Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
segunda-feira, 19 julho 2021 14:03

O triunvirato de Messumba

Escrito por

Três Humanistas, Três Ciências, Três Pedidos

 

Por José P. Castiano e Jorge Ferrão

 

Ninguém, no melhor dos seus sonhos, poderia imaginar que, da distante, inóspita e diminuta missão anglicana de Messumba, na igreja de S. Bartolomeu, no Niassa, três jovens tocariam os sinos da vida e seguiriam caminhos tão equidistantes, impactando nos corações de milhares de seguidores.  Depois da formação inicial, seguiram para a escola de artes e ofíciosde Massangulo. Carlos Machili virou carpinteiro; Filipe Couto, sapateiro; e Brazão Mazula, encadernador de livros.

 

Pode não ter sido a missão de Messumba que criou neles o sentido primário e ético de vocação. Todavia, o sentido, talvez superior, de “missão” foi propiciado pela forte formação teológica e filosófica que foram recebendo. Depois, partiram o Mundo, i.e., Itália para o caso de Machili, Alemanha para o padre Couto e Brasil para o Brazão Mazula, sem descurar outros universos por onde passearam sua classe e virtudes. De certa forma, esta formação superior proporcionou-lhes uma relação mais racionalizada para com as suas crenças e Fé. Daí terem assumido as suas crenças temporais com o sentido de “missão”.

 

Os alemães, pela boca de Max Weber, têm um encanto especial pelo termo “vocação”. A vocação não está, somente, ligada ao seu sentido prático e profissional, porém, e sobretudo, ao espiritual. A “missão” que cada indivíduo recebe, uma vez terminada a sua formação, se transforma num chamamento para a perfeição, honestidade e, principalmente, no sentido de um servidor do outro. Não é por acaso que, em alemão, a palavra Beruf significa profissão. O verbo beruffen significa mesmo chamamento.

 

Convocar e celebrar estes três “iluminados” de Massangulo, num mundo conturbado e em agitação plena – terrorismo em Moçambique, “free Zuma”, Bolsonaro, Ndhlavela, vitória da Itália – foi um acto proporcional e de pura nobreza. Existirão, sempre, infinitas razões para “vasculhar” as pontas que mais os uniram, e os que os dividem. O denominador comum, convenhamos, assenta nessa “trindade” oriunda de uma educação missionária de um local “esquecido”, e que transcendeu e se afirmou como referência obrigatória no panorama mundial.

 

Se estas razões forem insuficientes, teríamos, então, de apelar ao nacionalismo, ao contributo para a causa e luta de libertação nacional e, no pós-independência, ao aficando empenho na educação das novas gerações. Um “triunvirato” que continuará presente em nossas consciências, nesta e futuras gerações.

 

Esta trindade não é santa. Aliás, gerou, ao longo de anos, consensos e descensos, empatias e apatias, animosidades e hostilidade. Não obstante, se reconhece uma trajectória e um percurso, que transcendeu do reduto Niassa, perpassando o mundo, para assumir missões maiores num mundo designado Moçambique, e para uma universalidade por via de uma academia universalista. Todos eles, oriundos dessa formação teológica-filosófica, abraçaram, posteriormente, a academia moçambicana como produtores de pensamento e como gestores/reitores nas duas maiores instituições públicas e estruturantes – a Universidade Eduardo Mondlane, para os casos de Brazão Mazula e Filipe Couto; e a Universidade Pedagógica para o caso de Carlos Machili.

 

Não temos ilusões sobre os efeitos dessa caminhada na personalidade e carácter de cada um. A unicidade, aliás, teria sido nociva e perversa.  Então, quais seriam, as crenças temporais através da quais, cada um deles, enriqueceu a sua fé e personalidade?

 

 

Na sua actividade como intelectual, Brazão Mazula é um profundo crente da possibilidade de Democracia, em África, baseada no uso da “palavra” (ou do “agir comunicativo”, tomando o sentido habermasiano). Ao mesmo tempo que fazia um diálogo profundo com filósofos como Hegel, Heidegger, Eric Weil, mas, sobretudo, com Marx e Habermas, Mazula foi também incansável em buscar, nos pensadores, africanos como Mulago, Hountondji, Eboussi-Boulaga, ou seja, na “esteira académica” africana, inspiração para fundamentar uma democracia baseada no uso da palabre e na “criação da riqueza”.

