“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”
Nely Nyaka (in “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”)
Amadou Hampâté Bâ disse um dia uma daquelas máximas que nos perseguem sempre que há óbitos que devem constar no livro de assentos da nossa memória colectiva: “Quando um ancião morre, é uma biblioteca que queima”. Quis a fortuna que hoje, 6 de Abril de 2024, a Vovó Nely registasse o seu epílogo aos 103 anos. Em 2018, Nely Nyaka, no entanto, desmentiu o fatalismo que encerra o anátema do historiador maliano e legou-nos uma obra decisiva e exemplar: “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”). Nela está o testemunho e testamento da sua soberba vida e obra.
A Vovó Nely foi toda a vida uma activista social. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.
No seu livro “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade” está inscrita a sua longa experiência de vida. O livro é um testamento. Um manancial de valores. Nesta obra ela cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade, a começar pelos seus pais, Jinita e Jeremia, na KaTembe, passando pela então Lourenço Marques (KaMpfumo), fala-nos da vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), da casa e os rituais (o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento).
A Moamba e a vida adulta lá nas terras do Sabié. Casara aos 19 anos com Raúl Bernardo Honwana. Raúl, que militou no Grémio Africano nos tempos de Karel Pott, escreveu, em 1984, um livro de memórias. Inspirada pelo exemplo do seu marido, que faleceu em 1994, Nely decidiu também deixar por escrito o seu legado. Nele fala do nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.
O livro relata-nos os alvores da Independência, do 7 de Setembro, o Governo de Transição, fala-nos do entusiasmo e da euforia desses tempos, de Samora Machel, dos erros e dos excessos da revolução, como a nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos. Nessas lengalengas, preferidas pelos netos e bisnetos, cada frase contém uma pergunta (“U ma?” – Quem és tu?), e uma resposta (“Ni Nwamatxola-Txolana” – Sou o Nwamatxola-Txolana”) e o jogo prossegue entre perguntas e respostas do mesmo género.
Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. A sua maior obra é o exemplo e o repositório desses valores que nos deixa como dádiva. Esse foi o grande dom da sua vida. O seu génio. O seu grande mérito. Uma vida árdua, laboriosa, dura. Mas ela, sempre obstinada. Perseverante, tenaz.
Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.
Aqui está o espólio de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona, neste livro, sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar. O seu acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação” – uma expressão felicíssima.
O extraordinário livro de contos “Nós Matámos o Cão Tinhoso” (1964), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis “Memórias” (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra “O Algodão e o Ouro” (1995), cruzam-se com este “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade” (de Nely Nyaka), e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum: uma mesma ética. O supremo valor da ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética. Aliás, num intrépido discurso que fez aquando do lançamento da sua obra, em 2018, a Vovó Nely foi cortante quanto às anomias sociais e aos desvios éticos que abundam e minam a nossa sociedade. Um discurso memorável e exemplar.
Vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência de valores em que nos atolamos. Ao ouvi-la, com a autoridade da sua idade, rodeada de filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores, pronunciar-se sobre a sua vida e experiência e sagacidade, foi um momento profundo, uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.
A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
...os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.
Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.
Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.
Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.
No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.
Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.
E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.
Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.
Quero orar pela nossa terra.
A nossa terra vive tempos muito atribulados.”
Volto a essas palavras hoje no dia do seu declínio. Recordo-a aqui, nesta breve memoração, como uma das mais notáveis personagens do devir moçambicano e um dos grandes vultos da nossa sociedade, história e cultura. Uma figura assombrosa, personagem forte, matriarca exemplar, inspiradora, mulher de uma lucidez implacável e dona de uma memória prodigiosamente lendária.
“Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e nesta obra está a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Talvez ela quisesse desmentir o aforismo do historiador maliano. A sua experiência não se incinera. Permanece naquelas belas e luminosas páginas. Viveu 103 anos e 115 dias! Uma vida jubilosa. Deus deu-lhe o tempo e a força que fez da sua vida uma lição. Provavelmente ainda não chegaram as suas prédicas, as palavras de consolo ou o lenitivo que nos falta quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.
