“Como em outros poetas, também em mim, anuí:
não há a probabilidade de me render”
Heliodoro Baptista (“Nos Joelhos do Silêncio”)
Como epígrafe de um dos seus poemas mais incisivos e emblemáticos – “As outras mãos” –, Heliodoro Baptista citou o romancista uruguaio Juan Carlos Onetti que diz, em “O Estaleiro”: “É estranho que aqui ninguém soubesse de nada”. Com isso, o poeta denunciava a complacência que houve durante muitos anos em relação a práticas repressivas e de silenciamento do regime sobre vozes discordantes ou desalinhadas. Ele, que foi preso, que esteve cinco anos sem emprego, afastado do jornalismo, proscrito da pátria literária, sem ver a sua obra publicada, ostracizado, tendo a solidariedade de poucos, sofrera, no opróbrio daqueles anos, o anátema do isolamento. Jornalista, cedo vira, nos novos governantes, atitudes que criticava nos seus artigos. Era contra a arrogância, a prepotência ou o culto da personalidade.
Poeta erudito, ostensivamente sarcástico, por vezes, elíptico outras, seria, no entanto, cristalino em “As outras mãos”: “As mãos do poder, meu amor, / são mãos humanas. // Fulminantes, ásperas, leves, / gordas, acesas, molhadas de chuva / são sempre humanas”. Pagará um preço elevadíssimo pela sua ousadia, pela sua dissensão. “Por Cima de Toda a Folha” (1987) iria resgatá-lo, de algum modo, do isolamento, da proscrição, da exclusão ou do insulamento. O livro estava dividido em duas partes. Uma, a primeira, com poemas escritos entre 1970 e 1974, a segunda, com textos redigidos entre 1975 e 1984. Pertenciam ao primeiro caderno, poemas como “A Aldeia” sobre o massacre de Wiriamu: “Vede / a amabilidade das manhãs / exprimindo-se tão bem / sobre o espaço das bombas”, ou “Alegoria”, outra denúncia intrépida do genocídio colonial: “Em Inhaminga, meu amor / estão as armas apontadas para o céu / mas só há pássaros”. Há, subsumida, uma cortante ironia. O segundo caderno tinha versos crípticos, mas de clara denúncia dos despropósitos do regime e das suas redundâncias: “Os deuses e os mitos seduzem-nos / até ao horror encarado de frente / mas somente representam no espaço / o imponderável de todas as coisas”.
Heliodoro Baptista, num tom acerado, impugnava os “obnóxios”: “A memória deve viver destes ímpetos / para produzir, contraponto oscilante, / a esplêndida leveza da nuvem, / do ser-se comunicativo / antes de termos sido persistentes, / nos confrontos; / improváveis como queríamos, / ilógicos sobretudo frente ao sussurro / das balalaicas obnóxias”. Tinha, à conta disso, o pecúlio da prisão e do desemprego. A divergência custara-lhe o isolamento e a penitenciária. Foi um dos primeiros intelectuais a exprimir o desencanto com os tempos novos e a experimentar a dureza da represália. Era um sacrílego para os prosélitos de serviço. No poema “Cela em êxtase”, na sua primeira prisão, de 1977, sem culpa formada, escreve: “Não devemos ter medo nem da pobreza; jamais / da prisão e do exílio”. Como poeta, vivia ainda “no tempo dos gritos”, como assinalara, numa das epígrafes do livro, ao citar Elias Canetti, autor de “Auto-de-Fé”, nascido na Bulgária e Prémio Nobel. Também aludia a José Craveirinha, seu amigo, quando, num outro contexto, mas em circunstâncias similares, denunciava: “os nervos novamente adequados a tudo / os amigos minuciosamente bem escolhidos. / As conversas prudentemente sussurradas. / Uma necessidade imperceptível a desconfiança”.