 

Mazula desempenhou um papel fulcral para que as primeiras eleições democráticas tivessem lugar. Assim, tem sido ao longo da sua carreira, e nos momentos mais sensíveis e de desassossego. Pelas obras que publicou, provou sua versatilidade e capacidade de negociar, construir pontes e essa identidade democrática, que continua distante de ser a ideal, finalizada, ou mesmo a mais reconciliatória.

 

Por seu lado, Carlos Machili, na palavra e em acto, foi, e ainda é, um grande crente da ideia de que “a qualidade da educação em Moçambique, somente pode (pro)vir da quantidade”. Não é excluindo uns ou uma parte da sociedade, ou seja, apostando numa educação e formação elitista e elitária, que vai se garantir a qualidade: “uma universidade deve ser mordida por mosquitos”. Ouvimos ele, inúmeras vezes, a defender. Às vezes mesmo sozinho, no meio de muitos experts em “educação de qualidade”.

 

 

Machili, pois, é um fervoroso crente da expansão do ensino superior para todo o país. Não quis ficar refém de uma linha elitista, emergente, que contra-argumentava suas pretensões. Contra tudo e todos, foi abrindo delegações da Universidade Pedagógica, por todas províncias. O que foi específico nele é que a quantidade, a expansão, não era algo que se deveria fazer em detrimento da qualidade, daí a sua insistência, quase que de forma insurgente – e ele é mesmo um insurgente intelectual – na necessidade de uma boa formação de professores (recusou e insurgiu-se, oficialmente, contra a formação 10+1 ou 12+1, esquemas inspirados pelo Banco Mundial).

 

Por fim, o Padre Couto, talvez por ter sido sapateiro, combinando com o facto de ser fervoroso admirador de Martin Lutero, o reformista alemão, é um fervoroso crente das potencialidades da juventude moçambicana. Ele deposita fé na capacidade que a geração mais jovem tem em ser irreverente, no seu sentido positivo. Isto é, de ela própria reconhecer os desafios do seu tempo-vivido. É por isso que insiste muito, nas suas aparições públicas, na não-glorificação e não deificação de actos humanos do passado recente da historiografia de Moçambique, por mais “gloriosos” ou “heróicos” que nos pareçam e apareçam. O que interessa é o futuro e a forma como a juventude estará preparada para actos naturais neste futuro.

 

É somente a partir desta trindade de crenças, iluminadas pela fé no futuro, que podemos entender os três “pedidos” que expressaram no acto da sua homenagem na UP-Maputo: “Não matem a filosofia nas escolas moçambicanas, pois a falta dela pode ser uma das razões principais para prevalência da violência que vivemos hoje” – ouvimos Mazula a pedir, para logo acrescentar alguma ironia: “não sei dar, só sei pedir”. O Carlos Machili, igual a si mesmo, expressou da seguinte forma o seu desejo: “uma universidade que não produz dinheiro, morre” para depois acrescentar que “deixem que este dinheiro produzido, internamente, seja gerido pelos departamentos e faculdades”.

 

Por seu lado, Filipe Couto, já cego, mas atento às dinâmicas actuais, pediu à juventude para, por via da Universidade Pedagógica de Maputo, fazer um trabalho profundo na compreensão da História e da historicidade de Moçambique. Só assim é que o futuro não será uma repetição, em forma de tragédia, do passado que nos parece e aparece como sendo heróico. Nunca houve, não há e nem haverá homens infalíveis. A grandeza humana na História, só se avalia pela forma como os homens e cada um, se confrontam com as suas próprias contingências e fraquezas de momento – parecia querer dizer ao evocar as personalidades de Urias Simango, Mateus Gwendjere ou Lázaro Nkavandame. Não se tratou de acender a chama dos esqueletos, mas de proporcionar uma revisão histórica, genuína e descomprometida, mesmo considerando que alguns se tenham posicionado do lado “reaccionário” da revolução.

 

 

Resumindo, de uma coisa temos a certeza: os três humanistas que viveram as suas crenças como “missão” da vida, não foram e nem formaram uma “santa” Trindade; bem pelo contrário, tiveram as suas angústias, emoções, talvez até erros, resultantes destas suas crenças. O certo é que todos foram forjados no “Niassa”, para o mundo. (X)

Por José P. Castiano e Jorge Ferrão

 

 

Sir Motors

Ler 7560 vezes