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Existe uma história de um animal pequeno, chamado porco-espinho. Conta a lenda que num dia de frio, alguns destes porcos-espinhos juntaram-se para se aquecerem com o calor dos seus corpos. Mas, logo, viram que se espetavam e se afastaram. Ficaram com frio. Na tentativa de reaproximação, descobriram a distância adequada.

 

Assim, também, acontece na nossa sociedade. O vazio, a descrença, a pobreza, a mingua e as amarguras existenciais, aproximam as famílias e o cidadão comum. Porém, muitos de seus defeitos desagradáveis os repelem. Por outras palavras, toleramos a proximidade dos outros só quando é necessária à nossa própria sobrevivência e bem-estar, porém, de outro modo, evitamo-nos.

 

É comum a abordagem dos nexos e conexões que se estabelecem entre os diferentes grupos religiosos, pois é nesses nexos e conexões que se encontram as linhas estruturantes para o diálogo intra-religioso, elemento fundamental para uma convivência pacífica entre eles. Para Moçambique, em particular, intriga e fascina rever o processo de construção do Estado moçambicano e a interacção com os diferentes grupos religiosos. Com a implantação do Estado colonial, viu-se que, por exemplo, a igreja católica era parte integrante do processo de espacialização, territorialização do aparelho burocrático-administrativo, nos espaços assumidos como Moçambique. É certo que a igreja católica teve essa relação íntima com o Estado colonial, porém, outras confissões religiosas, os protestantes e os de confissão islâmica, em particular, foram parte integrante da construção do Estado.

 

As relações entre o Estado colonial e as duas confissões retrocitadas nunca foram pacificas, ou seja, foram de desconfiança, de conflito e de confrontações. Este tipo de relações conflituosas ou de desconfiança manteve-se durante a primeira República.  Foi, portanto, uma relação com rupturas, mas, desde os finais dos anos 1980, mormente, depois da constituição de 1990, muito esforço e empenho para entendimentos foram feitos, com o fito de aproximar as confissões religiosas, na sua diversidade, ao Estado.

 

Em boa hora, foi celebrada, a jornada Mundial da Religião, que teve o beneplácito das Nações Unidas, apelidada como dia internacional da fraternidade humana. Esta celebração serviu, para o nosso país rever os diálogos que englobam as diferentes confissões religiosas, repensar suas raízes e percursos. Foi, sobretudo, uma reflexão sobre a multiplicidade de religiões e o seu papel no processo de pacificação de um país que tarda a encontrar os caminhos da paz, da tranquilidade, da justiça social e da reconciliação.

 

Considerando a diversidade religiosa em Moçambique, subdividida entre cristianismo, islamismo e animismos, e outras formas de religiosidade, constatou-se que os distintos grupos são constituídos por pessoas de fé e, até, inegável alcance espiritual. Os discursos podem, salvaguardadas as devidas proporções, seguir  na contramão dessa religiosidade e espiritualidade sã e estruturante para o bem do nosso país. No fundo, os diferentes discursos das confissões religiosas ainda ajudam a amolecer os corações, encaminham seus rebanhos para o bem supremo, veiculam união, fraternidade e amor entre os homens.

 

Acedi, gentilmente, o desafio de debater a fraternidade humana e o diálogo religioso, no contexto moçambicano, à semelhança dos vários seminários e conferências que ocorrem, um pouco pelo país, promovidos pela academia ou pelas organizações da sociedade civil. Convocar o diálogo religioso, ou a utopia de um diálogo religioso, que englobasse mais do que a fé, mas, que tivesse subjacente a reconciliação nacional, a paz efectiva, a concórdia e harmonia social. Quer dizer, revisitar a ideia da ausência de hierarquias entre as profissões ou confissões religiosas, a inexistência, portanto, de religiões superiores ou inferiores, de convicções mais ou menos comuns e incomuns, que perpassam a vontade de aglutinar os seus fiéis.