Não obstante, Heliodoro Baptista era um poeta do amor. Aliás, dedicava o seu livro aos filhos (Pablo e Guy) e “ao amor e ao meu país”. Ele amava intransigentemente este país e foi dos seus melhores poetas. Viveu, no entanto, toda a vida, acossado. Primeiro pelos esbirros do regime, depois perseguido pelos seus fantasmas. Aliás, ele escrevia para se conciliar com os seus fantasmas. Foi acutilante, acerbo, assertivo. Foi digno da sua condição e da sua profissão iniciada em 1971 no vetusto “Notícias da Beira” onde se estreara literariamente na página “Jovem” anos antes. José Craveirinha, Eugénio Lisboa, Sebastião Alba, Eduardo Pitta, Jorge Viegas eram alguns dos nomes que colaboravam na secção literária. Nascera em Quelimane, mas seria a Beira a sua pátria e o seu exílio. Vivia entre livros e era um grande leitor. Um autodidacta. Um melómano. Tinha paixão pelo cinema. Era culto, ecléctico, erudito. O que significa, por outras palavras: avançado, civilizado, ilustrado.
Quando o conheci, em 1987 saíra dessa espessa neblina que o ocultava e omitia. Voltara ao jornalismo e preparava-se para publicar o seu livro de estreia. Aquando da edição da série Autores Moçambicanos pelo INLD o seu original fora postergado, censurado e proscrito. Mesmo José Craveirinha, herói da Pátria, teve os seus tempos aziagos. A sua dimensão e importância e o facto de ter a amizade de Samora Machel devem ter dissuadido os prosélitos. Mas há poetas que amargaram a reeducação. Heliodoro conheceu os “Zambezes de solidão” e soube que “nunca um balázio em cheio / deu tanta alegria / aos profissionais do tédio / e aos acrobatas da intriga.”
No poema “Niassa – 1978”, do seu último livro, “Nos Joelhos do Silêncio” (2005) é lacerante: “Dizem que os campos se enchem de homens e mulheres. / Um a um, à noite, na areia de águas doces, os espíritos / enxotam leões reduzidos a cães sem dono. Lá, a lua em cimitarra. / Acordo na noite. A ave sagrada canta as leis do céu, / nos ensurdece, / estala na noite: provavelmente, começaram os fuzilamentos”. Isto é terrível, ao mesmo tempo belo. Isto é de um grande poeta. Belo e cortante.
Heliodoro Baptista era um poeta da linhagem dos que se revêem numa poesia como forma de conhecimento, numa poesia ecléctica. Releva daí o facto de a discussão que se despoletou sobre a questão da intertextualidade, naqueles anos, não lhe ser de todo alheia. A poesia dialoga com a melhor poesia e com os poetas que ele reputava. Contemporâneo de Jorge Viegas, Sebastião Alba ou Leite de Vasconcelos, leitor e amigo de José Craveirinha, admirador de Rui Nogar – “Mas não te iludas, irmão do Zé e do Nogar, / com a sintaxe dos novos oráculos” -, cultor da poesia de Herberto Helder , que terá uma importância capital na sua vida e no seu destino poético. Leitor de Fernando Pessoa ou Eugénio de Andrade, entre os portugueses, de João Cabral Melo Neto ou Carlos Drummond de Andrade, para citar os brasileiros, ou do Pablo Neruda. Era um leitor obstinado. “Somos indissociáveis / nos clássicos antípodas / da nossa ortodoxia / de amarmos Craveirinha e Kalungano / (com a mesma independência?) / que alguns nos lêem / no sentido figurado / seguindo à risca cada metáfora”. Sarcástico, altivo, soberbo. Ou hiperbólico e, ao mesmo tempo, provocador. Sempre provocador.
A sua vasta erudição compreendia um conhecimento amplo da ficção e do romance. Leu os clássicos, era admirador dos latino-americanos, dos americanos, dos europeus ou asiáticos. Citava deste Hemingway a García Márquez, de Mishima a Onetti, de Carlos de Oliveira a Jorge Amado. Foi um prosador exímio, um contista exemplar. Nos anos 70 emparceirou com Carneiro Gonçalves na experimentação de um dos universos mais inexplorados da nossa ficção – as lendas que ambos magnificamente verteram para o jornal “Notícias da Beira”. Uma dessas raras peças (“Chicaláua Milele”), de Heliodoro Baptista, publicada originalmente a 15 de Agosto de 1971, está coligida na antologia de contos “As Mãos dos Pretos”.
