Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
segunda-feira, 22 junho 2020 06:40

Como entender o fenómeno do racismo hoje?

Escrito por

Os povos outrora colonizados foram vítimas de um processo brutal e desumano arquitetado ao detalhe e implementado impiedosamente pelos colonizadores. Esse processo foi altamente destrutivo e corrosivo tanto física como psicologicamente; Os povos colonizados são até hoje vítimas das mais vis atrocidades perpetradas pelo opressor - as feridas aparentemente sararam mas as cicatrizes são visíveis e ainda doem. A ideia de alguns grupos admitirem ser superiores intelectual, cultural e humanamente e outros inferiores, deixou marcas indeléveis colocou a humanidade numa guerra silenciosa e que custa vidas e retrocessos a dita civilização; Os povos colonizados tem em mãos a decisão sobre o seu presente e seu futuro mas adiam-na sistematicamente por um pretenso medo de serem efetivamente livres e autônomos – há ainda vivos fortes traços da colonização mental na sua acção.

 

O racismo, com a sua prepotência ideológica faz com que alguns se tornem superiores em relação a outros, assentando principalmente na ideia de que as desigualdades entre os humanos estaria fundada na diferença biológica, na natureza e na constituição do ser humano. Esta postura é maioritariamente assumida por pessoas de raça branca que, de forma recorrente fazem uso da sua posição força e condição de suposta  vantagem para ultrajar e subjugar os chamados inferiores.

 

Hodiernamente, novos estudos e novas abordagens tendem a separar conceito de racismo à simples ideia de raça e racialismo. Tendem igualmente a oferecer explicações sobre esta problemática do racismo na sua relação histórica com a escravatura, colonização, descolonização e neo-colonização. Estes conceitos e temas mostram-se sensíveis no seu trato e cada vez mais actuais, e carecem de uma hermenêutica mais detalhada para  ajudar a perceber a real ameaça do racismo nos dias de hoje.

 

A história moderna testemunhou a várias colocações científico-literárias de afirmação e difusão de ideias de superioridade de um grupo auto-denominado superior em relação ao outro por analogia designado de inferior – das teorias do pré-logismo do homem primitivo, passando pelo bom selvagem, até às teorias positivistas de Augusto Comte é notório um esforço titânico e uma luta visceral para depreciar e anular a humanidade do homem negro e consequentemente a sua racionalidade, história e cultura. A bem da verdade é importante que se admita sem ressalvas e que se diga que a ocupação, partilha e exploração de África assentou-se nesses pressupostos de superioridade e numa ideia de necessidade tácita de salvação dos negros africanos, índios da América Latina, indígenas das Índias e aborígenes na Austrália.

 

A escravatura é de longe o mais abominável e hediondo acto praticado pelo Ocidente contra os negros. Os seus efeitos se fazem sentir até hoje e mais do que nunca geram cada vez mais repúdio e descontentamento. Ela foi abolida formalmente, mas são visíveis novas e diversas formas de manifestação da escravatura moderna em vários cantos do mundo.

 

Quando as grandes migrações e viagens históricas aconteceram com o móbil dos descobrimentos e evangelização, e enquanto as migrações em massa tinham o sentido “Norte-Sul”, ou Europa – África como queiramos afirmar, o nome atribuído foi salvação, civilização, filantropia e purificação - e pela bondade, pureza e inocência do africano, este processo foi o menos sangrento e violento possível – as armas e os chicotes funcionaram lado-a-lado com a bíblia e com a doutrina de salvação. O continente negro era uma espécie de El Dourado e um poço de riqueza abundante capaz de alimentar o fulgor da indústria europeia. Contemporaneamente as migrações tomaram outro sentido “Sul-Norte”, ou África – Europa - América, e milhares de imigrantes africanos em busca de melhores condições de vida se fazem viajar ao chamado velho continente. O drama da migração de africanos para a Europa (principalmente usando o norte de África como porta de saída) tem merecido todos os adjectivos pejorativos por parte dos países receptores – E estas adjectivações contém sempre uma grande dose de depreciação racial.