Cidade do Cabo, 6 de Abril de 2024
“A Mulher Moçambicana, em termos numérico é superior ao homem, falamos de 16 milhões de Homens contra 17 milhões de Mulheres, ainda assim, na Governação, desde 2022, que se observa a paridade, dos 22 Ministros, 11 são Mulheres e 11 são Homens, já na Assembleia da Republica, dos 250 Deputados, 116 são Mulheres, a Frelimo contribui com 90, a Renamo com 16 e o MDM COM ZERO, o que é de lamentar. Com estes dados, pode-se afirmar que, a Mulher Moçambicana tem estado a subir de fasquia em termos de participação politica e Governamental, outro dado interessante, é que, a nossa Assembleia da Republica já teve duas Presidentes, sendo a Senhora Verónica Macamo e a Senhora Esperança Bias, em funções, esta ultima, caso para dizer, Parabéns Mulher Moçambicana, na região Austral, Moçambique é o terceiro com mais Mulheres na Politica, sendo primeiro a Africa do Sul, segundo a Namíbia.”
AB
“A data foi instituída em homenagem a Josina Machel, heroína nacional, uma das muitas mulheres moçambicanas que lutaram pela independência do nosso país. Mas mesmo estas mulheres, antes de lutarem pela independência do nosso país, tiveram igualmente de lutar pelos direitos das mulheres, pelo direito a lutar, pelo direito a resistir à colonização, pelo direito à sua voz e à participação na política e nas decisões do futuro do nosso país!
Muitas mulheres têm conseguido vitórias importantes na luta por igualdade e dignidade, mas a luta continua até que sejamos todas livres! Livres para resistir, livres para marchar e gritar pelos nossos direitos, livres para dar opinião sem temer represálias, livres para escolher o nosso futuro”
In Justiça Ambiental de 09 de Abril de 2023
Moçambique, segundo os dados divulgados pelo INE – Instituto Nacional de Estatísticas, para 2024, a população total ee de 33.244.414, sendo que, destes, 16.098.427 são homens e 17.145.987 são mulheres, por isso, podemos dizer, sem sombra de duvidas que, as mulheres continuam em termos numéricos, mais que os homens, estes dados, não se fazem sentir na esfera politica e Governamental.
Destas populações, 34,88% estão nas zonas urbanas e 65,14 nas zonas rurais, os mesmos dados indicam que, a esperança de vida situa-se nos 56,2 anos, com uma taxa de nascimento anual de 36,6% e de mortalidade situa-se em 8,8%, o que significa quem, o País tem assinalado, um crescimento assinalável dos indicadores em referência, ou seja, esperança de vida, taxa de natalidade e taxa de mortalidade.
O caro leitor, deve estar a perguntar-se, para que essa informação toda, quando a reflexão tem a ver com a homenagem á Mulher Moçambicana, a resposta é simples, é que, toda informação estatística, aqui partilhada, afeta, sobremaneira, a Mulher Moçambicana e, muitos dados estatístico, refletem, de alguma forma, o bem-estar da Mulher na nossa sociedade, infelizmente, a Mulher, continua carregando o “fardo de pobreza” em Moçambique, estes dados, podem ser reveladores, do quanto se tem afastado desse mal.
Mulher na Politica em Moçambique
Os dados acima, partilhados, cuja fonte é o INE – Instituto Nacional de Estatística, revelam que a Mulher está em numero maior que os Homens, no entanto, por exemplo, no nosso Parlamento, dos 250 Deputados, somente, temos 116 Mulheres, mas a crise é mais grave se considerar que, destes 90 são da Frelimo, 16 da Renamo e o partido MDM não tem nenhuma Mulher no Parlamento, ou seja, não há, no seio dos partidos políticos, a consideração pela Mulher, fala-se da proporcionalidade na Frelimo, por exemplo, o que não se observa em outros partidos, atenção, não estou a dizer que a Frelimo é melhor que os outros mas, convenhamos, é na Frelimo que se luta pelo equilíbrio.
Nessa perspetiva, pode-se dizer que, a Frelimo, tendo sido sempre o partido maioritário na Assembleia da Republica, já teve duas Mulheres na Presidência da Assembleia, que são, as Senhoras, Verónica Macamo e Esperança Bias em exercício, podemos, por assim dizer que, a Frelimo, não só procura equilibrar, como, também, impondera as Mulheres mas, no se pode dizer o mesmo dentro do parlamento, existem muitas Mulheres que esto para o agrado estatístico, isso, deve ser combatido pela própria Mulher, lutar por igualdade, não somente nos números mas, nas funções e no trabalho.