Era uma biblioteca viva e vívida. Incutia esse gosto e essa obstinação aos poetas mais novos. Julius Kazembe, que ele acoutou, muito jovem, foi um deles. Os filhos menores, Pablo e Guy, recitavam, quando os conheci, o poema 20 dos “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” do Neruda. Não era despiciendo, aliás, o nome Pablo, a quem ele dedicou um belo poema “Variações Onomásticas”: “E tu, meu filho, / que carregas esse nome diabólico/ por que dizes já com 2 anos/ a mim de cenho mortuário/ que assim, assim mesmo, / «estás farto desta merda»?”
O poema “Paisagem com poeta em segundo plano” começa e termina com dois versos de Herberto, o seu poeta electivo: “Tantos nomes que não há / para dizer o silêncio.” Creio mesmo que Herberto foi o arquétipo do poeta que ele pretendeu ser. Herberto Hélder: “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” (“Poemacto”). Em “A Colher na Boca”, Helder tinha aquele belíssimo poema “O Amor em Visita” que dizia: “Dai-me uma jovem mulher, com a sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue. Com ela / encantarei a noite.” Era desta poesia que Heliodoro vivia, rodeado dos seus fantasmas, lendo, na Beira, este imensíssimo poeta. “Em cada mulher existe uma morte silenciosa” – escreve Herberto Helder. O amor e a morte seriam, de certo modo, os sintagmas da poesia de Heliodoro Baptista.
Homem de palavras, cultivava-as com a perícia de relojoeiro suíço. Os seus poemas, para além de terem soberbas metáforas e imagens poderosas ou até mesmo pavorosas, eram feitos de palavras e de um ofício que lembra a “Ars Poetica” do Rui Knopfli, outro poeta cujo amor e devoção nos aproximava. Num poema de “A Filha de Thandi” (1991), intitulado “À volta das origens”, dedicado a Rui Knopfli e a Eugénio Lisboa, o diálogo intertextual é explicito com um texto do Knopfli: “Sim, de facto, ‘uma só e várias línguas / eram faladas e a isso / por estranho que pareça, também chamávamos pátria’.”
Heliodoro Baptista: “As palavras amadurecem, transcendem-nos. / Como os dias. Este trajecto imemorial.” – isto no seu potente “Poema à Filha de Thandi”, que assim termina: “Mas o poeta tem boca: / As metáforas são o seu próprio ardil / para que outros leiam / o que ele nunca disse.” “As Palavras Amadurecem” seria o título de uma antologia publicada, em 1988, na Beira, pelos dez anos da página “Diálogo”, do “Diário de Moçambique”.
Há imensos poemas do Heliodoro Baptista de que gosto muito. Poemas que nos desassossegam. Poemas subversivos. Aliás, Jorge Viegas, com quem inicia, em Quelimane, um convívio literário (à volta da “Voz da Zambézia”), escreverá no belíssimo poema “Subversão”: “À subversão devemos/ A estatura do que somos.” Heliodoro Baptista, um poeta subversivo, no poema “De nós e dos outros”, que tem uma epígrafe do japonês Yukio Mishima (“A verdadeira pureza é sujarmo-nos e, no entanto, não nos sujarmos realmente”), escreverá: “Querem-nos, a alguns, bem sentados/ na fofa realidade escamoteada / a uma outra realidade desavinda / onde crescem agudas, ásperas vozes.”
“Ouso falar extremamente de mim mesmo”, escreve Heliodoro Baptista em “A Filha de Thandi”. E afirma adiante: “da imobilidade do poema/ explodirá o mais prodigioso grito de amor”. Aqui está a chave da sua poesia. “Falo-vos destas vozes mansas, chamando-nos docemente, / deste país em agonia mas vivo, / com seus luxos, grutas, segredos, xistos, volição, / onde, de resto, se confundem / estas recém-nascidas palavras, / adventícias, nunca. Consumadas, talvez.”
