Até aqui ainda não percebeste que o povo representa as placas tectónicas que estão se movimentando em direcção à liberdade, estás absolutamente cego. Devias ter aprendido, meu irmão, com a sabedoria de Nelson Mandela. Um dia, Madiba pegou no helicóptero e foi a Captown visitar Pieter Botha que estava paraplégico. Os dois eram homens de estatura física elevada, mas Botha estava sentado numa cadeira de rodas, que se movia segundo as necessidades do “boer”.
Mandela desceu do “helio” que aterrara nos vastos jardins da casa de campo daquele que vai dirigir um governo apoiado em leis injustas, que separavam os negros de um lado, e os brancos do outro lado. Caminhou na sua postura, não propriamente de chefe de Estado, mas sim, de uma figura humilde e cheia de dignidade, e dirigiu-se à fachada da casa exuberante de Botha, que o aguardava serenamente. Mandela dobrou a espinha para dar um abraço a Botha, que retribuíu sentado numa cadeira da qual nunca mais iria sair, até que a morte chegasse.
Ao querer largar o antigo dirigente de um governo racista, este apertou mais ao ilustre hóspede e disse, em sussurro, “cuidado com o tigre dos boers”! E Mandela respondeu, na sua sabedoria, “cuidado com o tigre das massas populares”!
É desta sabedoria, meu irmão, que devias ter aprendido, mas deixaste-te levar pela cegueira. Perdeste a oportunidade de estar aqui em baixo, longe do pedestal, como fez Jesus Cristo, que sempre se recusou ser chamado de Rabi (mestre), “eu sou vosso irmão”! Jesus, mesmo sabendo da Sua estatura de Cúpula Divina, caminhou eternamente com humildade, por isso vai triunfar. É a simplicidade que O destaca numa terra onde reina o pecado.
É isso, meu irmão, a tua terra tornou-se sáfara, mesmo tendo terras com fertilidade interminável, e rios abundantes. Por debaixo dessa mesma terra que amanhã se recusará a acolher os nossos corpos, estendem-se jazidas sem fim, que o próprio Deus, Ele Pessoalmente, criou para que tivessemos todos o bem estar. Mas isso não está a acontecer, são poucos os que se beneficiam desse maná que escorre para destinos que o povo desconhece.
Veja bem, meu irmão, estamos nus, no corpo e no sentimento. Se perscrutares atentamente o nosso estomago, vais ouvir a música do vazio, da dor da fome. Nós já nascemos com fome do ventre das nossas mães também famintas. E estamos a passar os poucos dias que teremos por aqui, como simples miseráveis. Não há música que nos console, a não ser os acordes que se ouvem no nosso “bandulho” opaco e encolhido até às costas.
É por isso que estamos aqui, gritando em reivindicação dos nossos ritos. Não temos lanças para lançar no espaço. As lanças somos nós mesmos buscando a música do amor que nos falta. É só isso que nós queremos, e tu não percebes , meu irmão! E saiba mais, essa mulher que vai à frente é a nossa mathxathxulani (maestrina) irreversível. O rítmo da nossa luta reside nela, e ela jamais vai car. E nós também, jamais cairemos, enquanto residir nela todo o cajado.
Por conta recorrente da ocorrência do fenómeno de enchimento de votos na urna em cada pleito eleitoral moçambicano trago à mesa para reflexão um episódio longínquo e interessante de enchimento ocorrido na altura em que frequentei o ensino primário. Sublinho que o interessante foi o desfecho.
Corriam os anos oitenta de Samora Machel. Na turma, quarta classe, entre os colegas havia uma competição acirrada pelo pódio das notas que era sempre disputado por três alunos em cada teste ou prova. Entre estes despontava e levava sempre a melhor nota a colega Eduarda cujo pai, que nunca soubemos o nome, o tratávamos carinhosamente por ῎Pai da Eduarda῎.