A nível do Governo, dos 22 Ministros existentes, 11 são Mulheres e 11 são Homens, aqui, pode-se dizer, com alguma satisfação que, atingiu-se a paridade nos lugares de Governação, nesse sentido, cabe, as próprias Ministras, mostrarem que, não estão la para simples decoração mas, para trabalhar e mostrar resultados, de acordo com as estatísticas do mundo, Moçambique, reforça 14 países com a paridade de género na Governação, sendo que, em Africa, são 3, o que, sem dúvidas, é de louvar!
Adelino Buque
PS: Reflexão dedicada á Mulher Moçambicana, por ocasião do dia 07 de Abril, data consagrada a Mulher Moçambicana, essa Mulher virtuosa, Guerreira incansável, antes lutou para ser aceite na Luta Armada de Libertação Nacional, depois, lutou pela sua inserção na politica Governamental e, hoje, quer, a par do seu parceiro Homem, lutar pela emancipação económica, certamente, que venceras Mulher.
Nas entrelinhas das notícias da última noite, parece não restarem dúvidas de que Moçambique conhecerá, hoje, sábado, ou nas primeiras horas de amanhã, domingo, o candidato presidencial dito do partido Frelimo, mas que será, na verdade, de uma amostra representativa dos moçambicanos, e não necessariamente da associação privada denominada Frelimo.
Por conta do acima, a escolha ou eleição de candidados presidenciais pelos partidos políticos é um tema suprapartidário.
Mas por que é ou será assim?
A norma da alínea d) do n.⁰ 2 do artigo 146 da Constituição da República de Moçambique (CRM) é, de facto, clara quanto ao facto de a candidatura ser dos eleitores (um grupo destes) e não dos partidos políticos. O papel destes é, em bom rigor, de organizar os eleitores.
De contrário, bastava cada partido político interessado confirmar que tem 10 mil membros e submeter a candidatura, mas não é esse o caso. Cada cidadão deve assinar individualmente o apoio à candidatura. Logo, as candidaturas presidenciais são suportadas pelos eleitores e não necessariamente pelos partidos políticos.
Aliás, é exactamente por isso que o nosso regime admite candaturas sem partido, as ditas candidaturas independentes, que já as tivemos. Até porque não seria exagerado arguir que todo o candidato a Presidente da República (PR), ainda que apoiado por um ou outro partido político, deveria ser tido como formalmente independente dos partidos políticos.
Numa perspectiva progressista, até faria sentido que o processo da escolha dos candidatos a PR fosse em eleições primárias abertas a não membros…
(Ericino de Salema)
Até bem pouco tempo o sonho de um sobrinho de um amigo era o de ganhar um "Oscar de Hollywood", a estatueta de premiação da catedral do cinema mundial que se outorga anualmente aos melhores profissionais da sétima arte.
O tio, um amigo de longa data, contou-me, no final da tarde de ontem, a novidade do novo sonho do seu sobrinho: ganhar o "Oscar da Matola". O que seria o "Oscar da Matola"? Fora o que me ocorrera a partida.
Do sobrinho, fora a sua paixão pelo futebol, conhecia o velho sonho de conquistar um prémio Oscar e de que até já estava de malas aviadas para iniciar, no estrangeiro, um curso superior de cinema.
"Depois procuro saber dele". Assim decidi e alivei a mente para outros afazeres do dia. Debalde. Na hora dos jornais televisivos acompanho as incidências da reunião da associação dos combatentes da luta de libertação nacional, sobretudo a intervenção cirúrgica de um seu membro sénior com nome similar ao da estatueta de Hollywood.
Após do que assistira nos jornais televisivos, fiquei mais aliviado em relação ao novo sonho do sobrinho do meu amigo. Na verdade não seria um novo sonho, mas apenas uma nova categoria no rol das premiações de Hollywood e de que o termo "Matola" seria uma espécie de homenagem ao local de incidência periódica e recorrente de eventos objecto da premiação.
