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sexta-feira, 06 setembro 2019 13:23

Pedidos de demissão

Cresci com a mensagem de que pedir demissão é um acto fora dos costumes africanos. Entre portas, amiúde oiço que a figura de pedido de demissão embarcou com os portugueses quando estes partiram em massa no contexto do processo de independência de Moçambique. Talvez por aqui a explicação da razão do alarido social e do destaque noticioso das vezes em que um pedido de demissão é feito por um compatriota. Foi assim com o recente pedido de Rosário Fernandes do cargo de presidente do Instituo Nacional de Estatísticas (INE). E deste pedido não vou falar, mas de outros (três) que conheço. Confesso que tenho dificuldades de encontrar cinco exemplos. Apenas encontro quatro pedidos: os três que abaixo partilho e o do Rosário Fernandes.

 

Um meu chefe de turma foi o protagonista do primeiro pedido de demissão que acompanhei na vida. Corria a segunda metade dos anos oitenta e em tempos de partido único. O segundo foi nos anos noventa e em tempos de democracia multipartidária. O pedido foi de Brazão Mazula que pedira demissão do cargo de reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). O terceiro foi em 2018. Desta vez por uma protagonista de palmo e meio e das funções de chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe. 

 

O primeiro pedido: em plena reunião de turma (7ªclasse), uma quarta-feira, o chefe de turma pediu a palavra no início da reunião. Se não me engano foi um ponto de ordem. O director de turma, um dos professores, consentiu e perante a sua estupefacção ouviu um categórico “Peço demissão, Senhor Director!”. Em seguida o chefe de turma fundamentou a sua decisão na usurpação de competências, sobretudo as adstritas ao controle do lanche que era fornecido pela cantina. Acontecia que os colegas mais velhos, na maioria bi-repetentes, utilizando artimanhas e ameaças, desviavam o lanche e faziam a respectiva distribuição baseada em critérios femininos (gratuitamente) e desportivos (preço bonificado). 

 

O segundo pedido: no contexto de uma greve de estudantes bolseiros da UEM, o reitor Brazão Mazula sacudiu a pressão pondo o seu cargo à disposição. Salvo melhor informação, o então presidente moçambicano (Joaquim Chissano) não anuiu. De todas as maneiras, creio que este foi o primeiro pedido de demissão depois da independência. Se não, no mínimo, acredito que tenha sido o primeiro na era multipartidária. Sublinho que me refiro aos pedidos de demissão de cargos públicos e que tenham sido veiculados pela imprensa. 

 

O terceiro pedido: conforme dito foi o de uma menina de palmo e meio e aluna da 4ª classe. Na habitual reunião semestral de pais e encarregados de educação o director de turma partilhou o pedido e explicou que a demissionária deixou o cargo de chefe-adjunta, alegando que o cargo não tinha nenhuma utilidade. Em defesa da sua decisão a petiz apontou que o colega e chefe de turma concentrava, abusava e tinha funções em excesso, não delegava nenhuma das funções, não faltava, não atrasava e nem adoecia. Foi o máximo. Da reunião ficaram lições e sinais de esperança e vitalidade para a democracia moçambicana.  

 

Por coincidência o primeiro pedido de demissão foi no ano anterior (1987) à vinda do Papa João Paulo II (1988) ao país e o terceiro pedido no ano anterior (2018) à vinda do Papa Francisco (2019). Depois da visita de João Paulo II foi necessário passar oito anos para presenciar um outro pedido de demissão (o segundo). Espero e havendo circunstâncias – no mínimo as que ditaram as três demissões e a do Rosário Fernandes (a quarta) - que eu não tenha que aguardar outros oito anos para ouvir o próximo pedido de demissão. E assim não será por obra de Rosário Fernandes que tratou de contrariar os dados, apresentando a sua demissão no mesmo ano da visita do Papa Francisco. O próximo?