 

Comecei, precisamente, por uma revisão conceptual sobre a misantropia, quer dizer, como se posicionariam as nossas congregações e confissões religiosas diante de tantas desilusões, planos económicos e sociais falidos ou falhados e, até, pelo crescente vilipêndio pelas liberdades civis e pela vida.  Indaguei se o diálogo religioso serviria de trampolim para libertar os crentes e fiéis das desconfianças, do sarcasmo do pessimismo e das aporias de um Moçambique que tarda a se reencontrar com o destino que deveria ser o seu, um Moçambique onde reina a concórdia, a justiça social e o progresso económico inclusivo.

 

Iniciei as minhas reflexões retomando conceitos clássicos sobre a fraternidade humana, rebuscando diferentes autores e o próprio “frater”. Concordamos que essa fraternidade era um pouco mais que irmandade, pois, abarcava aspectos relacionados com os direitos humanos, o respeito pela dignidade da pessoa humana e, sobretudo, a igualdade de direitos e deveres. Ou seja, a consagração da própria ideia de ser Homem, tanto no plano filosófico como no antropológico. 

 

Revisitamos outrossim as encíclicas do Papa Francisco, que exalta a “Fratelli Tutti”, uma ideia que ele buscou em São Francisco de Assis. A propósito, o Papa Francisco afirma que a humanidade  “cresceu em muitos aspectos, porém continuava analfabeta no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis nas sociedades desenvolvidas”. Então, essa fraternidade não se reflecte num convívio social são, muito menos no amor, na convivência ou no reencontro são e fraterno. O Papa Francisco, ao voltar ao século XII para buscar as raízes da ideia que encerra a “Fratelli Tutti”, indaga-se sobre o sentido de humanidade nas sociedades pós-modernas, onde o individualismo excessivo, a indiferença e as desigualdades sociais tornaram-se a característica fundamental dos tempos hodiernos.

 

O livro a “Origem” do romancista e escrito americano, Dan Brown, ajuda-nos a percorrer os caminhos das religiões abraâmicas, ou seja, religiões monoteístas. Concebidas por Abraão, e com tradições e identidades e princípios muito aproximadas. Elas, à semelhança das religiões asiáticas, sobretudo, a Indiana, Darma, se espalham por todo o mundo e dominaram as diferentes crenças humanas que se estabeleceram.

 

O Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo converteram-se nas religiões com o maior número de seguidores e espalharam-se globalmente. Neste século são contabilizados mais de 3.8 biliões de seguidores das três principais religiões monoteístas. Cerca de 54% da população mundial. Portanto, se 16% da população não professa uma  religião, significa que os restantes 30% professam outras religiões.

 

Extrapolando estes indicadores no contexto Moçambicano, em particular, podemos dizer que as tendências globais podem ter algumas parecenças. Moçambique é, também, monoteísta, sem descurar o animismo que mora em todos nós.

 

Numa conversa que fluiu, e na qual fomos unânimes em muitos aspectos, discordamos noutros, fomos fundo nalgumas questões fundamentais, sobretudo, na utopia, no sentido que o cultor do deste termo, Thomas More, quis dar, de um diálogo mais consentâneo, mais inclusivo e pacífico.

 

Um primeiro questionamento, cingia a obrigatoriedade de entender a comunhão do diálogo religioso, e ao surgimento de uma teologia contemporânea africana centrada, tal como nos foi proposta por Mbog Bassong no seu livro “La réligion africaine: de la cosmologie quantique à la symbologie de Dieu (2014). Como seria que os africanos poderiam criar uma fraternidade religiosa, sem deixar de ser africanos; como é que essa fraternidade, poderia ser evocada, sem deixarmos de ser moçambicanos. Estas duas interrogações integram-se nas primeiras interrogações, da primeira e segunda gerações dos que desenvolveram a teologia africana, a teologia que assumia que se o cristianismo é único, ele é vivido de forma diferente, em função das praticas culturais de cada contexto. Há aqui questões de ordem meramente teológico-religiosas, mas igualmente de ordem epistemológicas profundas.

