compra entre os consumidores dos dois mercados. Mas assim foi...que o próprio Estado foi arrastado para essa perversão, usando de um artífice qualquer para abrir uma clínica com preços de privado no serviço público, concretamente no Hospital Central de Maputo.
Ao longo dos anos, a falta de regulação oficializou uma selvajaria que se foi sedimentando nas barbas de um Estado ausente, de Governos incompetentes e de uma Assembleia da República completamente à leste do problema. Chegamos a este ponto de pandemia ética. Cada clínica tem o seu precário, carcomendo as poupanças dos seus utentes, que não têm onde se queixar, nem na Provedoria de Justiça, cuja função de advocacia para a melhoria de quadros regulatórios é quase nula.
Se as nossas elites políticas quisessem, o Governo já teria posto alguma ordem no precária dos actos médicos. Mas não, essas elites são tratadas em hospitais de fora do país (embora a epidemia do Covid 19 tenha mostrado que essa saída tem limites). Por outro lado, no advento do associativismo, era esperado que as organizações de classe no sector dessem um contribuído para varrer a podridão.
Mas nada! A Associação dos Médicos de Moçambique (AMM) tem sido uma nulidade nesse sentido. Era ela que devia chamar para si a prerrogativa de estabelecer, anualmente, um precatório para os actos médicos em Moçambique, numa perspectiva de auto-regulação. É assim que se faz na RAS. No país vizinho, todos os anos a associação dos médicos local determina os preços para cada acto médico.
Em Moçambique chegamos à aberração de o Instituto do Coração vir divulgar seu precário, como fez recentemente, num fingimento de transparência que só acontece em país desgovernado: cada clínica tem o desplante de marcar seu próprio preçário, sugando o pobre bolso dos moçambicanos. Este vazio ético se estende ao papel esperado da Ordem dos Médicos de Moçambique. Mais de 15 anos depois dela ter sido estabelecida, ainda não fez o suficiente para que o seu Código de Ética Médica fosse aprovado pela Assembleia da República.
Mas chegou a altura de dizer basta! As novas gerações que hoje comandam as entidades relevantes da Saúde têm uma oportunidade histórica: reverter esta prática de medicina de rapina que comanda nossa medicina privada. Já chega!
A ciência, assim como o desenvolvimento, são dois campos cuja definição não se mostra tarefa fácil, sendo que ambos estão revestidos de contradição ou falta de consenso teórico. Historicamente, ao abordar sobre o desenvolvimento faz-se referência primária para o campo económico, sobretudo em oposição ao crescimento quantitativo de um determinado país.
Relativamente ao termo “ciência”, Fontaine (2008)[1] sublinha que é emprestado do latim scientia, significando “conhecimento” em sentido amplo, ou ainda “conhecimento científico”, e tendo em conta os tempos clássicos o significado da episteme grega – “conhecimento teórico”. Assim, ciência designaria primeiro um know-how obtido pelo conhecimento agregado à habilidade, para então denotar, posteriormente, o conhecimento adquirido em um objecto de estudo detalhadamente definido. A ciência, tanto do ponto de vista teórico como teológico, designará cada vez mais um conhecimento perfeito, preciso, rigoroso e mais preocupado com o formalismo (este formalismo que lhe será conferido, nos tempos modernos, pelo uso generalizado da ferramenta matemática que permite equacionar métodos de pesquisa e resultados).
Embora sem consenso, podemos afirmar que no sentido mais amplo, a discussão sobre ciência é agregada numa tipologia onde temos (1) ciências naturais (física, química, ciências da vida, do universo e da saúde); (2) ciências tecnológicas (comunicação e electrónica, sobretudo); (3) ciências humanas e sociais (economia, sociologia, ciência política, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras) ou ainda (4) ciências exactas (matemática, por exemplo).
Segundo Chatelin (1986)[2], ciência e desenvolvimento definem uma questão que parece bastante clara. Para o autor, existe uma ideia amplamente aceite de que o próprio desenvolvimento deve ser acompanhado e apoiado pelo progresso científico, embora alguns posicionamentos discordantes às vezes sejam ouvidos. De facto, Chatelin (idem) avança que existe quem afirme que a pesquisa baseada nas humanidades é completamente inútil em países sem desenvolvimento avançado, dado que as necessidades são outras. Embora recorrente, consideramos que tal proposição constitui um exercício teórico equivocado, pois está desprovida de uma convicção real. Para nós, não se pode equiparar a(s) ciência(s) em função do seu peso ou falta dele.
Nos últimos anos, o debate entre ciência e desenvolvimento foi substituído pela necessidade de ‘’saber fazer’’[3] e realização de uma ocupação profissional, sobretudo por parte de uma franja populacional considerada jovem em países como Moçambique[4]. As idades entre 14 e 20 anos podem ser consideradas de auto-descoberta, exploração de habilidades e busca de um lugar na sociedade, sendo que é justamente ao longo dessa idade que se cristaliza uma maior capacidade crítica em relação às regras sociais e familiares estabelecidas e a outras coisas que, mais ou menos, simplesmente eram aceites sem questionamento. Em suma, é uma idade biológica desafiadora para muitos pais e professores, sobretudo quando seus filhos e alunos questionam sua “sabedoria” e começam a encontrar respostas para os problemas que eles acham que seus pais não podem resolver adequadamente[5]. Da mesma forma, a ciência explora o mundo além das limitações actuais do conhecimento, desafia a “sabedoria” e se propõe a encontrar respostas.
