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sexta-feira, 20 outubro 2023 06:26

A impugnação prévia deixou, efectivamente, de ser obrigatória no Direito Eleitoral moçambicano, escreve o jurista Ericino de Salema

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Quando a nação moçambicana (di)gere a mais turbulenta eleição que alguma vez se realizou em solo pátrio, nomeadamente as sextas eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023, discute-se, nalguns meios, se a impugnação prévia dos actos eleitorais ainda é obrigatória como condição indispensável para que os interessados neles possam accionar os órgãos jurisdicionais em caso de discordância das decisões administrativamente proferidas pelas entidades integradas na Administração Eleitoral, a todos os níveis. Há, por um lado, os que defendem que tal ainda é obrigatório, sob pena de os tribunais eleitorais – Tribunais Distritais e Conselho Constitucional, conforme o caso – se absterem de conhecer dos pedidos que lhes são apresentados, existindo, por outro lado, os que entendem que impugnar previamente os actos eleitorais em crise deixou de ser obrigatório para que se possa ter acesso aos tribunais eleitorais. Incluo-me neste último grupo e me explico, nas linhas que se seguem, sobre as razões que me levam a fazê-lo.

 

  1. Até 30 de Maio de 2019, impugnar previamente, ou seja, apresentar reclamação, protesto ou contraprotesto no momento em que uma certa decisão eleitoral é tomada, directamente ao órgão ou à entidade que a toma, ou à respectiva Comissão Distrital de Eleições (CDE) ou Comissão Nacional de Eleições (CNE), conforme o caso, nesta última modalidade dentro do prazo estabelecido por lei, era, sem margem para dúvidas, obrigatório em Moçambique.
  1. O referido no ponto precedente equivale a dizer que os interessados possuidores da necessária legitimidade activa para o efeito que não apresentassem reclamação, protesto ou contraprotesto nas entidades administrativas eleitorais respectivas num certo intervalo de tempo já não podiam intentar validamente uma acção em tribunal sobre a mesma situação. Quando o fizessem, a resposta era o indeferimento liminar por parte do tribunal, por incumprimento desse requisito imperioso.
  1. Entretanto, a Assembleia da República (AR) enquanto legislador eleitoral decidiu introduzir reformas no Direito Eleitoral moçambicano no primeiro semestre de 2019, ao proceder à revisão da Lei n.º 13/2013, de 27 de Fevereiro – que estabelece o Quadro Jurídico para a Eleição do Presidente da República e dos Deputados da Assembleia da República –, que se acham reflectidas na Lei n.º 2/2019, de 31 de Maio, que, além de alterar, republica, igualmente, a Lei n.º 13/2013, de 27 de Fevereiro.
  1. Umas das reformas consideradas na ocasião foi a introdução do princípio da tutela jurisdicional efectiva no ordenamento jurídico eleitoral moçambicano, conforme disposto no artigo 8 dessa lei (Lei n.º 2/2019, de 31 de Maio), um direito fundamental consignado na Constituição da República de Moçambique (CRM), como se explanará adiante, que pressupõe o direito de acesso aos tribunais para efeitos de defesa de direitos e interesses, “não podendo as normas que modelam este acesso obstaculizá-lo ao ponto de tornar impossível ou [mesmo] dificultá-lo de forma não objectivamente exigível”[1].
  1. Não ignoro que, em bom rigor, e em homenagem ao princípio da interpretação sistemática das normas jurídicas, é procedente arguir que o princípio de tutela jurisdicional efectiva já se achava presente no Direito Eleitoral moçambicano, de que a CRM é parte, por conta, de entre outros, dos princípios de acesso aos tribunais e de não imposição de obrigatoriedade de recurso gracioso como condição para se ter acesso à jurisdição administrativa no país, conforme vertido, respectivamente, nos artigos 70 e 252 da CRM. Entretanto, por ‘introdução’ do princípio da tutela jurisdicional efectiva nesta minha singela contribuição nesta discussão estou a referir-me à sua consignação na Lei Eleitoral.

 