 

Em segundo lugar, tocamos nas nossas crenças animistas e avaliamos como elas conflituam com o processo de evangelização que foi apanágio dos diferentes missionários e pregadores, geralmente vindos do ocidente, que criaram as diferentes seitas religiosas no nosso país. Vivemos com o animismo impregnado em nossas consciências, em nossas práticas culturais e sociais. Podemos, por isso, dizer que o animismo é parte integrante da nossa percepção sobre o mundo, no geral, e do mundo religioso, em particular. É habitus, no sentido que lhe dá  Pierre Bourdieu. Os momentos mais difíceis nos levam de volta às origens, porque é nelas que se encontram as estruturas e as potenciais respostas às nossas principais indagações existenciais e religiosas.

 

Aliás, os escritos de Desmond Tutu testemunham uma variedade de teólogos africanos que estudaram essa transição de interculturalidade entre as religiões monoteístas e as religiões animistas africanas. Existem precursores bem conhecidos como Joseph-Albert Malula, Meirand Hegba, Vicent Mulago, Engelbert Mveng, Jean-Marc Ela, John Mbiti e Fabien Eboussi Boulaga.

 

Uma terceira questão estava relacionada com a questão da misantropia, nas relações humanas, e como este espírito de fraternidade religiosa, que nos deveria unir, por vezes, nos separa. Diante de tantos problemas, pobreza, guerras e terrorismo, esse espaço de religião converteu-se num refúgio. Então, a normalidade da vida e da produção vai retirar os fiéis de suas igrejas?

 

Em quarto lugar, verificamos que uma postura misantropa e pouco solidária, já adoptada, tem feito dos moçambicanos concidadãos pouco solidários com as angústias e vicissitudes vividas dos outros. Dividimo-nos por questões de ideologia ou, ainda, por uma questão de supremacia de determinados partidos sobre os outros, ou ainda de aspirações pseudo-religiosas sobre os outros. É a própria ideia de Moçambique que tem sido desafiada quando estas clivagens se tornam normais e comuns na nossa sociedade, pois somos, como país, um projecto cujo sucesso depende do que formos capazes de fazer, e que a ideia de ser moçambique signifique aceitar e aquiescer o outro como sua própria continuidade. Somos solidários tão somente em casos de desastres naturais.

 

E esta postura que desperdiça oportunidades, convívio fraternal  e um assumir de não fazermos parte do mesmo grupo. Mantemos um diálogo estéril e de desproveitos. Por vezes, consideramos que os contactos, para além dos mesmo grupos, são contaminação ou violação, o que é contrario aos fundamentos fundacionais da ideia de Unidade Nacional, elemento que nos é muito caro como moçambicanos.

 

Não poucas vezes, olhamos para irmãos e concidadãos, de diferentes ideologias e ideais, e achamos a aproximação inaceitável e perigosa. Acontece no plano politico, social, étnico e, agora, no religioso. Atitudes que são exacerbadas por discursos inflamados e produtores de rupturas e conflitos entre as pessoas. Aqueles jovens que passam pela doutrinação, sobretudo no norte do país, respaldam-se num discurso religioso fanático, teologicamente irracional, socialmente inconcebível, antropologicamente diruptivo e violento. Essas escolas religiosas, cuja liderança, assente em pessoas nacionais e estrangeiras mais radicais, têm fabricado fanáticos religiosos perigosos para a nossa unidade, para o nosso contrato social, para a fraternidade que tentamos, tão bem construir e consolidar.

 

As confissões religiosas necessitam de prestar mais atenção a estes processos que criam problemas até de sua própria legitimidade, de sua imagem social. Existem relatos assustadores de promoção de ódio e vingança, com base no sentimento de pertença religiosa. A questão da religião é hoje, como nunca foi, um problema central no processo de construção e formação do Estado moçambicano, de construção e consolidação da Unidade Nacional, do aprofundamento no nosso contrato social.