De toda maneira, e porque apenas conjecturava sobre o significado do novo sonho do "cineasta", o nome que carinhosamente é tratado o sobrinho, esta manhã, e do próprio, fiquei a saber do seu suposto novo sonho.
E assim fica o leitor também a saber de que o "Oscar da Matola" (ODM) é uma espécie de VAR (Vídeo Árbitro) da política com a diferença de que o VAR do futebol procura fazer as correções durante o jogo e o ODM do cinema premeia o melhor filme cujo enredo debruce sobre intervenções políticas de grande alcance antes do início de qualquer jogo político.
Em suma, o "Oscar da Matola" inspira a consolidação do processo democrático no mundo, em particular nos países em que a democracia esteja em jogo. Não é por acaso, e segundo o "cineasta", que na estatueta deste Oscar estará inscrito: "De todos se faz um País".
Primeiro não passava de uma hipérbole: “Chuva de Afetos”, para designar o espetáculo que se queria único, íntimo, simbólico e solidário. Stewart Sukuma celebrava 40 anos de carreira, dentro de um movimento iniciado em 2022 numa série de digressões e iniciativas sobre meio ambiente, cidadania, igualdade de género e direitos humanos. Depois, no terreno, Galeria do Porto de Maputo, no dia 30 de março, veio a apoteose, indubitável, com a chuva e os afetos reais a vincarem o exagero. A energia extasiou a plateia que mesmo ameaçada pela chuva não abandonou o espaço.
Na verdade, não foi exatamente um concerto. Foi uma história de vida, uma rapsódia de canções emblemáticas que ainda ecoam no imaginário dos seus fãs. E foi isso que tornou o evento emblemático. A seleção dos artistas convidados, a união de artes, as performances, o espaço, o dia, a hora, as luzes, o som, o alinhamento das músicas… um espetáculo montado com rigor e cuidadosamente coreografado e com reações positivas.
Stewart Sukuma ganha, todavia, nesta roda artístico-musical pela sua história, pela idade, pela persistência. Conhece o seu público e, aos 40 anos de carreira, já sabe o que exatamente esperam, detestam e/ou gostam. Por isso, como “divo”, conseguiu colocar a multidão em devoto, desde o primeiro minuto do show, numa clara observância física e emocional da Terceira Lei de Newton. Foi assim na interpretação de “Tingalava”, “Olumwengo”, “Wulombe”, “Why”, “Moçambique”, “Felismina”, “Male”, “Ezamany kim’bediwa”, “Xitchuketa Marrabenta”, “Caranguejo”, “Vale a Pena Casar”, entre outros temas.
Facto é que não é a primeira vez que Stewart consegue controlar o seu público, colando-o a dançar, a cantar e/ou a interagir sempre que necessário. A sua versatilidade permite; reinventa as suas canções, envolve gerações e mistura sempre elementos novos como forma de inclusão artística. No sábado, por exemplo, a dramatização e a dança, o rapper, o gospel e o afro jazz formaram uma unidade temática que criaram uma nova atmosfera nas músicas participadas por K9, Nelton Miranda, Nandov Matsinhe, May Mbira, Sizaquel Matlhombe, Otis, Lenna Bahule, Valdemiro José, Alfa Thulana, Deotado Siquir, Xixel Langa, W Tofo, e outros.
São nomes e elementos que se destacam pela sua qualidade. Cada um tem um percurso artístico cujos anos podem ser avaliados em função dos resultados da forma como se relacionam com essa arte. Para Xixel Langa, por exemplo, aplica-se a máxima do filhinho do peixe. A sua entonação é de arrepiar e os seus passos uma intensa ousadia.
Ao Nelton e Otis à máxima do vinho, quanto mais velhos melhor. A dupla W Tofo dispensa comentários, pois, como sempre, não deixa espaços para defraudação. E é o mesmo que se diz da Banda Nkuvu, agora mais vigorante, energética e madura. E tem sido assim os últimos anos, em atuações dentro e fora do país.
Em quase quatro horas do show, as energias foram aumentando, música após música. Outros que também atuaram no sábado são os meninos do Coro dos Little Singers da Escola Portuguesa de Moçambique – Centro de Ensino e Língua Portuguesa. A presença destes alunos inseriu-se no âmbito da parceria e relação de amizade de longa data que une o artista à Escola e que se vem concretizando em inúmeras ações. A receita do espetáculo foi destinada a uma instituição de cariz solidário, a "Associação dos Bons Sinais", de Quelimane.