Heliodoro Baptista: “O pecúlio são os filhos, / o horizonte raso dos versos, / a doçura oriental dos teus olhos / e o castanho desenvolto / do teu corpo inextinguível / onde, às vezes surpreso, / restauro comovidamente / o deus que em menino/ quis ser.” Belo poema dedicado à musa soberana Celeste. No livro de estreia, dedicara à Celeste um outro belíssimo poema: “Gravidez”: “Traço a traço / desvendo-lhe as feições / por onde a vida rufla / as grandes asas.” Este livro – “A Filha de Thandi” – está cheio de belas metáforas. Num poema, “Prova dos Nove”: “Assim crescem as arestas da angústia, / as mesas estão cada vez mais vazias.” Isto é extraordinário. Num outro, “Preço dos sonhos”: “É de vidas que se fala aqui / e, sobretudo, de destroços humanos, / do que restou de todos nós.”
O poema “A Uma Ingénua Nórdica” é dos que mais gosto. Queria citá-lo na íntegra mas aqui não caberia. Também gosto do pungente “Ao Futuro”, dedicado ao filho Guy: “Saberás um dia que o amor nunca / nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre esteve”, começa assim o texto que fecha o livro. Tem versos seminais: “Rigorosamente contemporâneo / da explosão cósmica / que, contam, declinou ao princípio/ do escuro e da luz.” Termina com a seguinte estrofe: “Nunca aceites ser mártir. / Ama o teu presente e o futuro / e, por certas tardes de sábado, / de olhos porventura humedecidos, / limpa docemente a minha tumba.”
Haveria muitos outros exemplos para citar. Quero, no entanto, terminar com o poema “Hablando, com amor, em setembro”, que ele dedicou a Ungulani Ba Ka Khosa, ao Eduardo White e a mim próprio. No meu livro, “A Pátria Dividida”, de 1993, tenho um poema dedicado ao Heliodoro. Em “A Filha de Thandi”, ele dedica-me o poema “O Amor em movimento”. O Heliodoro foi dos poetas mais generosos no afecto, e isso vê-se no modo como proliferam dedicatórias em seus livros. Este poema invoca Pablo Neruda no diálogo que ele estabelece connosco. “Nosotros, irmão Pablo, / também fazemos milagres a sorrir”, di-lo. Ou: “a realidade aqui é um repto / um grito vocabular.”
Releio este belo poema, e tocam-me estes versos fulminantes. Heliodoro era um poeta inspiradíssimo. Apetece-me citá-lo todo, mas falta espaço para o fazer. Leio: “Nosotros, irmão Pablo, / nós também somos os mesmos:/ com astúcias, tumultos, originalidade, / na dor exaltante desta transparência carnal / se sermos coisas, aromas, corações atónitos (ou atómicos) / abraços penitenciários, suicídios de luz.”
Ou por outra: “Os jardins ainda não são jardins, / a fome es muy fuerte e alguns dias, seus poentes, / dão-nos a gramática incontrolável desta candonga / da desordem programada, o rigor selectivo desse negócio / que é a desolação animada pelos anunciados humanismos, / das imperiais conveniências do dólar.” Este poema é lindíssimo: “Entretanto, aqui estamos,/ numa casa, em Setembro,/ com nossas praças, hablando em Setembro, / nesta cidade índica e austral, esculpindo / contigo em Setembro de todos nós, / que produziu depois esta fúria de amarmos a liberdade / e esta coragem, sem exibições de nunca temer o látego, / o banco do tribunal, as armas, / quando nos localizam e apontam a subversão / de amar o valor erótico, beijar o sexo como a uma hóstia, / a ajoelhar defronte do altar de uns seios, sem ocultações, / puros, feridos pela paixão de se ser homem, entidade,/ motor próprio, paisagem sempre nascida em cada cópula, / porque o amor é tudo, sempre será tudo e todos, / belo, paranóico, avassalador, canibal, suspeito,/ veneno, vitamina, lâmina de punhal que dá vida, soro vital.”