 

Existe muito interesse, em muitos de nós, em procurar o espírito da tradição para que possamos encontrar o espírito da reconciliação. Isto tem sido parte das subjectivações, quer das nossas classes mais esclarecidas, como do cidadão comum. Será que o diálogo inter-religioso e intra-religioso da paz, irmandade e  reconciliação, ajudaria na difusão dos  valores essenciais dessa narrativa de fraternidade humana?

 

Encerrei a conversa, com os líderes de todas as confissões religiosas ali presentes, regressando aos tempos de infância e adolescência. Passei uma parte da adolescência na cidade de Nampula, convivendo com jovens cristãos e islâmicos. O meu discernimento juvenil jamais encontrou diferenças entre um lado e o outro da fé e espiritualidade.

 

Numa das missas, na S. Catedral, ainda com o Bispo Dom Manuel Vieira Pinto, dei conta de um jovem cujo nome era Omar Momad, que foi chamado para uma das leituras sagradas. Só, anos mais tarde, dei conta do significado desse gesto.

 

Este foi dos exemplos que mais e melhor me remeteu à questão da solidariedade humana e do convívio religioso que perpassa todos os valores e preceitos. Mas foi, também, um ponto de partida e de ruptura, para entender como nos podemos  reconciliar e aniquilar preconceitos, como moçambicanos, e manter os exemplos de convivência religiosa que nos tipificam. Abraçar essa fraternidade como um dos principais factores nas nossas relações.

 

O nosso país tem muito mais conflito e muito mais dissonância entre políticos, do que propriamente entre religiosos. Precisamos de uma nova utopia, de uma moçambitopia, e de um diálogo que nos una, não apenas como moçambicanos, mas como irmãos e pessoas de fé e espiritualidade. A fé africana de Desmond Tutu, que despe de preconceitos e desconfianças. (X)

quarta-feira, 11 maio 2022 07:16

GULAMO KHAN, 70 ANOS

O Gulamo Khan faria hoje, 11 de Maio, 70 anos. Morreu aos 34 anos a 19 de Outubro de 1986. Quando entrei para a redacção da Rádio Moçambique, em 1984, onde debutaria como repórter, o seu nome constava na pauta dos jornalistas, mas ele estava destacado na Presidência, como adido de imprensa. A despeito, por vezes, via-o nos corredores da Rádio. Via-o sempre sorridente, afectuoso, acolhedor. Era uma das mais esplendorosas vozes de Moçambique. Os seus trabalhos como jornalista são documentos históricos. Entrevistas como as que fez a Fany Mpfumo ou Noémia de Sousa são certidões da nossa nacionalidade.

 

Mais tarde, na AEMO, primeiro, e nos Msahos, que eram memoráveis encontros de poesia no coreto do Tunduru, de que foi um dos fundadores, depois, conhecer-nos-íamos. O seu activismo cultural, não obstante as funções que tinha, era indúctil. O Msaho, a “Gazeta de Artes de Letras”, na vetusta revista TEMPO, com Luís Carlos Patraquim e Calane da Silva, ao tempo em que o Mestre Albino Magaia era director, a promoção da literatura, a Associação dos Escritores, quando Rui Nogar era Secretário Geral, entre outras actividades, fazem parte do seu intrépido activismo cultural.  

 

O Gulamo era um belo tribuno, um exímio declamador. Creio que José Craveirinha, seu amigo, não teve um outro de semelhante quilate a dizer-lhe a poesia. Para além de a dizer, o Gulamo foi responsável por divulgar poemas de Craveirinha que de outro modo seriam desconhecidos ou estariam perdidos. Vivíamos um tempo em que acreditávamos nas palavras e a poesia era o viático das nossas vidas e dos nossos sonhos. Hoje estamos, desfortunadamente, nos antípodas desse tempo. 