Atrair os jovens para a pesquisa científica também se tornou um tópico de crescente importância do ponto de vista da ciência. Por exemplo, nota-se que cientistas, economistas e políticos em países como Estados Unidos da América vêm lamentando o número decrescente de estudantes que escolhem uma carreira nas ciências naturais e exactas. A preocupação é com a diminuição de potenciais cientistas e engenheiros, o que poderia dificultar o crescimento de indústrias de alta tecnologia, particularmente biotecnologia e tecnologia da informação. A questão de tornar a ciência e a pesquisa atraentes para os jovens gerou muitos debates sobre o futuro da pesquisa em si, bem como das tecnologias relacionadas (Mervis, 2003[6]; Moore, 2002[7]).
Se tomarmos a nossa introdução sobre a definição de desenvolvimento e aplicar ao contexto moçambicano, provavelmente não seja possível captar a real sensibilidade sobre o contributo que existe para a ciência. Com a noção de liberdade acoplada ao desenvolvimento, fica-nos como questão compreender de que forma o desenvolvimento pode ser relacionado com a(s) ciência(s). Porém, as advertências actuais para a ciência são numerosas. Sabemos, em primeiro lugar, que a ciência não leva necessariamente ao desenvolvimento, que o tempo de resposta pode ser longo, que apenas parte da ciência pode se tornar útil. Sabemos ainda que as aplicações da ciência nem sempre são boas, a manipulação genética, por exemplo, é assustadora.
No caso de Moçambique, verifica-se a tendência de uma aposta baseada na ciência enquanto técnica e prática, dentro de um prisma que pretende, de forma urgente, capacitar uma franja populacional ávida em busca de sustento para alívio de pobreza que, tal como vista por Amartya Sen (2001)[8], é um empecilho para o desenvolvimento como liberdade. O tripé sobre jovens, ciência(s) e desenvolvimento em Moçambique é limitado pelo facto de existir uma preocupação que toma a ciência enquanto um escopo técnico e prático, sem promover áreas que possibilitem abordar a própria ciência por via de outras lentes, ou seja, ciência no plural.
Por um lado, a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e consequentemente do Fundo Nacional de Investigação (FNI), são disso um exemplo eminentemente de aposta técnica, sobretudo quando o FNI se define como tendo a missão de ‘’(...) promover a divulgação do conhecimento científico, a investigação científica, a inovação tecnológica e a formação de investigadores, contribuindo para o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique’’[9].
Por outro lado, podemos tomar como exemplo a criação da Secretária de Estado da Juventude e Emprego, que toma a ciência como possibilitadora do desenvolvimento de capacidades de uma franja da população, cuja necessidade laboral é premente – o que é feito através do ‘’empreendedorismo’’, formação e capacitação técnico-profissional. Dessa forma, pensamos que a abordagem sobre jovens, ciência e desenvolvimento deve ser feita tendo em conta a existência de outras janelas em que a própria ciência pode ser aplicada, embora se reconheça a necessidade de prover empregabilidade para esses mesmos jovens que enfrentam problemas de variada ordem.
Entendemos, por fim, que Moçambique padece de um dilema que pode ser resumido na incapacidade em promover a ciência para além do suprimento das necessidades dos jovens, razão pela qual questiona-se sobre como estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de sobrevivência (sobretudo dos jovens), sem excluir a aposta na(s) ciência(s)?
*Este texto foi revisto/adaptado de uma comunicação proferida em 12 de Agosto de 2020, por ocasião do Dia Internacional da Juventude, em resposta ao convite da APDS – Academia de Pesquisa & Desenvolvimento Sustentável.
[1] Fontaine, P. (2008), Qu’est-ce que la science ? De la philosophie à la science : les origines de la rationalité moderne, Recherche en soins infirmiers, 92(1).
[2] Chatelin, Y. (1986), La science et le développement. L’Histoire peut-elle recommencer ?, In: Tiers-Monde, tome 27(105).
[3] Do francês savoir-faire ou do inglês know-how, designa um conjunto de conhecimentos, aptidões e técnicas adquiridos por alguém ou por um grupo, geralmente através da experiência, competência na execução de certas tarefas práticas e em determinadas actividades artísticas ou intelectuais.
[4] Não existe uma única definição sobre quem pode ser considerado jovem. Porém, a média de idade em Moçambique está fixada nos 16 anos, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE, 2019).
[5] Ver mais em Csermely, P. (2003), Recruiting the younger generation to science, EMBO reports, 4.
[6] Mervis, J. (2003), Down for the count?, Science, 300.
[7] Moore, A. (2002), What you don't learn at the bench, EMBO reports, 3.
[8] Sen, A. (2001), Development as Freedom, OUP Oxford, new edition.
[9] Fundo Nacional de Investigação (FNI) – https://fni.gov.mz/sobre-fni/ – é uma instituição que se define como promotora da pesquisa científica, tendo como base a inovação tecnológica em Moçambique.