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segunda-feira, 06 maio 2019 06:56

Vendilhões da fé

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A atender pelo testemunho de diferentes apóstolos, quando Jesus visitou o Templo de Jerusalém, cujo pátio estava repleto de comerciantes e cambistas que vendiam animais e cambiavam dinheiro romano por hebraico, num período em que a cidade estava repleta de peregrinos da páscoa, no único episódio considerado de uso de "força bruta" no evangelho de Cristo, Jesus teria usado de um chicote de cordas para expulsar “todos os que ali vendiam e compravam", derrubando as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de pombas, teria dito: "Está escrito. A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de salteadores” (Mateus 21:12-13). A versão de João, 2:15-16 inclui o colocar em debandada ovelhas e bois que ali se comercializavam.

 

Os vendilhões do templo, em narrativas bíblicas, representam o desvirtuar de uma certa escolástica e linha evangelista. Assim como nos questionamos sobre o tipo de "cultura e personalidade" que poderia levar alguém a usar do avião de combate como última arma que inclui como detonador o sacrifício da própria vida, como faziam os Kamikazes japoneses (no contexto da segunda guerra mundial); que tipo de "convicção religiosa" recorre ao corpo e a vida para a “destruição dos infiéis”, como os "homens e mulheres bomba", no contexto das narrativas sobre a "radicalização" Islâmica; também podemos questionar-nos sobre milhares de homens e mulheres que alimentam programas de fé salvacionista por via de “exorcismos" para a “esbelteza”, para a "abundância de cheques”, para o alinhamento dos, digamos, "tomates", ou até para ensaios de ressurreição, acompanhados por farta e "condigna" refeição, para saciar a fome de um ex-morto. Ainda me questiono se o que quereria fazer após uma eventual ressurreição seria degustar dos meus sofridos cozinhados, ler os livros que não tive oportunidade, resolver o dilema entre "Txilar e 2M" ou, simplesmente, proceder ao ritual de reverência ao meu improvável ressuscitador.

 

Nos dias que correm, conscientes e ricos de direitos e deveres, o único chicote viável para os diferentes tipos de vendilhões nos múltiplos templos e mercados da vida talvez ainda sejam o voto (na política), a educação e as próprias tecnologias de informação e comunicação que, se por um lado nos imbecilizam com "fake-news", "faith" e "fake-faith, também propagam visualizações e explicações sobre os detalhes acionados para a desqualificação de presumíveis milagres. Todavia, independentemente da revelação da “farsa", como bem disse Evans-Pritchard, a crença e explicação sobre o feitiço não se esgota porque um feiticeiro particular possa ter sido desmascarado. Em tal sistema de crenças, o problema é visto como sendo de um feiticeiro específico, que não é tão bom assim, ou até do enfeitiçado, que não sabia que havia contra-feitiços activos, com poderes superiores às do feiticeiro, considerado barato.

 

A áurea de sacralidade que acompanha vivências da religiosidade e espiritualidade é passível de ser observada por qualquer um que embarque em exercícios de reflexividade e postura relativista, sem que isso signifique qualquer reivindicação de verdades ou conhecimentos supremos. Religião, ciência e política são domínios de significações caracterizados por armaduras de estruturação relativamente diferenciadas que podem caber em noções de visões de mundo, um todo ou parte de sistemas cosmológicos.

 

O tráfico de ideias, sistemas de crenças e representações remonta a própria história da humanidade e, apesar da afeição ao fetiche das modernidades e coisas ditas pós-modernas, o que anima a experiência humana é essa contínua mobilidade, tensões, conflitos estruturantes e negociações entre domínios de alguma forma contíguos e/ou interdependentes.

 

A estas distâncias históricas, naturalizamos a coexistência de mesquitas, igrejas, templos, academias, parlamentos ou palhotas de curandeiros, não como meros edifícios mas, como espaços especialmente concebidos para o exercício e para experienciar formas particularmente expectáveis de estar e ser em cada um desses distintos espaços, ainda que elementos de um possam ser arrolados, invocados, instrumentalizados ou simbolizados entre e intra domínios.

 

Não raras vezes, cientistas ou candidatos a cientistas agradecem aos deuses por terminarem etapas rituais de legitimação como cientistas. Religiosos cultivam o conhecimento científico, o domínio dos cânones religiosos e, por vezes, não se distinguem de actores políticos em actos de pregação e vice-versa. O fascínio da vida emerge dessa complexidade e multiplicidade de domínios e espaços de transito e vivências que emanam das relações sociais.

 

Na era do "triunfo do mercado" e, mesmo antes disso, qualquer uma das instituições sociais ou patrimônios humanos imateriais são passíveis de virar bens ou produtos disponibilizados nos diversos tipos de mercados, como simples "commodities", à mercê das mais elementares leis de oferta e demanda.