 

Num comovido e comovente texto (“Missiva póstuma para o Gulamo”), que serve de prólogo ao livro único (“Moçambicanto”) que se fez publicar, em Maio de 1990, há 32 anos, José Craveirinha, sem se arredar do tom pessoal e da pessoa próxima que o Gulamo era, escreve: “Trágico sarcasmo do Destino é ser eu, precisamente eu, o incumbido para falar de ti, Gulamo na edição do teu livro, o único: tu, Gulamo que, tão jovem, ligado à casa do Zé e da tua mamã Maria como a tratavas, por laços afectivos que te tornavam mais um filho, não escondias o porquê das tuas diligentes buscas e irreverentes “extravios” de quanto papel solto, rascunhos e escritos inéditos enferrujavam nas gavetas do descuidado Zé, correndo o risco fácil de se perderem de vez, o que seria – teu exagero afectuoso – um crime e uma perda. Autor dos “extravios” reclamavas a intenção de ser o fiel depositário que te caberia divulgar no “depois” do descuidado autor.”

 

O Destino, como lhe grafa Craveirinha, com maiúscula, zombou do “descuidado autor” e seria ele, na companhia do Albino Magaia, Calane da Silva e Júlio Navarro – todos desabrigados deste reino -, que cuidaram de organizar os papéis, encontrar ordem e fazer publicar a poesia de Gulamo Khan, quando este, no infortúnio colectivo que seria Mbuzini, não regressou de uma breve viagem à Mbala, na Zâmbia, onde fora acompanhar o Presidente.

 

Neste “Moçambicanto” houve por bem incluir uma mensagem da Mãe do Gulamo, Hawa Mulla. Mensagem lancinante esta, que termina dizendo: “Levaste as palavras da tua linda voz contigo, mas connosco ficou para sempre esta tua mensagem amiga.” Não há exagero de progenitora no adjectivo: Gulamo tinha das mais belas vozes que a nossa Rádio teve.

 

A voz era a extensão da sua personalidade. Leio-lhe, de novo, os poemas, da sua breve produção, reunida neste magro volume, com capa de Chichorro, ilustrações do Malangatana e do próprio Chichorro, e reavivo, na sua dicção, a sua belíssima voz. O livro inicia com o poema que lhe dá o título e é absolutamente encantador:  

 

céleres as águas

zambezeiam pela memória

das almadias do silêncio

 

nem o zumbido da cigarra

me entontece

 

nem o troar do tambor

me ensurdece

 

as vozes que são 

sulcos das nossas esperanças

 

Oh pátria

moçambiquero-te

neste alumbramento

e amar-te

devo-o à carne e ao nervo

deglutidos em revolta.

 

Poeta com timbre próprio, poeta com dicção própria, poeta com sintaxe própria, pese embora a sua obra tivesse sido um projecto inacabado, que a morte, abrupta, interromperia para sempre. Não sei se há aqui alguma premonição, mas não deixo de notar, nestes versos que cito a seguir, uma outra ironia trágica: “Sento-me na carlinga e fecho os olhos/ cheira a velho este Tupolev/ na penumbra”. A 19 de Outubro de 1986 estavam todos eles também num infausto Tupolev.

 

Poesia que se arrima indisfarçadamente num ideário, dela temos que assacar a circunstância temporal e histórica na qual é escrita: “Há uma lança lançada em Setembro”. Ou estes versos acutilantes: “assim exilados/ no ventre da Pátria/ lambemos o chão/ e o musgo ressequido”. Poderiam ser, estes últimos versos, sobre os tempos agoirentos de hoje.

