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segunda-feira, 28 junho 2021 09:06

Conflitos, Mulher e os riscos da radicalização

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Em 1994, numa jornada que iniciou no Ruanda, recebi do Secretário-Geral das Nações Unidas, a missão de elaborar um relatório, com o diagnóstico e recomendações sobre o impacto de conflitos armados nas crianças, a apresentar à Assembleia Geral. Esta é uma realidade conhecida e, cada vez mais, debatida em muitos dos países em guerra. Naturalmente, eu tinha o respaldo das vivências da guerra de desestabilização, que foi severa e de dimensões destruidoras inesquecíveis, no meu próprio país. Mas, também, segui outros exemplos de Serra Leoa, Angola, Camboja, Palestina, Bósnia e tantos outros.

 

Grosso modo, os últimos anos têm sido profícuos neste tipo de estudos. Os pesquisadores estão mais propensos a diagnosticar as causas de tanta violência e do abuso indiscriminado de crianças, mulheres e velhos. Em abono da verdade, as actuais tendências de defesa dos direitos humanos propiciam oportunidades para estudos mais apurados sobre estes fenómenos sociais.

 

Os actuais estudos efectuados por pesquisadores moçambicanos, sobre os papéis das mulheres nos conflitos militares, em Moçambique, e o seu impacto, são tão perturbadores, como revoltantes que não podem deixar ninguém indiferente. Somos mesmo levados a indagar se o envolvimento de mulheres e adolescentes não terá como fim a radicalização da sociedade e não estará na iminência, portanto, de um conflito prolongado e intergeracional. Parece evidente que a desestabilização esteja a ser enraizada muito para além de soluções militares. As premissas indicam que as bases dos conflitos ganham corpo e se enraízam na radicalização e nas clivagens que assentam no seio dos próprios agregados familiares.  

 

Estes são os riscos dos extremismos. Levar a que pessoas pacíficas se transformem em máquinas de guerra. Mulheres e adolescentes envolvidas como “potenciais bombas” que podem começar a ser detonadas em qualquer lugar, assassinando pessoas inocentes e, principalmente, a esperança que ainda temos de edificar uma sociedade próspera, de paz e de estabilidade; uma nação de direito social, civilizada e que caminhe para os sonhos de Mondlane e de todos que deram o melhor de si, para fazer de Moçambique a pátria de todos.

 

Não ignoro a trajectória de 60 anos de guerra e de permanentes conflitos armados, pelos quais temos passado. O da libertação nacional sempre foi inquestionável. Os restantes assumiram diferentes dimensões, sempre não convencionais, preferencialmente, desencadeados em meios rurais, assentes em estratégias militares de mobilidade de guerrilheiros, de pequenos grupos, e com recursos à população local como camuflagem e, sobretudo, servindo-se das mulheres e dos adolescentes para realização de intentos macabros, incluindo a obtenção de informação privilegiada.

 

Portanto, populações civis são sempre colocadas entre os beligerantes, pois, o sucesso das operações implica coerção e brutalização dessas populações. As mulheres, sujeitas às diferentes formas de violência, constituem o grupo mais vulnerável. Aliás, muita dessa violência ocorre como punição por suspeita de esta estarem apoiando uma ou outra parte envolvida. São, então, mulheres que são forçadas a converterem-se em esposas, escravas sexuais e, mais recentemente, elas começam a assumir funções de destaque nas operações militares, quer como combatentes ou como espiãs. Portanto, assistimos à uma doutrinação, radicalização e ao aumento de casos em que as mulheres são envolvidas em operações de tráfico, para despistar o controlo.

 

Tudo isto nos leva a questionar os próximos tempos. Como dizia um dos estudos mais recentes[1], a fronteira entre a convicção e a coacção começa a ser tão ténue e estreita, observando-se que umas agem porque são obrigadas, porém, outras, por puro oportunismo ou por se identificarem com vantagens pontuais em termos económicos ou de outra natureza. Outras, ainda, envolvem-se, pelo facto de terem sido vítimas de injustiças, ou terem percebido que alguns familiares, igualmente passaram por situações semelhantes, no passado, ou neste presente mais melindroso.

 

Diante deste cenário, temos de conceber e implementar formas de reduzir os índices de recrutamento. Aliás, os debates que se verificam precisam de aprofundar como o recrutamento ocorre, que tipo de apoio provemos às mulheres que conseguem escapar e como, traremos de volta as consciências de que a guerra apenas vai reproduzir mais guerra e instabilidade. Não existem soluções mágicas, mas o volume de apoio financeiro terá de contrabalançar os incentivos que serão providenciados às mulheres e a possível estabilização dos agregados familiares, bem como, à reunificação e reconciliação da família moçambicana, em Cabo Delgado, em particular, e em todo o país, no geral.

 

Estes ciclos repetem-se. É chegado o momento de aprofundar as nossas análises e identificar oportunidades e caminhos para uma verdadeira reconciliação da família moçambicana.

 

As informações sobre o papel da mulher nestes conflitos têm de ser tomadas à peito, de forma muito séria e responsável. Sabemos bem do papel e da força da mulher moçambicana. Quando o conflito armado envolve questões étnicas ou de cariz  religioso, o ataque indiscriminado às mulheres visa denegrir, e até destruir e profanar  a integridade dessas mesmas comunidades e tradições.

 

Seria trágico, e no silêncio que temos manifestado, continuar a assistir à radicalização da mulher moçambicana nas regiões em conflito armado. Elas não merecem estar associadas e ser usadas como artífices de guerra, nem como vítimas da violência psicológica, física e tratamento degradante, muito menos como as responsáveis pela quebra de laços e das instituições tradicionais, religiosas ou do Estado ou, ainda, associadas ao desrespeito pela dignidade humana.

 

Mulher moçambicana é muito superior a  tudo isto! Ela continua a ser o elo mais forte da nossa coesão social.

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