Voltei a passar em frente ao Gabinete do Governador de Inhambane, um edifício de fina arquitectura do tempo, cheio de lâmpadas na fachada, e notei mais uma vez que todo aquele cenário à volta, do qual já falei exaustivamente até não me cansar, continua o mesmo, sem brilho. Os dois aquários colocados no jardim defronte, projectado no sentido de oferecer à cidade uma paisagem esverdeante, e, consequentemente, trazer beleza e leveza, não têm peixe, o repucho deixou de aspergir água, e o bolor tomou conta de tudo. A estátua de Samora Machel, mal concebedida pelo arquitecto provavelmente coreano, agride violentamente o espírito dos apreciadores da arte, é uma obra deplorável, Samora não tinha pararício no dedo.
Naquele edifício trabalha o governador Daniel Chapo, pelo qual nutro uma grande simpatia. É um homem bom, mas também com o nome que tem, não tinha outra opção que não fosse praticar a honestidade e integridade. Daniel, profecta do antigo testamento, é muito atencioso e apegado a família, possui um senso maternal muito forte. É o tipo de pessoa que gosta de se sentir útil e necessário. Então, urge que o nosso “El Chapo”, como lhe chamam a brincar algumas pessoas, dê uma vista de olhos no “seu-nosso” jardim.
Passo por aqui sempre que vou à cidade, onde o silêncio tornou-se o refrão dos bitongas. E não posso voltar para casa sem chegar aos Caminhos de Ferro, cujas instalações estão em forma de escombros, não há esperança. Toda esta zona, a defunta serração que já ninguém se lembra dela nas conversas, nem do restaurante Maguluti do Dalsuco, onde conheci o Magid Mussá cantando o lado mais belo da vida, até hoje, com uma voz muito mais linda, se calhar melancólica como o canto das rolas ao final da tarde.
E é neste percurso em que sou levado pelos demónios do amor, que vejo um homem andrajoso entrado na idade, sentado no banco de madeira na Estação dos Caminhos de Ferro. Eu também sento-me ali, partilhando com um desconhecido, a memória do tempo. Há uma diferença aparente entre nós. Enquanto o ilustre desconhecido traja roupa mais do que carcomida e rota e suja e tem cabelo desgrenhado, eu visto calças e camisa de ganga e sandálias de couro, tudo limpo, sem me esquecer do boné que me proteje a calvice, mas as minhas roupas podem ser pura fantasia fantasia, o importante é saber como é que estou vestido por dentro.
Saudei hesitantemente o meu futuro companheiro de ocasião, e para o meu espanto, ele retorque: estás bem, Alexandre? Apanhei um susto como no dia em que Deus troveja numa sarsa tornada caixa vocal chamando pelo Moisés, e Moisés perguntou: que és Tu? E a voz que ressurge da sarsa, respondeu: Sou eu, o Deus de Jacob e de David e de Abrahama!
E eu também quis saber do homem que vocalizava o meu nome com carinho,“quem és tu, não me lembro de t!?“ e ele contraperguntou-me: lembras-te do Guipfodzo, teu vizinho na Fonte Azul?
Prestei mais atenção nele, mesmo assim não podia reconhecê-lo, a não ser o nome que me ribombava. Era o regresso às paródias de criança e de adolescência, ao amor e à verdadeira amizade, e tudo isso era luz.
“Não pagas uma garrafinha?” Fui com ele, o Guipfodzo, entrando pelos becos de Chalambe, onde me indicou uma gruta imunda onde se bebe thonthontho, e onde estão outros homens bebendo aguardente de jambalau e de cana-de-açúcar, sem olhar para trás.
E eu tinha uns trocados no bolso, com os quais paguei bebida a potes para o Guipfodzo e para toda a gente que estava alí. Bebi com todos eles, no mesmo copo que rodava na roda da frustração até ficar bêbado, e voltei para casa feliz, a cheirar no corpo o odor horrível do meu amigo, transmitido naquele abraço profundo de despedida.