 

Poeta em diálogo com a poesia de Craveirinha também (“Carta para José Craveirinha feita num 42º andar de Nova Iorque”: “Atenção irmãos/ Billy The Kid era um fanfarrão/ nem o whisky lhe aguentava a coragem/ tanta cagufa/ hoje sabemos que o grande chefe índio/ se suicidou com uma poção venenosa” (...) “E Langston Hughes não é parvo nenhum/ quando diz que é belo e que é a América/ Deviam tê-lo deixado na cozinha a/ comer os restos para ter juízo/ e não se meter com brancos// Também não é verdade que Joe Louis/ despenhou aos 2 minutos Max Schmeling/ pondo knock-ou Max Schmeling”).

 

Há, nisto, nestes versos, um claro diálogo, uma ineludível intertextualidade com o poema “Quando o José pensa na América” de Craveirinha. “E Agora, Zé? Agora, já, todos os membros/ da K. K. Klan sabem/ o que pensamos/ quando pensamos na América” (Gulamo Khan).

 

José Craveirinha: “E além do mais o José também se lembra que Joe Louis na desforra/ pôs Max Schmeling K. O. logo ao primeiro round/ que Armstrong quando assopra o trompete/ os agudos dão resposta concludente/ às dúvidas sentimentais da Ku-Klux-Klan/ e o retórico par de Botas de Charlot”. 

 

O poema de José Craveirinha é longuíssimo e não caberia aqui todo, mas é um daqueles arroubos que fizeram a sua fortuna como poeta. Nesta “Carta” de Gulamo, eivada de ironia, aliás à boa maneira do Mestre, há ainda versos que esplenderiam à luz dos tempos ulteriores à sua escrita: “Sabes que mais? / É mentira o que dizem de Michael Jackson/ O puto não é negro é branco só que os / racistas”. 

 

Muito haveria a dizer, não fosse esta uma breve nota evocativa, do Gulamo Khan, no dia em que ele faria 70 anos. Releio o livro, perpassam pela  minha memória as imagens que guardo dele, lembro-o afectuosamente, recordo-me da última vez que o vi, sentado no banco do Jardim Tunduru, antes de um Msaho; lembro-o, ali, no coreto declamando as ínclitas “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, do José Craveirinha (numa dedicatória este escreveria: “Homenagem póstuma ao muito Amigo Gulamo que as descobriu e divulgou”); mas sobretudo ainda me empolga a lembrança do Gulamo a dizer o poema “Rumbas de violas no Comoreano” do nosso comum amigo e grande Poeta José Craveirinha. 

 

Que mais posso dizer e que não subscreva o lugar comum? Gulamo Khan foi outro dos nossos grandes intérpretes e hoje está exilado no território do esquecimento. Foi um tradutor do ser moçambicano e dos nossos anseios. Fê-lo com a sua voz quando a palavra exprimia assertivamente o nosso sonho individual e colectivo. Agora que vivemos o refluxo desse tempo e experimentamos a distopia desse encantamento e dessa aspiração comum, o seu nome subscreve o anátema da desatenção, do desapreço e da nossa endémica negligência. A Pátria é fecunda na arte da desmemória. A despeito, a voz de um poeta nunca se deixa obliterar.

 

Seremos amor o chão fértil”, escreveu Gulamo Khan num poema de verso único. Este brevíssimo poema poderia ser a súmula da sua vida e do seu destino indubitavelmente poético e do seu imperecível e pungente hino - “Moçambicanto”.

 

Zagaia forte e aguerrida

 

adeus malume.

 

(Gulamo Khan)

terça-feira, 10 maio 2022 09:51

Um desafio à Doutora Luísa Diogo

Gostaria de ouvir a opinião da Dra Luisa Diogo sobre a fiscalidade relativa às PMEs,  especialmente depois do COVID-19. Nossas PMEs foram arrasadas e muitas fecharam. Houve quem resistiu mas a carga fiscal manteve-se. O Governo nada fez para acarinhar as PMEs do ponto de vista fiscal, através duma moratória fiscal...dum perdão até, permitindo às empresas voltarem a operar. Um dos requisitos para as empresas obterem novas adjudicações é sua quitação fiscal estar em ordem. Mas com o COVID-19 houve quem prefeiu pagar salários e não impostos, tornando hoje a retoma complicada em termos de habitação fiscal para aceder a negócios. Infelizmente, ninguém discute estes assuntos, nem a CTA nem o IPEME. No caso de empresas jornalísticas, pior ainda. Seu silêncio é absurdo. A Dra Luísa pode abordar o assunto? Agradeço. Marcelo Mosse

segunda-feira, 09 maio 2022 14:18

Tanta ladroagem junta!

