Obrigado por me receberem neste encontro. Parabéns aos organizadores destas Jornadas. Moçambique pode ter orgulho na sua intervenção face à COVID 19. Conheço muitos países que se reclamam ricos e desenvolvidos que não foram capazes de sujeitar os interesses políticos e partidários às razões da ciência. Os governantes moçambicanos escutaram os cientistas e seguiram os seus conselhos. E isso é uma tripla vitória: para a ciência, para a governação e para o país. Seria bom que para outros assuntos os dirigentes do país voltassem a aceitar os conselhos da ciência, da arte e da cultura. Venho falar-vos não como biólogo, mas como escritor.
E como escritor, fascina-me o fenómeno do esquecimento. Tenho, para mim, que o esquecimento nem sempre resulta de um lapso. A maior das vezes é uma construção narrativa. Quando nos esquecemos, nós raramente falhamos. Raramente tropeçamos no vazio. Em vez disso, o que acontece é que nós construímos uma outra narrativa por baixo da qual enterramos os tempos que nos causaram medo, enterramos os episódios em que não fomos vencedores. Somos dotados de uma amnésia selectiva que nos desvincula dos grandes sofrimentos.
Às vezes, e isso é o mais triste e mais comum, não existe uma narrativa de substituição. Esquecemos porque, pura e simplesmente, regressamos à nossa velha rotina. Em pouco tempo somos devorados por um quotidiano de pequenas crises e grandes sobrevivências. Mais cedo do que pensamos, voltará a acontecer um outro desastre que nos irá, uma vez mais, apanhar de surpresa. Estaremos, de novo, improvisando respostas de emergência. Estaremos, uma vez mais, desprevenidos perante o previsível. É pena que assim seja.
Na realidade, a lembrança é uma espécie de vacina: prepara nos para lidar com algo que reconhecemos como já vivido. Eu trago uma pergunta simples para esta sessão. E a pergunta é a seguinte: como é que daqui a uns anos iremos recordar a presente pandemia? Essa pergunta pode ser formulada de forma mais directa: será que, depois da COVID 19, vamos criar o novo normal ou vamos regressar ao velho anormal? A melhor maneira de imaginar o futuro depois da COVID 19 é lembrar como, nas anteriores pandemias, a promessa de um novo tempo foi ou não foi cumprida. Pode-se fazer uma pergunta simples: quem ficou a ganhar na longa lista das pandemias: foi a memória ou o esquecimento? Façamos um rápido balanço. Vou saltar por cima das incontáveis pandemias que assolaram a humanidade. E vou escolher apenas a gripe espanhola que, segundo a OMS, continua a ser o maior desastre da história da saúde humana.
Vale a pena, pois, revisitar o ano de 1918, o ano da chamada Gripe Espanhola. Em três surtos sucessivos a Gripe Espanhola matou em todo o mundo 50 milhões de pessoas apenas num ano (dez vezes mais do que a COVID 19 matou em dois anos). Esta pandemia veio junto com a Primeira Guerra Mundial que causou a morte de outras 38 milhões de pessoas. Os governos europeus decidiram esconder a realidade brutal desta doença para não desmoralizar nem os soldados na frente de combate nem as famílias que esperavam que esses soldados voltassem a casa.
O nome "Gripe Espanhola" não vem do local onde teve início o contágio, mas sim do facto de a imprensa espanhola ter dado especial atenção à doença. A Espanha não estava envolvida na guerra, a imprensa de Espanha não sofria de censura em relação à doença. Se estamos a falar em esquecimento é preciso começar por dizer que a maior parte dos médicos que tratavam os doentes da Gripe Espanhola em 1918 já se tinham esquecido da uma outra pandemia que vinte anos antes tinha atingido gravemente a Europa. Nessa altura, em princípios dos anos de 1890, os hospitais europeus ficaram superlotados de pacientes atingidos pela chamada Gripe Russa.