 

No “mercado científico”, por exemplo, vende-se de tudo um pouco. “Escolas de pensamento”, “linhas editoriais”, “(in)verdades científicas”, tecnologias provadas e improváveis, bugigangas que interpretam teorias e descobertas, a ideia de deleite pelo conhecimento de “torre de marfim”, fórmulas, palavrões e chavões, além do "turismo científico que se materializa entre conferências, seminários locais e globais que assumem contornos de verdadeiras passarelas de desfile de egos e vaidades, associadas a maleáveis noções de razoabilidade, razão, legitimidade e prestígio. Indivíduos fazem carreiras na academia, estabelecem alianças, adotam ou privilegiam “agendas” (ditas de conhecimento) e reproduzem-se, em termos de construção de si (simbólica e materialmente), assim como legam ideias e representações, passíveis, ou não, de serem capitalizadas e ou disputadas no "mercado de conhecimento" ou no que, em função da escola e praxe, configura uma verdadeira “indústria do conhecimento”.

 

O campo académico ou científico é passível de ser observado com a mesma aproximação ou distanciamento que podemos usar para qualquer outro campo, domínio ou indústria, se usarmos o jargão mercadológico de coisificação “das coisas”.

 

A política também configura mercado. Por ser demasiado óbvia a forma de estar, ser e transacionar no mercado político, desde a venda de ideias e ideologias no afã de cativar indivíduos ou multidões, propostas de gestão e governação, modelos de sistemas e toda uma série de produtos, subprodutos e aspirações que dispensam exaustão na sua caracterização. A política qualifica uma indústria, em sentido lato, onde até sonhos de “futuro melhor” se vendem ou impingem-se pela força da repetição, encantamento de líderes carismáticos, lealdades históricas que permeiam dimensões existenciais. No limiar, alguns indivíduos não se imaginam em vida plena fora dos laços e vínculos políticos partidários. A expressão, "eu sou político(a), não sei fazer outra coisa", proferida por figura pública em espaço privilegiado de antena nacional de TV é lapidar.

 

A percepção do domínio da religião e religiosidade como espaço de evocação e experimentação de formas particulares de ascetismo, teologias salvacionistas, evangelhos da prosperidade (e do bem estar), bem como territórios de articulação de significados e sentidos da vida, experimentação e vivência de níveis e dimensões diferenciadas de espiritualidade não impedem a visualização deste campo como espaço competitivo de negociação e mercantilização de narrativas de capital cosmológico, com potencial de contribuir para a inserção e localização de indivíduos e colectividades em sistemas relativamente abrangentes de definição e interpretação do "mundo" e da "realidade".

 

No brotar de cogumelos de tendas de promoções de milagres, não devemos perder de vista que a epifania da “salvação” manifesta-se de diversas formas e, apesar da dimensão súbita que parece acompanhar esse momento, obedece à roteiros sociais multidimensionais permeados por diversos sentidos, para não dizer razões, simbolismos e efeitos tacitamente apelativos e/ou coercitivos. O "festival de milagres" ostensivamente mediatizados nos últimos tempos não são novos e acompanham experiência humana como parte integrante de sistemas cosmológicos fechados e/ou fluídos. Visões de mundo reservam espaços privilegiados para as manifestações e expressões religiosas, independentemente da ocorrência de outras narrativas sociais, algumas das quais reivindicam, para si, lugar de ascendência (como a política, as religiões seculares ou a ciência).

 

A, simultaneamente, confortante e desconfortante multiplicação e mediatização de formas pregação, oração, incomoda pela visibilidade, ocupação de espaços de antena nos mídias modernos e pela e pela ousadia na apropriação de roteiros que assumem contornos lúdicos e instituintes de lugares de poder, como o atabalhoar do trânsito com sirenes e "motocadas" que, tanto quanto simbolizam a materialização do poder do Estado e, literalmente, suas "estruturas", concorrendo para a produção e reprodução das desigualdades sociopolíticas, abrem espaço para a cristalização, no imaginário social, de diferentes dimensões de reificação das premissas e versões conjunturais da "teologia da prosperidade". À posteridade, reservo a discussão sobre o “papa-móvel” e o aparato mobilizável nas digressões ou mobilidade papal.

 

Os edifícios morais, como obra do homem, ainda que exibam bases estruturais relativamente perenes, são feitos de materiais maleáveis, suscetíveis e permeáveis à recriações, mimetismo e decalques de códigos e linguagens conhecidas (e novas), esticando os limites dos parâmetros mais genericamente estruturantes, ao mesmo tempo em que acomodam convicções e oportunismos de indivíduos e grupos.

 

A batalha pela comunhão de "juízos de valores" (não reduzida à simples homogeneização) em vários domínios, com particular destaque aos campos político e religioso, é longa e passa pela problematização das nossas concepções sobre moralidade, ética, direitos e deveres de indivíduos e colectividades, em contexto em que parece predominar o "estado de natureza".

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