É tanta ladroagem junta. Tanta, tanta, mesmo. Até parece aquela situação em que tomba um camião gigante transportando um enorme contentor cheio de dinheiro em notas e nós, à nossa maneira africana, esbulhamo-lo. Atiramo-nos a ele, ao contentor, cada um de nós abocanha o que pode e como pode; quem tem bolsos grandes, gigantes, quem tem bolsinhos, quem tem saco ou sacos… enche como pode. Exactaqualmente como quando tomba um camião da 2M cheio, ou uma camioneta cheia de produtos de mercearia. Ė como parece ser a ladroagem que está a ocorrer no nosso país. Ladroagem aos fundos do nosso Estado. Dá a ideia de o gigante camião do nosso Estado ter tombado numa autoestrada que não temos e quem pode apodera-se do que pode… sem regras nem limite!

segunda-feira, 09 maio 2022 09:48

La famba bicha!

Jeremias Nguenha morreu a 4 de Maio de 2007. Passam hoje 15 anos. Provavelmente ainda sejam ouvidas as suas famosíssimas músicas “Vada Voxe” ou “La Famba Bicha”, que são, quanto a mim, um dos mais inventivos diagnósticos da sociedade moçambicana e das suas patologias inultrapassáveis. Permanecem actuais. Actualíssimas. 

 

Era um artista extremamente irreverente e fazia uma arrojada e acerba crítica política e social. Nascera a 19 de Março de 1972, em Inhambane. Cantava em changana. Cantava enérgica e violentamente em changana. Morreu cedo, subscrevendo o anátema moçambicano, com apenas 35 anos. Deixou, no entanto, o seu génio criativo registado nas músicas que compôs e cantou. 

 

Nguenha foi um artista carismático e popularíssimo. Isso devia-se, a meu ver, à sua música poderosa e às suas mensagens certeiras e veementes, mas também à sua imediata identificação com os mais desfavorecidos: a forma de vestir, a forma de se exprimir, a forma de dançar e as suas coreografias. A sua impetuosa denúncia social, sobretudo quando falava da pobreza ou das injustiças sociais, era uma resposta violenta à violência dos que sofriam e sofrem a exclusão, a pobreza e a marginalidade. 


Jeremias Nguenha tinha uma portentosa e magnética energia em palco e vê-lo actuar era um momento fortemente impactante. Vestia uniforme militar e tinha o cabelo sempre rapado. Andava com um exemplar da Bíblia. Era um provocador. As suas composições tinham metáforas e imagens virulentas: "obrigam-nos a pentear as nossas carecas” (tradução livre) é um dos seus versos mais profundos. O grande instigador era, antes de tudo, um grande poeta social e um magistral e intrépido cantor e actor. Ele não cantava apenas. Actuava no estrado. Era a voz dos esquecidos, dos desprezados, dos proscritos. 

 

Teve uma aparição fulgurante. As rádios tocavam-no regular e recorrentemente. Quando foi anunciada a sua morte, o choque foi inevitável. Mas parece que é o destino de grande parte dos artistas moçambicanos. Quantos talentos se perderam precocemente neste país? Quando estes (artistas) desaparecem sucede o silêncio e a escuridão sobre os seus percursos e suas vidas. Não são mais evocados, não são estudados, não existem biografias. Sabemos muito dos artistas estrangeiros e cultuamos o efémero entre nós. Pouco sabemos dos nossos melhores. 