 

PS. Perante circunstâncias que suscitem um pedido de demissão e tal não aconteça a comissão de ética devia agir. No mínimo o visado que fosse notificado sobre as lesões causadas à saúde pública e na própria dignidade do visado, seus colegas, família e amigos por tamanha e vergonhosa falta de atitude e brio profissional. Que o visado não espere pela acção da comissão de ética e nem que lhe seja recordado o nobre exemplo da menina de palmo e meio, chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe, em circunstâncias análogas, incluindo as de outros pedidos. Não faltam exemplos para o quinto pedido de demissão. Por enquanto: Atenção a chamada!

quinta-feira, 05 setembro 2019 06:42

Padre Santíssimo, rogai pelos nossos gatunos!

De certeza que na oração do Papa não vão faltar palavras especiais aos jovens, aos pais, aos enfermos, aos insurgentes, aos presos,  aos eleitores, aos políticos, aos ladrões, aos Dercios, aos Nhongos, às marandzas, etecetera. Só não sei se nesta santa súplica haverá algum trecho dirigido aos nossos gatunos, assim de forma específica.

 

Sabemos que o Santo Padre já ouviu falar do nosso tabuleiro de gatunos. E quem nunca! Já ouviu histórias da sua coragem, da sua heroicidade, da sua abnegação, da sua astúcia, do seu atrevimento, do seu patriotismo. Também deve saber como nos custou ter e organizar esse grupo até ter as qualidades que tem. Deve igualmente saber do amor que nutrimos por eles.

 

Mas também o Sumo Pontífice deve ter-se apercebido do plano maquiavélico do Ocidente e seus lacaios de quererem destruir esta relíquia. Deve ter-se apercebido que a ideia de dispersar este grupo é movida puramente pela inveja. Deve ter-se apercebido da intenção de intimidar esses nossos artistas.

 

Só para ter uma ideia, hoje por hoje os gatunos dizem que não se conhecem e nunca ouviram falar um do outro. A turma está a ficar cada vez mais baralhada. Já não há aquela confiança de outrora. Foi assim com Jesus. Há Judas. Veja que até data hoje não conseguem ter um chefe. A pessoa que pensávamos que seria preferiu seguir a carreira de "cotchi" de exaltação patriótica. Está tudo desorganizado. Tudo de qualquer maneira.

 

Então, Santo Padre, o nosso receio é que um dia já não tenhamos mais os nossos gatunos de estimação. Já ninguém quer ser gatuno. Temos medo que não tenhamos mais a quem nos inspirar amanhã. Temos medo que as futuras gerações percam o foco e a nossa cultura desapareça. Temos medo que no futuro não tenhamos mais "bons governantes". Temos medo que o "nhangumelismo" acabe.

 

Santo Padre, rogai pelos nossos gatunos! Santificai esta equipa para que a sua obra seja louvada para todo o sempre! Beatificai este tabuleiro para que o seu génio viva na eternidade! Glorificai o roubo!

 

Padre Santíssimo, esta é a nossa rogação. A súplica de um povo martirizado pelo pavor de um dia perder os seus gatunos de estimação e a sua honra. Um povo que ora sentado no ananás.

 

Pai Santíssimo, interceda pelos nossos Barrabás junto de Deus Todo Poderoso! E tenha uma boa visita! Amém!

 

- Co'licença! 

terça-feira, 03 setembro 2019 12:06

Sou uma mulher para sempre

No dia em que tudo isto aconteceu voltávamos de Tete, eu e o meu pai, depois de umas férias agradáveis passadas em Tsangano, alí no limite com o Malawi. A princípio a ideia era esventrarmos a terra de Khamuzu Banda, para depois reentrarmos em Moçambique por via da província da Zambézia, onde nos esperavam arrebantantes paisagens da natureza. Mas o plano mudou quando nos disseram que no Malawi chovia torrencialmente há dois dias. Pegamos no mesmo caminho que nos levara até ao lugar das imensas pradarias e colinas, e fruta fresca e comida de não acabar. Agora de regresso à Maputo, onde eu nasci, contrariamente ao meu pai que é nyandja dali.