Os europeus mais pobres que, naquela altura, emigraram em massa para os Estados Unidos da América foram acusados de trazer essa doença para o chamado Novo Mundo. É curioso como os países se esquecem da sua própria história e hoje a maior parte dos que protestam contra a migração são filhos e netos de emigrantes. O drama da gripe espanhola não ocorreu apenas na Europa. Curiosamente, a Gripe Espanhola foi escondida pela mesma razão que a fez disseminar pelo mundo: a Primeira Guerra Mundial. Milhares de soldados de todas as geografias foram transferidos para outros continentes. E as consequências foram explosivas. Só na Índia, 17 milhões de pessoas morreram. Em África dois por cento da população desapareceu. Na África do Sul a história da Gripe Espanhola está bem registada.
Em Setembro de 1918 dois navios de guerra vindos da Inglaterra chegaram a Cape Town transportando 2000 soldados sul-africanos negros. Esses soldados estavam a ser repatriados depois de passarem um ano nos campos de batalha de França e da Bélgica. Actuavam apenas em serviços de apoio logístico já que a lei sul-africana da altura proibia os negros de usar armas. Algumas dezenas desses soldados vinham infectados e foram encaminhados para as suas terras de origem.
O resultado foi o seguinte: em menos de dois meses morreram 300 000 sul africanos. (Lembremo-nos que em dois anos da COVID 19 morreram 83 000 sul africanos). Durante a Gripe Espanhola, seis por cento da população do país desapareceu em menos de dois meses. A África do Sul foi uma das nações mais atingidas do mundo. O mesmo drama aconteceu no Quénia que perdeu 150 000 pessoas em menos de nove meses. Este número de vítimas equivalia a 6 por cento da população total do país. (É preciso lembrar que agora, com a COVID 19, morreram 4800 quenianos). O Gana viu morrer 100 000 dos seus cidadãos. Na Tanzânia, dez por cento da população foi dizimada, mas o drama teve repercussões ainda maiores porque à doença se juntou uma seca e a fome que matou outras milhares de pessoas.
Em Moçambique não encontrei registos da pandemia nem há censos precisos e abrangentes do conjunto da população na primeira metade do século 20. Sabemos apenas que em 1950 a colónia de Moçambique tinha 6,5 milhões de habitantes. Se aplicarmos a taxa de mortalidade dos países vizinhos a uma população que poderia variar entre 4 a 4.5 milhões de habitantes poderemos deduzir de forma muito grosseira que Moçambique terá perdido naquela pandemia entre 100 000 a 200 000 pessoas.
As duas únicas referências especificas relacionadas com a situação sanitária em Moçambique em 1918 são as seguintes: - "No Final da Grande Guerra de 1914-1918, foi aberto o Cemitério de São José de Lhanguene com o objectivo de acorrer aos enterramentos em massa das muitas centenas de indígenas vitimados pela epidemia pneumónica. “ (A Pandemia da Gripe Espanhola em LM 1918, Alfredo Pereira de Lima, no site The Delagoa Bay World) - a segunda referência tem a ver com portugueses que saíram de Moçambique num navio chamado “Moçambique” em 1918. O navio saiu de Lourenço Marques com 952 passageiros que estavam distribuídos em quatro classes. A mortalidade na 4.ª classe, na qual se encontravam mais de 500 soldados, foi superior a 30%. Nas restantes, em que viajavam sargentos, oficiais e civis, foi de 7,2%.
Quem relata este episódio é um médico português chamado Ricardo Jorge que deu o nome ao Instituto de Saúde Ricardo Jorge em Portugal, com quem o nosso Instituto Nacional de Saúde mantém um acordo de cooperação. Na altura, Ricardo Jorge era comissário-geral do governo na luta contra a epidemia e deixou escrito o seguinte comentário: Não tenho nenhuma dúvida: Os vírus não atingem toda a gente da mesma forma. Os mais pobres pagam a pior fatia da crise". E foi isto que consegui para Moçambique.