O ῎Pai da Eduarda῎ era praticamente nosso colega. Era muito presente e de fazer inveja aos ῎Pais Turma῎ de hoje. No seu velho Peugeot trazia a sua filha e a levava de volta à casa no final da jornada estudantil. Ele fazia o mesmo quando a levasse ao clube e quase sempre ficava para acompanhar os treinos, incluindo em dias de competição.
O ῎deixar e pegar depois῎ ou ῎deixar, ficar e juntos regressarem῎ era a regra para todas as saídas de casa. Umas vezes apenas os dois e outras tantas os três: a Eduarda, o pai e a mãe. Uma bela imagem e marca que amiúde ocorre-me quando o papo são as saudades em encontros ocasionais ou não com colegas da altura da escola primária.
Porque o país vive mais uma turbulência pós-eleitoral veio mais uma vez à ribalta o ῎Pai da Eduarda῎ num encontro recente que tive com um colega da primária, por sinal também da mesma turma da quarta classe. Entre lembranças da altura, a do desfecho dado pelo ῎Pai da Eduarda῎ a um fenómeno de enchimento então ocorrido. Foi assim:
Numa certa prova a Eduarda teve a melhor nota e era a máxima, 20 valores. No dia seguinte o ῎Pai da Eduarda῎ não só deixou a filha como foi até a sala com ela. O assunto era a nota, pois na contagem paralela feita por ele a sua filha tinha apenas 16 Valores.
Tenho até hoje a nítida memória do momento em que o ῎Pai da Eduarda῎, diante do professor e perante toda a turma reclamava e exigia ao professor que repusesse a verdade. Feita a recontagem, confirmou-se a nota de 16 e no pódio da prova a Eduarda teve a terceira melhor nota da turma.
Lembro-me que no final da solenidade da reposição da verdade - que foi o momento em que o professor alterava a nota - e diante de sorrisos de satisfação do ῎Pai da Eduarda῎ e da sua filha, a turma aclamou o instante com uma longa e estrondosa salva de palmas. Foi bonito e recomenda-se.
PS: Em anteriores lembranças deste episódio, incluindo a última acima, sempre fica uma dúvida ou falta de consenso em relação ao enchimento feito pelo professor. Terá sido por mero engano ou propositado? Seja o que for, o facto é que o desfecho foi solenemente aplaudido e celebrado por todos.
O Movimento Manifesto Cidadão, que congrega uma nata de académicos, intelectuais e activistas cívicos, apela para a realização de uma conferência nacional cujo mote é a refundação do Estado para fazer face à crise pós-eleitoral do pleito de 09 de Outubro. Na senda deste propósito, espero ler na imprensa nacional e estrangeira do dia 24 de Junho de 2025, a um dia da celebração dos 50 anos de independência nacional, o citado abaixo:
῎Após a Crise Eleitoral das Eleições do dia 9 de Outubro de 2024, O Movimento Manifesto Cidadão definiu a refundação do Estado moçambicano como uma das medidas fundamentais de um roteiro para “(re)fazermos Moçambique como um País seguro para a cidadania” alicerçado num sistema político que se renove e exalte continuamente o compromisso com ”a promoção do princípio da cidadania como garante do valor da nossa dignidade como nação soberana e independente”.
Uma etapa importante do roteiro será amanhã, 25 de Junho de 2025, com a realização da Assembleia Constituinte cujo mandato será a elaboração e aprovação de uma nova Constituição da República de Moçambique, no prazo de 06 meses, e da lei eleitoral específica para a realização de novas eleições no quadro do figurino orgânico definido na nova Constituição, e a terem lugar em Outubro de 2025.
Esta Assembleia Constituinte resulta de um referendo nacional realizado em Abril passado e foi concebido para a aprovação de uma lista de 50 deputados e do respectivo Presidente, o académico e empresário Lourenço do Rosário, bem como a cronologia das etapas principais até a tomada de posse dos novos órgãos sufragados.