 

Para além de viajarmos num carro confortável, um BT-50 dupla cabine em boas condições, a maior sensação de segurança que me vai dentro, vem do facto de o meu pai ser um condutor responsável. Ele respeita a estrada e os seus sinais, mas sobretudo respeita-me a mim, por isso evita criar condições em que eu possa ser assustada por qualquer manobra imprudente. Não que ele ande a quarenta ou sessenta. Não! Mas também nunca passa dos 120, pelo menos quando está comigo.

 

Saímos de Tsangano muito cedo. Podiamos ter saído mais cedo ainda, mas era necessário esperar que o nevoeiro desvanecesse para termos visibilidade plena. E quando chegamos a Tete, meu pai propôs que fizessemos uma curta paragem para um café. Fomos ao Almadia, ali na margem sul do rio Zambeze de onde, enquanto degustavamos do pequeno almoço, aproveitavamos a ocasião para contemplar a ponte que é um especáculo vista daqui.

 

Meu pai bebeu uma grande chávena de café e uma sandes de queijo, e eu imitei-o, embora ele sempre me diga, cuidado com o café!

 

Retomamos a estrada por volta das nove, despedindo-nos de Tete, uma cidade agreste cercada de montanhas de pedra. Vi Kalowera do lado direito, já à saída, com o bairro  Kanongola do lado esquerdo, e entreguei-me, absorta, àquela paisagem que deixava para trás. Foi nesse momento de pensamentos que meu meu pai, sem olhar para mim, disse-me assim, aperta o cinto, meu passarinho. Ele gosta de me tratar assim. Sou o passarinho dele. Uma menina amada.

 

À entrada de Katandiga, minha mãe ligou de Londres onde estava a fazer o doutoramento em Antropologia. Ligou para o celular do meu pai, e o meu pai deu-me sinal com a cabeça para que eu atendesse. Peguei no telefone mas não falei sequer uma palavra. Um monstruoso camião, que vinha em sentido contrário ao nosso, perdeu repentinamente a direcção e veio para a nossa faixa. Meu pai ainda tentou fazer um milagre para fugir do mastondonte enquanto eu gritava chamando pela minha mãe: mãeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!! O nosso carro foi a tempo de evitar o choque frontal, mas capotou logo a seguir, e depois disto não me lembro de mais nada.

 

Despertei no Hospital quinze dias depois numa cama ortopédica, e o meu pai estava ali, agora com a minha mãe que teve de abandonar os estudos por conta do que nos aconteceu, a mim e ao meu pai. Que não sofreu no acidente. Os dois estavam ali, olhando-me com comiseração e perguntei, o que é que está acontecer, mãe? Eles debruçaram-se sobre mim, chorando e molhando meu corpo com as lágrimas. E eu percebi rapidamente tudo. Não foram necessárias muitas palavras.  Estava paraplégica. Para sempre. Mas continuo a ser uma mulher. Que ainda vai voar, mesmo sem poder mexer as patas. Escangalhadas. Para sempre.

Há dias acompanhei - num dos canais de televisão da praça - uma reportagem sobre o elevado custo (160.00Mts) da portagem da ponte “Maputo - KaTembe”. O mote foi uma petição de residentes da Katembe, sobretudo de potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. A reclamação-mor era a redução do valor da portagem para um nível comportável e semelhante ao valor (35.00Mts) da portagem da Matola. Outra reclamação recaia sobre os riscos da alternativa usada: estacionar os carros (sem nenhuma segurança) nas proximidades da portagem e viajar de transporte público/chapa (excesso tempo de espera e condições de viagem). 