No nosso caso, existe mais do que um esquecimento. Não há registos escritos que apoiem quem se queira lembrar da pandemia em Moçambique. Falamos de uma amnésia generalizada dos factos públicos. Mas este esquecimento atinge a área médica e a pesquisa científica. Equipes de investigação de laboratórios do Exército dos EUA iniciaram o estudo da etiologia da Gripe Espanhola por volta de 1951.
A razão fundamental para conduzir esse estudo não era a curiosidade científica, mas aquilo que se entendia como segurança militar. Um projeto super secreto referido com o nome de código Project George fez com que fossem exumados corpos de soldados norte-americanos que tinham sido enterrados nas terras geladas do Alaska. Buscavam-se os segredos genéticos do vírus da Gripe Espanhola. Os dirigentes americanos consideravam esse projecto como sendo de máxima segurança nacional porque receavam que os soviéticos estivessem fazendo a mesma pesquisa a partir dos milhares de soldados que jaziam congelados nas tundras da Sibéria. Essa investigação acabou sendo suspensa e ficou em estado dormência até que, em 1997, um vírus similar ao da gripe espanhola matou uma criança em Hong-Kong. Então a pesquisa voltou a ganhar um caráter de urgência.
Uma das equipes que liderou esta segunda fase da pesquisa foi o Instituto de Patologia das Forças Armadas de Washington liderada por um tal Jeffery Taubenberger. Em 1997, este cientista escreveu o seguinte sobre a gripe espanhola: “não foi o vírus que, na maior parte das vezes, causou a morte. O que foi fatal foi a resposta do corpo da pessoa infectada, resposta conhecida como tempestade ou cascata de citoquinas”. Isto soa familiar? Soa familiar para alguns, mas para a maior parte das pessoas foi como se esta relação causal entre vírus e doença tivesse sido descoberta agora. Disse no início que ia falar sobre esquecimento.
Deixei de lado esquecimentos mais antigos, deixei de lado as pandemias mais antigas mesmo que já tenhamos esquecido que foi a resposta a esses antigos surtos que nos trouxe algumas práticas que pensamos recentes: - a máscara - o distanciamento e o confinamento - a quarentena Estas medidas têm séculos de existência. O escritor Boccaccio já fala de algumas destas práticas no livro "Decameron" escrito em 1350. Contudo, seis séculos depois estas condutas surgem para a maior parte das pessoas como uma novidade.
Voltemos para a pandemia de 1918 para reiterar que esse drama foi incomparavelmente mais grave do que aquele que estamos a viver agora. O balanço é terrível: em apenas um ano um em cada três seres humanos morreu. 1 Os dois terços que sobreviveram estavam 1 Penso que há aqui um erro do autor. A população do mundo em 1918 é estimada em cerca de 1,8 mil milhões de pessoas. Aceitando que morreram 50 milhões de pessoas, a percentagem de mortes seria de menos de 3 por cento, cerca de um décimo do referido pelo autor. absolutamente certos de uma coisa: que a humanidade nunca se iria esquecer daquela tragédia.
A verdade é que esquecemos. Não houve uma intenção deliberada de apagar esse tempo. Houve, sim, outras urgências, outras rotinas, outras tragédias. Mas houve a chegada da chamada “idade de ouro” dos antibióticos, houve uma outra narrativa que afirmava o poderio absoluto da tecnologia, uma narrativa que celebrava a nossa espécie como dona absoluta da natureza e do futuro. Nos dias de hoje, a humanidade está absolutamente convencida que o drama da COVID 19 nunca mais será esquecido. Não sei se amanhã perante um Juiz sentado no tribunal da história os nossos netos não recorram à já célebre resposta: “não me lembro, Meritíssimo.”
Há também a ideia ingénua que o mundo vai mudar radicalmente depois desta pandemia. Algumas coisas vão mudar. E vão mudar para melhor. Mas não sou optimista em relação a transformações de fundo. Aquilo que insistimos em chamar o “novo normal” será, em grande parte, a continuação do “velho anormal”.