 

Aliás, parece que a Pátria se regozija em ignorar os seus melhores intérpretes. Intérpretes num sentido mais extenso – de tradutores de um tempo e de uma sociedade. Como é este imenso e perseverante artista. Um cantor desassombrado e arrebatador. Jeremias Nguenha foi e é um dos melhores intérpretes do nosso destino individual e colectivo. Foi e é um dos maiores tradutores do devir moçambicano. 

 

La famba bicha!

segunda-feira, 09 maio 2022 09:39

Este homem lembra-me Moisés

Do seio da sarça, Deus rugiu como o verdadeiro Rei dos Céus, abafando todos os sons da planície onde Moisés apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Era manhã fria e não havia outros pastores por perto, pois toda aquela vastidão de terras pertencia a uma única pessoa, escolhida entre os demais para desfrutar de um manancial sem fim. Foi nesse lugar que a Voz esvaziou-se e troou como o último vulcão e chamou por aquele que seria, afinal, um servo apetrechado de aço filtrado em fogo, para romper as grades do mal.

 

Deus  trovejou como os trovões que, nas montanhas de pedra, na função de megafones Divinos, entram em harmonia com a existência, e chamou pelo pastor solitário imbuído em pensamentos que só o Próprio Jehová podia sondá-los.

 

- Moisés!!!!!!!!!

 

O pastor entrou em pânico ao perceber que a Voz que lhe chamava vinha da sarça ardente, suspensa no espaço  onde o rebanho tinha alimento em porções sem limites.

 

- Quem é você que me chama com essa Voz do fim do mundo?

 

- Sou eu, Deus dos Exércitos.

 

- O quê que você quer de mim?

 

- Quero que vás ao Egipto libertar os filhos de Israel, presos nas masmorras de Faraó.

 

- Mas porquê que  tenho que ser eu a ir ao Egipto, libertar os Teus filhos das masmorras de Faraó.

 

Deus fez uma pausa, permitindo que se ouvisse na plenitude a música dos rios fartos que serpenteam  em todo aquele maná oferecido a Jetro. Era a mesma música que Moisés ouvia todos os dias, mas que agora ressurge retumbante, silenciando todos os outros sons maravilhsos que encontram no cântico dos pássaros, a síntese da maravilha. Depois – ainda do seio da sarça - a Voz voltou e retorquiu: porquê que não tens que ser tu?

 

II

 

Lembro-me desta passagem bíblica, sempre que vejo -  nas ruas da cidade de Inhambane – um homem que usa um cajado que mais parece um elemento de adorno, do que propriamente de suporte. Então, na minha imaginação, este indivíduo enigmático pode ser o próprio Moisés, encarnado numa outra pessoa, que é esta que vagueia sem direcção, aproveitando ao máximo – provavelmente – a paz que reside em toda a urbe.

 

Nunca o tinha abordado até ao dia em que perdi a capacidade de conter-me. Aproveitei o facto - numa manhã de céu nublado - de estarmos lado a lado, na varanda da loja do Matocolo, à espera que a chuva parasse. Não sabia como ele reagiria às minhas palavras, e nem podia saber, por muitos motivos, e um desses motivos é que, para além de nunca ter falado com ele, jamais o vi a conversar com quem quer fosse, apesar de ser uma pessoa bastante conhecida.

 

- O senhor é muito parecido com  Moisés!

 

- Qual Moisés?

 

- Da bíblia!

 

Ele riu-se às gargalhadas, olhando-me profundamente. Acariciou -  com as duas mãos - o  cajado que será, se calhar, um imprecindível talismã da sua vida. Parecia estar a procura das palavras apropriadas para responder à minha ousadia, como no dia em que Deus fez uma pausa, deixando soar levemente a música dos abudantes rios do maná de Jetro, antes de dizer a Moisés: porquê que não tens que ser tu!

 

Mas quando parou de chover, o homem foi-se embora sem dizer nada, até perder-se na zona dos “Quatro candeeiros”, e não olhou uma única vez para trás!