 

Por onde alinho? Pela manutenção ou redução do valor praticado na portagem da ponte? Em benefício de mudanças na mobilidade (redução de congestionamento) e na saúde pública (redução da poluição do ar e sonora) alinho do lado que não estimule o uso de carros particulares. Dito de outro modo: alinho por políticas/medidas que restrinjam a circulação de carros particulares na cidade. E para o caso o valor da portagem funciona como meio de restrição.  

 

Também alinho por tais políticas/medidas por uma questão de justiça/democracia: os carros particulares ocupam a maior parte do espaço público (circulação e estacionamento) e transportam menos pessoas em detrimento de outros modos (transporte colectivo, pedonal e bicicleta) que ocupam menos espaço urbano e são responsáveis pela maioria das deslocações dos cidadãos. Logo: reduzir a circulação de carros particulares (reclama a minoria) melhora a mobilidade dos restantes modos de transporte (aplaude a maioria) e ainda melhora a saúde pública (beneficia a todos).    

 

Neste contexto e nas actuais (péssimas) condições de mobilidade em Maputo o foco da solução é óbvio: transporte colectivo, pedonal e de bicicleta. E uma aposta na qualidade e articulação/integração destes modos devia ser a base do conteúdo de campanhas de advocacia e da própria resposta do estado, autarquias e do sector privado. Felizmente e na área metropolitana de Maputo já existem sinais encorajadores nesse sentido (Agência Metropolitana de Transportes de Maputo e o projecto Metrobus do Grupo Sir Motors). 

 

No mesmo sentido - para o caso em apreço da petição em marcha - a melhoria das condições da alternativa usada para a travessia da “Ponte Maputo – KaTembe” - estacionar o carro e apanhar o transporte colectivo - devia ser o foco da petição dos potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. O que vale atravessar a ponte no seu (confortável) veículo - mesmo que seja grátis - e ficar parado/engarrafado nos acessos da mesma?

 

PS (i). Trouxe à mesa este assunto como contributo e antevisão do debate no quadro da campanha eleitoral que se avizinha. A mobilidade urbana será de certeza um dos temas de destaque. O que os partidos esperam fazer nesta área? Como fazer? Os custos e fontes de financiamento? Não faço ideia. E por esta razão: antes de confiar (o voto) confira (o manifesto). O provérbio “confie, mas confira” é russo e foi mundialmente cunhado por Ronald Reagan, 40º presidente norte-americano (mandato 1981-1989). Assim devia ter sido no processo de concepção e construção da ponte “Maputo-Katembe”. O presente pode estar envenenado.

A nossa amizade é inabalável. Conquistamos – eu e ele – ao longo do percurso de mais de meio século que dura a nossa relação, a liberdade de nos dirigirmos um ao outro sem reservas, com honestidade. Foi nessa condição que, cansado de ver o meu amigo caminhando impotente para o pricipício, já no fim da linha, balançando ao titmo de uma carcaça inútil, falei-lhe aquilo que penso, sem filtar as palavras. Eu disse-lhe assim, meu irmão, estás um trapo de merda.

 

Pior do que tumefacto, o rosto daquele que em tempos parecia O.J.Sinpson correndo com a bola ao encontro da luz, está lívido. Arrepia olhar para ele, sobretudo nas manhãs, antes de começar a cavalgada que o vai transformar em esterco. Treme de cima a baixo e não consegue suster o olhar em seja o que for. Os lábios estão gretados, numa boca que esconde o bolor repugnante que se aloja por sobre as gengivas, onde estão embutidas duas filas de dentes completamete queimados pelo tabaco.

 

A mulher, embora continue ao seu lado suportando um cadáver que pode ser enterrado daqui a pouco sem glória, não pode fazer mais nada senão preparar as lautosas refeições que mesmo assim Chico não come, e lavar a roupa para disfarçar o corpo de um homem que é diariamente enxovalhado pelo álcool. Chico não tem peladar. O único sabor que conhece e do álcool e do fumo. Chico é a antítese de pessoa. Aliás eu disse-lhe isso várias vezes para ver se as minhas palavras serviriam para alguma coisa. Nada!