Eis algumas tendências que estamos já a ver que se vão manter em todo o mundo:
- Vai-se continuar a desvalorizar a importância da prevenção nas estratégias de saúde a nível nacional e internacional.
- Vai-se manter o domínio de um modelo económico que colocou o Mercado no trono e secundariza o papel do Estado.
- Vai permanecer inalterada a tendência de privilegiar a medicina privada, mantendo fragilizado o sector público que será incapaz de sustentar um justo e eficaz Sistema Nacional de Saúde.
- vai-se manter a marginalização da Organização Mundial de Saúde e das instituições internacionais que podiam assegurar um comando central para as próximas pandemias (num mundo que se proclamava globalizado e no qual se esperava uma intervenção unitária o que aconteceu foi que cada região assumiu as suas próprias normas, os seus calendários).
- vai-se manter uma chocante falta de solidariedade humana e os países ricos continuarão a virar as costas aos apelos para partilharem recursos com os mais pobres (é revelador o facto do único país que enviou ajuda para Moçambique em temos de recursos humanos ter sido curiosamente um país pobre, chamado Cuba).
- vai-se manter uma agenda da investigação científica baseada em interesses de lucro das grandes companhias farmacêuticas.
- vamos continuar a fazer de conta que muitas das nossas escolas não deveriam ter que ser fechadas durante a pandemia porque, em rigor, nunca antes deveriam ter sido abertas. Essas escolas não reúnem as mais básicas condições de higiene. E o mesmo se pode dizer para grande parte dos transportes públicos, dos mercados, dos ginásios, das instituições públicas.
- vai-se manter a ideia de que a saúde diz respeito aos médicos, hospitais e Ministérios da Saúde. Vamos esquecer que a prestação de cuidados de saúde é uma tarefa de toda a governação, uma tarefa de toda a economia e toda a sociedade.
Em suma, nós sabemos quais as lições a recolher. Mas não somos donos das respostas. Assim que surgir a próxima epidemia iremos reagir como se fosse algo inesperado. A COVID poderá ser daqui a umas dezenas de anos uma lembrança vaga, tão vaga como é agora a recordação da Gripe Espanhola. Recordo-me de uma carta que, há um ano e meio, uma centena de intelectuais e artistas africanos dirigiu aos dirigentes políticos do continente.
Essa carta sugeria que se deixasse de olhar África como uma eterna vítima, um continente cuja sobrevivência dependerá sempre da compaixão dos outros. E apelavam para que houvesse uma forma mais criativa de desenharmos os nossos próprios sistema de saúde. Os intelectuais e artistas africanos apelavam para que se introduzissem rupturas radicais nas formas de governação dos nossos países.
E que os africanos deixassem de medir o progresso dos nossos países por indicadores que são ditados pelos chamados “países doadores” como é o caso das taxas de crescimento económico. E que apostassem fortemente em políticas públicas de educação e de saúde que não servissem apenas uma pequena minoria que está mais ocupada no roubo dos bens do Estado do que na promoção de um futuro melhor. Daqui a uns anos a grande pergunta não será se continuaremos a usar máscara e iremos precisar de novas vacinas. A grande pergunta será se teremos escolas com água e casas de banho, se teremos melhores hospitais, melhores transportes públicos e uma vida melhor para a grande maioria do nosso povo.
Chego ao final desta intervenção e preciso de ser verdadeiro com o sentimento que aqui me trouxe e que não é derrotado nem pessimista. Tenho não apenas a esperança, mas a certeza que irão ocorrer mudanças positivas. O que quero dizer é que não vai ser apenas por causa do fim da epidemia que iremos mudar. Serão precisas outras mudanças de fundo, outras vontades, outras formas de governar. A questão é uma outra, bem mais urgente e mais profunda. A questão é que iremos mudar porque não temos escolha. Ou mudamos todos ou não haverá futuro para ninguém. Neste sentido, o futuro é parecido com a vacina. Ou há futuro para todos ou seremos todos vencidos pelo passado.
*Intervenção nas Jornadas Científicas do Instituto Nacional de Saúde – 08.09.21.