Não haveria melhor de definição para a sua poesia, nem haveria melhor inscrição no horizonte intemporal desta escrita na qual se inscreve (passe a redundância) a sua memória e a sua biografia a como, por exemplo, nos belos e doloridos versos, que citei acima. A sua experiência está neles sublimada: “Por que não experimentam prender as estrelas?” – indaga-nos. Querem melhor metáfora? Este pungente texto, como tantos outros que Heliodoro produziu, na sua tumultuosa vida, são a lídima expressão de uma voz singularíssima da nossa lírica, de um poeta que nunca abdicou do amor e da liberdade, de um poeta quizilento, se quisermos, mas que tudo o que escreveu, como queria Rui Knopfli, foram poemas de amor, aliás, apanágio de grandes poetas. Termina assim aquele poema que ele nos dedicou: “Não poder viver senão uma vida/ é como não viver.”
Poeta inconformado, está na primeira linha da lírica moçambicana. Sofreu, por muitos anos, o opróbrio da marginalização. Foi jornalista e contista. Para além dos títulos acima referidos, publicou, em 2005, “Nos Joelhos do Silêncio”, no qual retoma alguns dos seus temas electivos, entre eles a mitologia de Thandi. Ele sempre recusou o silêncio. Mesmo quando precavia os filhos: “Pode ser que tenha de regressar/ aos dias das mil ciladas. //Como a outros, na exactidão deste tempo, / nada é imune.”
A Beira deve-lhe o magistério poético. Quando recentemente foi criado um importante prémio literário na cidade indaguei-me se a ele não caberia tal homenagem. Grande parte da mítica da Beira passa por ele e pelos poetas que ele promoveu ou amparou, como Julius Kazembe (um dos melhores poetas da sua geração que permanece inédito em livro por abulia própria e nossa), ou Júlio Bicá, Bahassan Adamodjy e Simeão Cachamba (todos perecidos), ou ainda Filimone Meigos e Adelino Timóteo. É preciso desfazer essa omissão. É urgente tirá-lo do esquecimento e do ostracismo. Da marginalidade. Sobretudo combater a ideia de que ele teve culpa do destino que teve. Isso é transformar uma vítima em culpado. É injustiçá-lo ainda mais. Condená-lo duplamente. É urgente fazer a reparação que se impõe. O acosso permanece com este nosso oblívio, com esta preterição, com esta negligência. Heliodoro Baptista cumpriu a sua incumbência e não quis apenas ser complacente com injustiças, arbitrariedades, iniquidades: “Falo desta raça de homens cabisbaixos, / impotentes ante esta circunvalada forma / de estar, assistir, ocultar, permitir, / ser-se cúmplice de mortes sem perdão.” Isto é sedição? Isto é insurreição? Isto é rebelião?
Heliodoro foi sempre poeta do amor: “Dizem: tudo pode ser encontrado e redivivo / por dentro do amor”. O seu “grito vocabular”, mais do que um repto, é uma realidade. Amou a intrepidamente liberdade: “a fúria de amarmos a liberdade”. Foi sempre poeta do futuro: “Saberás um dia que o amor nunca / nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre será”. Poeta irremediavelmente ecuménico: “Os continentes são da mesma raça. / Os homens do mesmo barro”.
Heliodoro Baptista, que morreu a 1 de Maio de 2009, à beira dos 65 anos, nascera a 19 de Maio de 1944, em Gonhane, Quelimane, passam hoje 80 anos. “Venho nu, o coração asceta, vago o rosto”, escrevera ele no poema belo “Cabeça-do-Velho”. A sua vida foi um constante desassossego. Sempre incompreendido. O seu desencanto perdurou até à morte. Não me lembro, no entanto, de o ver com acrimónia. Acreditava na condição humana. Aliás, a sua escrita e a sua obra divisam a condição humana. Era um amigo verdadeiro. A prisão, o isolamento e o acosso de sempre arruinaram o homem, mas nunca destruíram o poeta. Um grande poeta moçambicano. Um grande poeta africano. Um grande poeta da língua portuguesa. A sua poesia foi e é o que quis o poeta espanhol Gabriel Celaya, que ele apostrofa no seu último livro: uma arma carregada de futuro. Solitário, mas sempre solidário. Apátrida na sua própria pátria. Amou intransigentemente este país. O seu país. O nosso país. Como amou a sua musa Celeste e a sua prole. Como amou a liberdade. A liberdade livre. A liberdade de ser poeta e de ser cidadão. A liberdade de ser moçambicano. Até ao fim.
KaMpfumo, 19 de Maio de 2024