 

Ainda nem o sol ganhou plenitude e o meu amigo já está na segunda dessas “garrafinhas” que têm levado muitos jovens a esquizofrenia. Se calhar o meu amigo também está aí. Ele padece. Vê-se nos olhos esbugalhados, constantemente feridos pelo fumo que espantosamente ainda não lhe provocou a  catarata. Mas o sofrimento do Chico, agora que já está em “órbita”, é disfarçado pelo vozeirão à Barry White, cantando canções dos americanos, tipo Memphis Slim. Canta e conta histórias inacreditáveis. Desconhecidas. Levita como os cosmonautas. E provavelmente  isso é que lhe vai ajudar a descer o desfiladeiro.

 

Cada vez que falo com o meu amigo no sentido de ele vir para este lado, o meu amigo ri-se de mim às gargalhadas, abrindo desmesuradamente a bocarra repugnante. Voltei a dizer-lhe que era um trapo de merda e ele, serenamente, disse-me que eu não sabia o que estava a dizer. Pode ser verdade. Mas gosto dele, isso é que importa, e já percebi que também eu, como a sua delicada e dedicada esposa, não posso fazer nada, senão assistir à marcha de um homem que vai a execução sem capuz. Aliás vai encapuzado pelo álcool que lhe dá prazer nesta caminhada fatídica.

A violência militar que tem causado a morte de camponeses inocentes, por vezes através de decapitações, acompanhada de incêndios a aldeias inteiras, é uma manifestação extrema de conflitualidade humana na Província de Cabo Delgado. Contudo, ela não é a única, havendo outras, múltiplas e mais antigas. E são múltiplas as causas da violência nesta província, que, sendo riquíssima em recursos naturais, é das mais pobres do país!

 

Desde o dia 4 de Outubro de 2017 (ironicamente, o Dia da Paz, evocando a data em que, em 1992, foi assinado, em Roma, o Acordo Geral de Paz, pondo termo a 16 anos de uma guerra atroz, opondo o governo à Renamo!) que Cabo Delgado tem sido palco de ataques perpetrados por “desconhecidos”, tem havido debates aqui e acolá, incluindo em sede de estudos ou instituições académicas, dentro e fora do país.

 

 

Contudo, persiste uma percepção geral de que, do lado do governo, tem sido dada preferência a uma estratégia de silêncio, em contraste com a natureza particularmente cruel dos perpetradores destas operações, nunca vista nem ao longo dos 16 anos da guerra (temporariamente) terminada em 1992.

 

Se pode ser atendível um argumento oficial fundado na necessidade de evitar criar pânico aos grandes investidores que demandam a província – do gás ao rubi, passando pelo grafite até ao mármore - não será menos atendível o clamor dos cidadãos por um maior esclarecimento sobre o que se passa, suas causas e, quiçá, alguma luz sobre que soluções as autoridades estão a considerar – para além da via militar!

 

Mas a conflitualidade em Cabo Delgado, podendo ser mais mediática na vertente das incursões dos chamados “malfeitores” – pela sua não comprovada associação ao extremismo islâmico e pelo seu potencial de perturbar grandes investimentos estrangeiros – ela alarga-se a outros focos, como em torno da extracção de outros recursos naturais, minerais, florestais ou de outra natureza.

 

Imbuído desta preocupação, um grupo de organizações da sociedade civil moçambicanas, incluindo algumas baseadas na fé, estiveram reunidas nos dias 23 e 24 de Agosto na cidade de Pemba. O seminário teve como título: “Conflitualidade Humana na Exploração de Recursos Naturais na Província de Cabo Delgado: Reflexões e Perspectivas. A Comissão Episcopal de Paz e Justiça, entidade da Igreja Católica, coordenou e acolheu evento, nas instalações da Universidade Católica de Pemba.