  1. Com efeito, sucede que na mesma lei que introduz o princípio da tutela jurisdicional efectiva no nosso Direito Eleitoral está presente uma norma, cujo epicentro nos parece ser a sua operacionalização, significando, aparentemente, que o princípio da impugnação prévia ainda se acha presente nos processos eleitorais em Moçambique, designadamente o n.º 2 do artigo 192. Porém, a interpretação sistemática dos comandos insertos na Lei n.º 2/2019, de 31 de Dezembro, sobretudo nos artigos 8 e 192 (n.º 2), faz concluir que esta terá sido mais uma ‘gafe’ do nosso legislador, que, se pretendesse manter a obrigatoriedade da impugnação prévia, não teria, de resto, introduzido o princípio da tutela jurisdicional efectiva. E há, na esfera pública, prova abundante desta intenção inequívoca do legislador eleitoral[2].
  1. Por outro lado, vale recordar, nesta discussão, que eleger e ser eleito são direitos fundamentais em Moçambique, tal como se acha expresso no artigo 73 da CRM, onde esses direitos fundamentais são apresentados como a mais importante forma de participação política no nosso país, sendo, por isso, apresentado em ‘primeira linha’, antes da participação em referendos e nos demais assuntos da nação.
  1. E sendo eleger e ser eleito direitos fundamentais, não se deve, nunca, perder de vista a norma do n.º 1 do artigo 56 da CRM, que estabelece que “Os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis”.
  1. Até porque o legislador constituinte conferiu altíssima dignidade à temática de direitos humanos, a ponto de editar uma norma segundo a qual “Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos” (artigo 43 da CRM).
  1. Não se pode, nem deve, criar obstáculos à soberania popular, de que as eleições são a mais nobre plataforma, o que seria contrário ao que preceitua o n.º 3 do artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”.
  1. Associo-me, sem reservas, aos que entendem que “nenhuma regra de direito ordinário poderá limitar o direito que qualquer cidadão (e, portanto, todos os cidadãos) com capacidade eleitoral activa possui de, através do exercício do sufrágio, participar na vida política, nos termos da Constituição”[3].
  1. Em meu entender, é igualmente relevante que não se perca de vista que todos os actos eleitorais são, em boa verdade, actos administrativos, devendo ser conferida àqueles (actos eleitorais) “tutela jurisdicional urgente”[4].
  1. Bem-vistas as coisas, até mesmo por uma questão de lógica não faria sentido exigir impugnação prévia como condição sine qua non para se conhecer um certo pedido em sede dum processo eleitoral em que se acham apensas, hipoteticamente, provas bastantes, ao que se acresce a obrigatoriedade legal de os tribunais distritais, enquanto tribunais eleitorais, julgarem os processos eleitorais na presença de todos os sujeitos activos e passivos, ou seja, de todas as partes relevantes.
  1. Aliás, um dos inconvenientes da impugnação prévia no contencioso eleitoral é que grande parte das irregularidades eleitorais tem justamente que ver com a falta de condições objectivas para os interessados apresentarem as suas reclamações, protestos ou contraprotestos, devido ao ambiente intimidatório e conflituoso que tem marcado o apuramento parcial, conforme os abundantes exemplos exibidos por algumas televisões e em várias redes sociais nos últimos dias, onde agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) retiraram, à força, delegados dalguns partidos políticos.
  1. Então, se o processo eleitoral é, por excelência, urgente, por os actos eleitorais ocorrerem em cascata, por que razão de ciência se deve insistir na obstaculização do acesso aos tribunais? Se esse acesso for feito sem prova, quer seja material, quer seja testemunhal, ou de qualquer outra índole legalmente admissível, certamente que o tribunal nada fará senão decidir pela improcedência dos pedidos.
  1. O acesso à justiça em si é, reitero, um direito fundamental. É, pois, por isso, que a jurisprudência do próprio Conselho Constitucional é pela inconstitucionalidade das normas que preceituam a obrigatoriedade da impugnação prévia em sede do contencioso administrativo, em homenagem, certamente, ao disposto no artigo 252 da CRM. Assim, se o Conselho Constitucional exigir, hipoteticamente, no actual quadro, impugnação prévia no contencioso eleitoral, estaria numa situação clara e cristalina de incoerência jurisprudencial, que dá lugar à contradição de julgados.
  1. É pelo acima exposto que a norma do n.º 1 do artigo 140 da Lei n.º 14/2018, de 18 de Dezembro, conforme posteriormente revista e republicada, que estabelece o Quadro Jurídico para a Eleição dos Titulares dos Órgãos das Autarquias Locais, deve, por conta do princípio da coerência do sistema jurídico, ser lida e interpretada de forma sistemática e actualista, considerada a eliminação da obrigatoriedade da impugnação prévia, nos termos do artigo 8 da Lei n.º 2/2019, de 31 de Maio, em homenagem à sacrossanta regra segundo a qual a lei nova prevalece sobre a lei antiga, nomeadamente quando aquela(a de 2019, neste caso) regula de forma diversa algo que fora já regulado por esta (a de 2018)[5].
  1. Eis as razões que me levam, em linha com o direito à razão, que não deve ser confundido com o direito a ter razão, como gosta de ensinar o Professor Elísio Macamo, a ter a convicção técnico-jurídica de que a impugnação prévia deixou de ser obrigatória a partir de 31 de Maio de 2019, momento em que entrou em vigor a Lei n.º 2/2019, de 31 de Maio, que introduz, no Direito Eleitoral moçambicano, o princípio da tutela jurisdicional efectiva.            

 

[1] Linhas explanatórias retiradas no sítio da internet do Diário da República de Portugal, disponível aqui: https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/principio-tutela-jurisdicional-efetiva. Consulta efectuada a 19 de Outubro de 2023.   

[2] Em Agosto de 2019, ou seja, três meses depois da eliminação da obrigatoriedade da impugnação prévia, Edson Macuácua, na sua qualidade de Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade (Primeira Comissão) da AR fez uma apresentação numa conferência promovida pela JOINT em Maputo, na qual apresentou o que designou de “vantagens e desvantagens da retirada da obrigatoriedade da impugnação prévia”. Detalhes disponíveis aqui: https://www.facebook.com/joint.mz/photos/edson-macu%C3%A1cua-falando-das-vantagens-desvantagens-da-retirada-do-princ%C3%ADpio-de-im/2505861609643134/. Consulta efectuada a 17 de Outubro de 2023.

[3] In: Acórdão n.º 19/85 do Tribunal Constitucional de Portugal, que pode ser consultado no linkhttp://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19850200.html. Acessado a 18 de Outubro de 2023.  

[4] Freitas do Amaral e Aroso de Almeida; Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo; pág. 98; Coimbra: Almedina.

[5] Disciplina patente no artigo 7 do Código Civil.

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