 

Com os avanços tecnológicos vividos nos dois últimos séculos, onde a produção e circulação de conteúdos tiveram um alcance maior,  foi muito mais visível a dura e crua luta do negro  e o drama  por ele enfrentado no mundo com a impetuosidade da escravatura. Este drama é um problema universal e que carece de uma reflexão e intervenção global. Os séc. XX e XXI são indubitavelmente os séculos de afirmação do negro em vários âmbitos e áreas mas esta luta é ameaçada pelo “bicho” do racismo que mina a realização plena do homem negro. São dois séculos em que as lutas dos negros de todo mundo se fizeram sentir de forma mais vibrante com recurso a música, a literatura, ao cinema, ao desporto, a arte, a cultura e à várias outras formas de manifestação artística, intelectual e cultural que alavancaram a marcha de reconhecimento da humanidade do negro – uma marcha diga-se em que tudo o que se pede era o reconhecimento do lugar no negro no mundo e o respeito básico dos direitos do homem.

 

Mas importa referir ainda que os avanços registados nesta secular luta de emancipação e reconhecimento, nem sempre foram reconhecidos pelos perpetradores da violência contra este ser chamado de inferior. O espírito de superioridade ainda não permite que se olhe para o negro como um ser que faz parte do enredo civilizacional. Os ideais proclamados na Revolução Francesa - Liberdade, igualdade e fraternidade – tem um conteúdo estético belo mas não passam de mais um slogan que se distancia da realidade social factual.

 

Quando se pensa que o mundo contemporâneo deu passos rumo a uma maior coexistência entre diferentes grupos de pessoas, religiões, cores, eis que regredimos, e tocamos o ponto mais próximo de uma das premissas kantianas que remetem a uma menor idade racional. 

 

Do brutal assassinato de George Floyd à consternação global

 

O mundo parou com a brutal a morte do afro-americano George Floyd por um policial branco norte-americano. Uma acção desproporcional de uso da força e de desprezo pela vida humana; E que só teve a repercussão que teve porque o registo se tornou viral. Na verdade, aquele é o modus operandi da polícia norte-americana, e aquela é a forma impiedosa como os negros e afrodescendentes  são tratados em vários quadrantes do mundo. O que tornou Floyd um mártir não foi apenas a forma como foi morto, mas sim a frieza de quem o matara e o poder da força de mobilização das redes sociais que em pouco tempo tomaram as dores do negro em escala mundial. George Floyd é apenas mais uma vítima daquilo a que anteriormente chamamos de drama do negro no mundo contemporâneo. É mais uma vítima de todo um sistema ideológico assente em pressuposto de supremacia de um grupo, que colapsou e não se consegue disfarçar de tão poluído e desumanizado que se encontra. Drama porque ao negro não é reconhecida a humanidade nem a dignidade; ao negro é imputada uma série de acusações de má conduta e desvio social,  e pesa sobre ele a herança de todo um jogo depreciativo que o associa ao lado obscuro da história.

 

(In) felizmente, esta e outras mortes serão mediatizadas ao extremo e usadas até de forma política com fins diversos, mas se não paramos para estudar a raiz do problema e atacar as suas causas para podermos desenhar estratégias de mitigação, uma vez mais o esforço será indigno e inglório. As manifestações em todo mundo irão durar o tempo que tiverem que durar; a consciência popular irá emitir vozes de revolta, cansaço e repúdio, e a história irá abrir-se para uma nova fase em que tudo pode ser diferente se e somente se reformas institucionais e curriculares tomarem lugar.

 

O slogan black lives matter (vidas negras importam), tornou-se popular e viral e afirmou-se como slogan de guerra entre os manifestantes de dentro e de fora dos EUA. Particularmente olho com desconfiança para este slogan e tenho as minhas reticências sobre o seu enquadramento. Considero uma mensagem poderosa e ao mesmo tempo frágil nesta luta que se pretende travar contra o racismo. Ao afirmar que vidas negras importam, queremos chamar atenção ao grupo que mais sofre com as atrocidades do racismo, mas caímos inconscientemente num polo exclusivista visto que usa-se precisamente a arma de superioridade do branco para enaltecer o valor da vida negra. É um slogan necessário pela gravidade do assunto mas atropela levemente a globalidade da dignidade da pessoa humana onde se considera que a vida humana na sua essência está acima de todo e qualquer diferencial racial, religioso, cultural e ideológico. Nesta perspectiva, as manifestações que assistimos pelo mundo fora pode ser entendida como a síntese da escravatura, da colonização e de uma descolonização que nunca devolveu a dignidade outrora retirada.

 

Por: Hélio Tiago Guiliche (Filósofo, docente universitário)

Sir Motors

Ler 3910 vezes