 

O principal foco do seminário era: afinal o que tem estado a atrair tanto conflito em Cabo Delgado? A resposta, demasiado tentadora, de que é a abundância de recursos naturais, pode ser muito simplista e, por isso, inidónea para justificar a prolongada instabilidade. Importa, por isso, conferir aos ângulos de análise aberta ainda maior, fora de janelas políticas amarradas a interesses de controlo político. E, na medida das circunstâncias, foi essa a perspectiva analítica adoptada para este seminário.

 

Quem chama as balas?

 

Em 1983, o autor britânico Joseph Hanlon, um dos mais reconhecidos estudiosos de processos políticos em Moçambique, publicou um livro com o título: “Mozambique – Who calls the shots?” Numa tradução livre, este título significaria: “Moçambique – quem comanda os tiros?”. Mas o sentido de “de onde vem a guerra?”. Poder-se-á resumir nesta breve pergunta o foco do seminário de Pemba.

 

 

E então quais foram as respostas sugeridas? As propostas de resposta vieram de diferentes perspectivas de análise e pontos de partida: perspectiva histórico-política; antropossociológica; socioeconómica e – aceite-se! – ecléctica!

 

Entre as figuras e instituições que se colocaram à frente, com suas reflexões e perspectivas, poderia, a título exemplificativo, mencionar: Yussuf Adam (Universidade Eduardo Mondlane); Dom Luiz Fernando Lisboa, Bispo da Diocese de Cabo Delgado; Paolo Israel (Universidade de Western Cape); João Mosca (Observatório do Meio Rural); Zenaida Machado (Human Rights Watch; Inocência Maposse (CIP).

 

Estes e outros actores estimularam debates livres e descomplexados, a partir de temas como: bases históricas da emergência do extremismo violento no Norte de Moçambique; soberania espiritual, etnicidade e violência política: as raízes históricas da presente crise em Cabo Delgado; pobreza, desigualdade e conflitos no Norte de Cabo Delgado; e Direitos Humanos nas operações de contra-terrorismo em Cabo Delgado, e Indústria Extractiva – como ela afecta a cultura e os camponeses, entre outros temas de igual ou superior relevância.

 

As fontes da conflitualidade

 

Quase todos os primeiros oradores – que determinaram o mote dos debates subsequentes - foram unânimes num ponto de início: não há um único factor que possa explicar o clima de conflitualidade em Cabo Delgado: existe uma combinação de múltiplos factores que se foram formando, durante longos períodos históricos, como: florescimento de cadeias de crime organizado milionário, nos corredores de droga; de corte e tráfico de madeira; de extracção e contrabando de recursos minerais de grande procura internacional, tudo ocorrendo aos “olhos” de comunidades extremamente pobres e violentadas!

 

Ou seja: no terreno de Cabo Delgado foi acumulado capim seco, disponibilizado petróleo e inúmeras caixas de fósforo, e tudo deixado ao ar livre, à disponibilidade de diferentes interesses ciosos de poder!

 

Yussuf Adam, historiador moçambicano que tem Cabo Delgado como seu campo de estudo há mais de 35 anos, fala de um povo cansado de ser movimentado de um lado para o outro, desde o tempo do colonialismo português até aos dias de hoje.

 

“No regime colonial, as comunidades de Cabo Delgado foram retiradas das suas terras e aglomeradas em aldeamentos, para ficarem longe do alcance da guerrilha da FRELIMO. Entretanto, quando esta tomou o poder e estabeleceu o sistema de socialização do campo, as mesmas comunidades foram levadas para Aldeias Comunais. Agora, no regime capitalista, estão a ser, de novo, retiradas das suas terras e aglomeradas em Aldeias de Reassentamento. Num período de 30 anos, as populações de Cabo Delgado foram à força colocadas em aldeamentos, destas para aldeias comunais e, agora, para aldeias de reassentamento! E sem consideração à sua dignidade – é muita violência!