A Assembleia Constituinte, que não terá funções legislativas ou de fiscalização, será dissolvida no mês de Janeiro de 2026 no quadro da tomada de posse dos novos órgãos sufragados sob os auspícios da nova Constituição.
Lembrar que a normalidade funcional do país é assegurado por um Governo de Transição cujo Primeiro-ministro, Rosário Fernandes, na qualidade de Chefe do Governo, resultou da aprovação por consenso e unanimidade da Assembleia da República sob proposta do Movimento Manifesto Cidadão.
Por sua vez, a chefia do Estado e com funções especiais acrescidas para a ratificação e promulgação dos instrumentos governamentais e fiscalização governativa, cabe a um Triunvirato-presidencial também aprovado por consenso e unanimidade pela Assembleia da República sob proposta do Movimento Manifesto Cidadão.
O Triunvirato-presidencial e o Primeiro-ministro foram empossados no passado mês de Janeiro de 2025 perante o Conselho Constitucional, actos que também marcaram o fim do mandato do quarto presidente da República de Moçambique bem como da nona legislatura, das assembleias e governadores provinciais, ambos saídos do pleito eleitoral de 2019.
Nos termos das regras definidas para o período de transição de doze meses, os titulares e membros dos órgãos da transição ficam vedados de concorrerem ou participarem no quadro dos órgãos que saírem das eleições de Outubro de 2025῎. ….Fim da citação.
De regresso aos dias que correm, e no contexto da crise pós-eleitoral do pleito de 09 de Outubro, a esperança de que não seja o único a sonhar por um roteiro para a refundação do Estado no quadro dos propósitos do Movimento Manifesto Cidadão, e em prol da contínua procura para “(re)fazermos Moçambique como um País seguro para a cidadania”.
Caro Dr. Carlos Martins
Bastonário da Ordem dos Advogados
Saúdo em primeiro lugar as posições adoptadas pela Ordem dos advogados de Moçambique face ao processo eleitoral em curso no nosso país. Saúdo a vossa independência face ao poder político e a defesa da constituição da República e do Estado de Direito. É raro, mas muito promissor, a existência de uma instituição profissional que se distancia da narrativa política e se pauta apenas no respeito e cumprimento da lei.
Solicito que voltem a público para que, com o peso da vossa instituição, contribuam para a normalização da vida do nosso país. Melhor do que ninguém vocês sabem que o Estado de Direito não depende apenas do rigor da contagem dos votos, mas do respeito pelas leis vigentes e pela Constituição da República. E as leis do nosso país salvaguardam o direito à greve e à manifestação. Mas definem também os deveres e as regras para o exercício desses direitos. É assim no nosso país. É assim em todos os países democráticos. Estas normas servem para proteger as pessoas e a vida pública. Por essa razão, os organizadores das manifestações e as autoridades policiais devem assegurar em conjunto o direito à manifestação sem que estes eventos sejam aproveitados por oportunistas que desvirtuam os propósitos das mesmas. As manifestações devem também garantir o livre acesso das vias públicas para as pessoas e os bens poderem circular. Se uns têm o direito a se manifestar, outros têm o direito a manter o seu dia-a-dia. Por muito que os manifestantes clamem “que o país é deles”, isso não anula o respeito pelos outros que parecem ser demitidos do seu direito de também pertencerem a Moçambique. Ajudem a esclarecer que, pelo simples facto de se anunciarem “pacíficas” as manifestações não se tornam imediatamente legais. Por mais que sejam justas as greves precisam de serem organizadas de acordo com o que está estabelecido pela lei.
Peço-vos que, com a mesma coragem e isenção com que vieram a público condenar as irregularidades eleitorais, compareçam agora e com urgência para ajudar a informar sobre as regras que a lei define. Sendo cumpridas, elas podem prevenir a ocorrência de excessos quer dos manifestantes quer das forças da lei e evitar vítimas humanas e prejuízos materiais elevados.