 

Mas as reflexões académicas mais conhecidas não têm descurado outras prováveis fontes de conflitualidade, também históricas, em que se incluem velhas hostilidades entre Macondes e Muanes; entre o interior e o litoral; ou entre muçulmanos e cristãos.

 

Por seu lado, Paolo Israel, professor de antropologia na Universidade de Pretória, referiu-se a episódios mais ou menos recentes, indiciadores de um relacionamento de conflito e hostilidade entre cidadãos e o Estado, em diferentes distritos da província. Lembrou estórias como a dos leões mágicos de Muidumbe, que terão devorado 46 pessoas e ferido outras três.

 

A comunidade local, que considerou tratar-se de feiticeiros que se transformavam em animais, ficou furiosa e linchou 18 compatriotas. O fundamental a reter aqui é que os principais acusados de comandar os leões à distância eram figuras do Estado ou a ele associadas ou com “bem-estar” acima da média local (o comerciante). Ou seja, em situação de crise sem saída à vista, os pobres lançaram aos ricos e ao Estado a culpa do seu mal-estar e das suas privações.

 

E os distúrbios que, em Novembro de 2000, culminaram com a morte de mais de uma centena de indivíduos, asfixiados no interior das celas da cadeia distrital de Montepuez, considerados como membros ou simpatizantes da Renamo? Como tais episódios se insinuam no imaginário de quem os viveu de perto, quando pensa no Estado?

 

Mais recentemente ainda, o desmantelamento de fortes redes internacionais associadas à exploração e tráfico internacional das célebres pedras rubis de Namanhumbir, no distrito de Montepuez, e de corte e tráfico de madeira, “perturbado” por acções soberanas, como a chamada operação tronco…

 

Caos no extractivismo

 

Em paralelo, os constantes anúncios de investimentos de larga escala em projectos extractivos, quantas vezes feitos de forma exuberante e descontextualizada, têm levantado expectativas sociais exacerbadas, em contextos de pobreza extrema. A não materialização destas expectativas, ao ritmo imposto pela pobreza, torna as comunidades vulneráveis a discursos anti Estado, nomeadamente entre jovens desnorteados e sem expectativa de futuro.

 

Com efeito, é em torno dos empreendimentos da indústria extractiva que, na percepção dos participantes do seminário, devem ser encontradas as principais causas da conflitualidade humana em Cabo Delgado:

 

 

“Os processos de reassentamento têm sido caóticos, onde o Estado aparece em aliança com o grande capital, agravando situações de pobreza das populações”, afirma a dado passo, o documento final do evento, denominado “Declaração de Pemba”.

 

Na abordagem da complexa relação entre a opção de resposta militar à insurgência, versus respeito pelos compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado moçambicano, a jornalista moçambicana Zenaida Machado, falando na qualidade de pesquisadora da Human Rights Watch, uma organização de defesa de direitos humanos, diria:

 

“Ao procurar responder à insurgência por via militar, as Forças de Defesa e Segurança têm levado à cadeia centenas de jovens inocentes que, uma vez enclausurados, acabam expostos a verdadeiros extremistas. E uma vez mandados em liberdade, porque absolvidos pelo tribunal, muitos deles desaparecem sem deixar rasto: para onde vão? “

 

Na sua declaração final, as OSC participantes apelam ao governo no sentido de:

 

Eliminar os obstáculos de acesso à informação a jornalistas, investigadores e cidadãos em geral aos locais de conflitos;

 

Fazer uma revisão da estratégia de actuação militar, capacitando os militares em matérias de direitos humanos, apostando em amnistias e em incentivos de reclusão social”.

 

Este terá sido o primeiro evento em que organizações da sociedade civil moçambicana, incluindo de áreas de pesquisa, abordam de uma forma colectiva e aberta o clima de violência em Cabo Delgado e produzem recomendações ao governo, apelando para maior acesso do público sobre a crise de segurança que assola a região desde Outubro de 2017.